O homem que perdeu os movimentos do corpo e está prestes a se tornar especialistacirurgias:

Odair naformatura

Crédito, Arquivo pessoal

Legenda da foto, Diagnosticado com AME2, Odair se formouCiência Biomédicas na Unesp2016

A principal diferença entre as duas é a época da vidaque se manifestam (mais na cedo na AME2) e na velocidadesuas progressões (mais rápida na ELA).

"Meus pais logo perceberam que eu não engatinhava, só rolava", conta. "Eles suspeitaram que eu tivesse AME, porque um primo mais velho meu sofre da mesmo mal. Então, o diagnóstico foi rápido."

Odair quando criança

Crédito, Arquivo pessoal

Legenda da foto, Odair conta que teve uma infância e adolescência 'tranquilas', apesar das restriçõesmovimento

A doença

A AME2 se caracteriza pela degeneração e perdaneurônios motores da medula espinhal e do tronco cerebral. Os primeiros sintomas aparecem entre os 6 e 18 mesesvida — o bebê apresenta dificuldade para sentar, ficarpé ou caminhar sozinho. Com o tempo, a doença leva a fraqueza e atrofia muscular progressivas.

Os pacientes também passam a apresentar hipotonia (redução ou perda do tônus muscular), paralisia, arreflexia (faltareflexos), amiotrofia (atrofiatecido muscular) e miofasciculação (contração muscular pequena e involuntária).

Esses problemas afetam primeiro as pernas, depois os braços e, por último, os músculos do tronco.

De maneira semelhante, a ELA é uma doença neurodegenerativa progressiva, relativamente rara, que afeta ambos os neurônios motores, tanto superiores quanto inferiores. Assim como a AME2, ela causa fraqueza e atrofia muscular progressivas.

Quanto ao tônus muscular, no entanto, ocorre o contrário — ou seja, um aumento, que leva a um sintoma chamado espasticidade e que, porvez, origina um aumento involuntário das contrações musculares.

"Outra diferença é queprogressão é extremamente rápida, evoluindo para paralisia, com um temposobrevivência1 a 5 anos após os sintomas iniciais", explica Odair à reportagem da BBC News Brasil.

Odair

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Legenda da foto, Mobilidade piorou na vida adulta, diz Odair, que sofre com vida social limitada

Infância e adolescência 'tranquilas'

Desde muito cedo, ele sempre soubesua doença esuas limitações. Apesar disso, viveu uma infância e uma adolescência que classifica como "tranquilas".

"Eu tinha mais movimentos", explica. "Nunca tive nenhum problema, sempre fui conhecido e popular na minha cidade. Eu frequentava a escola e as festinhas na adolescência normalmente, e nunca sofri bullying, nem nada disso."

Os problemas começaram a surgir mais tarde, por volta2013, quando ele já estava na faculdade. A partirentão, passou a não conseguir mais realizar sozinho tarefas básicas e a situação piorou. Aos poucos, Odair foi perdendo os movimentos.

"Sempre tive limitações motoras, mas elas pioraram com o tempo", conta.

"Inicialmente, tinha dificuldadeatender ao telefone, depois não conseguia mais mexer no celular. Em seguida, fui perdendo a capacidadeescrever, jogar videogame, tomar água sozinho,arrumar a mão no joystick da minha cadeirarodas motorizada e, por fim,mastigar. Hoje, dependo da minha mãe para tudo."

A capacidademastigar ele readquiriu recentemente, graças ao medicamento Spinraza, único aprovado pela Agência NacionalVigilância Sanitária (Anvisa) para tratamento da AME.

É uma medicação extremamente cara: a dose5 ml custa R$ 300 mil. Para ter acesso a ele, Odair efamília tiveramentrar na Justiça contra seu planosaúde. São quatro doses iniciais,quinzequinze dias; a primeira ele tomou12julho, e depois são três por ano. "Já senti melhoras para comer", conta. "Antes só tomava sopas e caldos ralos. Hoje consigo mastigar alimentos sólidosnovo."

Odair na universidade

Crédito, Arquivo pessoal

Legenda da foto, Quando entrou no curso da Unesp, Odair teve depressão, mas conseguiu seguir adiante

Limitações e o interesse pela ciência

Tão ruins quanto as limitações físicas são as do convívio social, impostas pela doença.

"Depois que deixeime virar sozinho, as pessoas começaram a se afastar", lamenta Odair.

"Não tenho amigos, não encontro gente para sair. Parece que sou um estorvo. Então, passei a ficar sócasa ou na universidade. Mas estou tentando superar isso. Voltei esse mês a sair. Sozinho, mas saio — ainda estou do mesmo jeito, sem movimento. Estou tentando me ressocializar. É muito ruim passear sozinho. Mas é um pouco melhor do que ficar trancado no quarto."

Por isso, Odair diz que está sempreum processoadaptação. Seu interesse pela ciência veio disso. No início, ele não queria ser pesquisador e tentou arrumar empregovários lugares do EstadoSão Paulo. Sem sucesso.

