Os adolescentes infratores que brilham na OlimpíadaMatemática:

Um dos internos da Casa Rio Tâmisa que se classificou para a segunda fase da OlimpíadaMatemática

Crédito, Diego Padgurschi/BBC

Legenda da foto, Os adolescentes se classificaram mesmo tendo a educação interrompidadiversos momentos da vida
Uma das jovens internadas na Casa Chiquinha Gonzaga

Crédito, Diego Padgurschi/BBC

Legenda da foto, As adolescentes fazem aulasmanhã e atividades à tarde

Quando a professora deu "parabéns", no mês seguinte, dizendo que ela tinha passado para a segunda fase da Olimpíada, superando milharesalunos que não estavam privadosliberdade, ela achou que tinham confundido seu mêsaniversário.

"Eu não achei que ia passar. Para mim foi difícil, porque eu não lembrava muito das matérias."

Aluna do 1º ano do Ensino Médio, Vanessa voltou a estudar dentro da Fundação Casa. Ela havia saído da escola2017, mas seus estudos foram interrompidos diversas vezes ao longo da vida — ela chegou a morar na rua eabrigos algumas vezes.

Poucas visitas

Na Unidade Chiquinha Gonzaga, ela não recebe muitas visitas, o que é comum entre as 103 adolescentes internadas ali. Assim como nos presídios para mulheres adultas, as meninas internadas na Fundação Casa recebem menos visitas que os meninos.

Na pequena biblioteca da unidade, ela conta à BBC News Brasil quemãe morreucâncer quando tinha 5 anos e seu pai foi preso por tráficodrogas quando ela tinha 9.

Nos seis anosque o pai ficou preso, ela chegou a morar com o irmão, mas os dois passavam "mais tempo na rua no quecasa".

Uma das jovens internadas na Casa Chiquinha Gonzaga

Crédito, Diego Padgurschi/BBC

Legenda da foto, As jovens podem começar cursos do Senac e terminar depois do períodointernação

"Eu gostavaestudar, mas era difícil, com minha família. Meu irmão tem problemacabeça, eu não tinha muito incentivo."

Aos 12 anos, Vanessa começou a usar drogas e largou a escola. Depois saiucasa. Chegou a morarabrigos, tinha dificuldadeficar, porque é proibido usar drogas nesses locais. Acabou indo viver na rua com outras crianças, no centroSão Paulo.

"Não passava fome, porque eu pedia. Mas a gente passa muito frio, e quando chove é muito difícil achar lugar para dormir."

Voltou a estudar quando o pai saiu da prisão e pode voltar a morar com ele, na zona norteSão Paulo. Começou a fazer supletivo para chegar ao ensino médio. Mas viver com o pai não era fácil, diz Vanessa, evida não demorou muito para sair dos trilhosnovo.

"Conheci um meninoabrigo e ele me chamou para ir ficar com ele no abrigo. Mas eu briguei com ele, os outros me chamaram para ir roubar, eu fui roubar e fui presa", conta ela, que tinha 17 anos na época.

"Agora, eu tô vendo que a vida que eu tinha não era para mim. Que eu posso estudar, posso trabalhar. Que eu não preciso ficar na rua usando droga."

Retorno às aulas

Usuáriavárias drogas desde criança, teve fortes crisesabstinência nos primeiros meses internada, mas com o usoremédios e o acompanhamento nos CentrosAtenção Psicossocial (CAPS), ela diz que as crises passaram.

Com isso, ela pôde retomar as aulas, dadas todos os diasmanhã no centrodetenção. À tarde tem outras atividades, como participação no coral.

O sucesso na primeira fase da Olimpíada não foi apenas uma surpresa, mas um incentivo para Vanessa continuar os estudos e fazer faculdade. Ela quer cursar engenharia civil ou assistência social.

Um dos internos da Casa Rio Tâmisa que se classificou para a segunda fase da OlimpíadaMatemática

Crédito, Diego Padgurschi/BBC

Legenda da foto, Os meninos recebem visitas com mais frequência do que as meninas

"Como eu já passeiabrigo, acho muito bonito o trabalho que elas (as assistentes sociais) fazem. Eu lembro muito do tio Moacir, que quando eu estava triste conversava comigo, faziatudo para eu não sair do abrigo, para eu não ficar na rua."

Agora, ela se prepara para a segunda fase — diz que adora resolver problemas como a fórmulaBhaskara (usada para resolver equações do segundo grau, ela explica) — que será no dia 28setembro.

A Olimpíada foi criada2005 e seu objetivo é estimular o estudo da disciplina e identificar talentos na área, incentivando o ingressoalunos na universidade nas áreasciência e tecnologia.

Só mais uma prova

A alguns quilômetros dali, na unidade masculina da Fundação Casa, a Rio Tâmisa, Aurélio*17 anos, também se prepara para a segunda fase da OlimpíadaMatemática.