"Um diz fiz uma prova para residência num centrodiagnóstico por imagemRibeirão Preto e corrigi duas questões erradas, que o próprio gerente que fez a prova não sabia que não estavam corretas", lembra.

"Não passei na prova e depois meu pai falou que o rapaz havia conversado com ele e dito que eu não tinha chance por causa das minhas limitações físicas. Fiquei extremamente triste e revoltado."

Depois, quando ingressou na Unesp — inicialmente no cursoCiências Biológicas, no câmpusJaboticabal, onde ficou um ano —, Odair teve uma depressão muito forte e quis desistir várias vezes.

"Mas eu me dizia que se eu desistisse ia ficar mais louco ainda", recorda.

"Então, me recuperei e por causa da minha mãe fiz tudo que sempre sonhei. Ela me mantevepé e confianteque tudo ia dar certo. Por isso, disse para mim mesmo: já que não consigo emprego, vou fazer o que eu façomelhor, que é estudar. Coloquei na minha cabeça que iria me tornar o melhor pesquisador da minha área e ajudar aqueles que, como eu, são competentes, mas a vida os subjuga e os coloca para baixo. Hoje, estou na áreapneumologia, mas sou um ávido estudiosoneurologia, nas sub-áreas neuromuscular elesões raquimedulares."

Odair

Crédito, Arquivo pessoal

Legenda da foto, Depoisum anoinsistência, Odair conseguiu entrar no mestrado, com apoioseus orientadores

O mestrado

Como tudo emvida, ingressar no mestrado não foi fácil.

"No início, passei por diversas dificuldades", conta. "A princípio, com minhas diversas limitações, não me aceitavam, dizendo que eu não daria conta do serviço. Insisti por quase um ano, até que os professores Marcos Mello Moreira e Monica Corso Pereira, hoje meus orientadores, me deram essa oportunidade, pela qual sou imensamente agradecido. Eu precisoajuda para auscultar os pacientes e para fazer algumas anotações, mas dou conta do trabalho."

Odair faz na Unicamp seu mestradociências da cirurgia, uma área que trata do conhecimento já estabelecido e novas técnicas e procedimentos operatórios. Em suas pesquisas na áreapneumologia, ele estuda a Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica (DPOC) — colheu dados tomográficos e outros testes60 pacientes, que serão analisados como parteseus estudos.

Além disso, Odair auxilia duas alunasMedicina da Unicamp no trabalhoconclusãocurso delas.

Sua previsão é terminar o mestrado no primeiro semestre do ano que vem. Depois, ele quer seguir para o doutorado, na mesma linhapesquisa.

Apesar dos percalços que enfrenta por causa da atrofia medular, Odair — filhoum pai que trabalhou a vida todauma empresadedetização e hoje está aposentado, euma mãe dona casa — diz que a maior dificuldade para pessoas como ele é sempre dinheiro.

"Cadeirarodas, adaptações posturais, tecnologia assistiva (dispositivos que proveem assistência para pessoas com deficiência), carro adaptado, todos esses itens, necessários para uma vida mais digna para deficientes e familiares, são extremamente caros", diz.

"Se o deficiente e a família não forem paupérrimos, não recebem ajuda alguma dos órgãos públicos. Tudo é caro para quem precisa. Eu ainda tenho sorteconseguir adquirir bens para facilitar minha vida, como cadeirarodas motorizada e carro adaptado, que minha mãe dirige."

Ele diz que já viu e vê cadeirantescarrinhosbebê e carrinhosmercado, alémcegos sem acompanhantes.

"É cada absurdo que dá raiva e vergonhaser brasileiro", reclama.

"Isso tudo é o que eu vejo trabalhando nos hospitais públicos e também sendo atendido. Às vezes eu me canso, mas me faz bem trabalhar no hospital. Poder ajudar um paciente, conversar, mostrar que você realmente se importa com aquela pessoa, é muito bom. Quando um cadeirante vê você ali, fazendo o que gosta, acho que eles sentem um pouquinhoesperança. Que nem tudo é impossível. É difícil? Com certeza. Temos que ter coragem e confiançanós mesmos."

Por isso, ele diz que espera que um dia todos possam ter uma vida digna.

"Que um cadeirante tenha uma cadeira adaptada; um cego, um acompanhante e livrosbraile; um amputado, uma prótese; um surdo-mudo, pessoas que saibam libras; o que precisarem, enfim, para viver melhor", deseja Odair.

"Sempre que trococadeira, doo a anterior. Isso é insignificante se pensarmos na quantidadepessoas que precisam, mas para nós é importante a ajuda mútua. Se eu tenho uma cadeira sobrando, dou a quem precisa; se eu precisosonda urinária e outra pessoa tem sobrando, ela me dá. Essa é a ideia que quero passar. Até termos condições melhores nas políticas assistenciais. No meu caso, me considero afortunado. Tanto pela minha família quanto pelas oportunidades que tenho."

Línea

Crédito, Getty Images

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