Participam da competição alunos do 6º ano do Ensino Fundamental até último ano do Ensino Médio; 54.831 escolas participaram. A prova da 2º fase será28setembro. As melhores provas serão premiadas com medalhasouro, prata e bronze - centenas delas são distribuídas a cada ano.

A unidadeque Aurélio está internado se parece bem mais com uma prisão. Ele fez a prova da Olimpíada sem saber: achou que era só mais uma prova bimestral do 7º ano do Ensino Fundamental, que voltou a cursar desde que foi internado na instituição.

Aurélio trabalha desde os 15, como ajudantepedreiro, e morava com quatro irmãos, a mãe e o padrasto na zona norteSão Paulo. Fazia supletivo à noite para tentar recuperar os anosescola perdidos por falta, mas às vezes ficava muito cansado e acabava não conseguindo ir.

Desde os 10 sonhavater uma moto, diz, porque "gostava muitoadrenalina". Mas nunca conseguiu comprar uma com seu salário, e admite que acabou não seguindo os conselhos da família que dizia para "se afastar das amizades ruins e procurar coisas melhores".

Uma das jovens internadas na Casa Chiquinha Gonzaga

Crédito, Diego Padgurschi/BBC

Legenda da foto, O bom resultado na Olímpiada trouxe uma esperançacontinuar os estudos após sair da instituição para muitos jovens

"Eu tava com um amigo e a gente viu uma moto e fomos roubar. E aí estávamos quase chegandocasa quando apareceu a polícia", admite. "Foi muito triste, minha mãe ficou arrasada."

Como costuma acontecer com mais frequência para os meninos do que para as meninas, Aurélio recebe visitas frequentes da família - da mãe, da madrinha, do padrasto e do pai.

Ficou muito feliz ao descobrir que tinha passado para a segunda fase da Olimpíada e diz que isso é um grande incentivo para continuar a estudar. "A gente estava jogando dominó quando a professora veio e disse que eu tinha tido as três melhores notas da casa."

Expectativas

Aurélio conta que quer fazer um curso profissionalizante quando sair da instituição. "Arrumar um emprego, construir alguma coisa para mim. Comprar uma moto que aí, sim, seja minha, né?."

A surpresa com o bom resultado na OlimpíadaMatemática é um traço comum entre todos os seis adolescentes infratores que conversaram com a BBC News Brasil.

"Essa questão da autoestima é uma questão muito difícil e um ponto central a se trabalhar, porque muitas vezes eles não acham que são capazescoisas boas", diz Priscilla Iris Jerônimo, diretora da Casa Rio Tâmisa.

Aline*,17 anos, fez a prova com Vanessa, na Casa Chiquinha Gonzaga. Entre os alunos que brilharam na primeira fase, ela é quem tinha mais dificuldade na disciplina.

Mas é esforçada - além das aulas normaismanhã, faz aulasreforço à tarde e foi a última a sair da sala no dia da prova. "Todo mundo saindo, e eu na metade ainda, mas eu não queria chutar", diz ela, que havia deixado a escola no ano passado e retomou as aulas quando foi internada na instituição,fevereiro deste ano.

"Na minha sala (na escola) ninguém ligava para escola, e eu acabei fazendo amizades erradas, eu mentia para minha mãe dizendo que estava na aula e não ia", conta ela, que moravauma comunidade com a família no interiorSão Paulo.

Com sete irmãos e a mãe cuidando da irmã pequena, a renda da família era pouca. Aline percebeu que poderia ganhar algum dinheiro fazendo como as amigas que vendiam drogas na comunidade.

Erros e acertos

Aline ficou quase um ano foraescola e foracasa, morando com amigos -mãe não sabia onde ela estava. "Ela ficou desesperada atrásmim."

"Fui traficar e foi assim que eu caí aqui", conta. "No começo não era ruim, quando você começa, conhece uma droga, você acha que é a popular da escola. Depois que eu vi que não era bem isso", reflete.

"Antes eu falava para minha mãe que eu queria ter 17 anos para trabalhar e hoje eu tenho 17 anos e estou privada da minha liberdade."

"Foi muito difícil, porque ninguém na minha família me ensinou essa vida errada. Mas também ninguém colocou uma arma na minha cabeça e me forçou, eu fui pela minha própria vontade. Depois eu percebi que eu errei, que essa vida não era para mim", diz ela.

Durante a internação, começou a fazer diversos cursos profissionalizantes no Senac — comogarçonete eatendimento telefônico — e pretende terminá-los quando sair.

Quando sair, diz ela, quer arrumar um primeiro empregouma lanchonete, para poder fazer faculdadematemática. "E depois quero me tornar professora."

Aline diz que está ansiosa para contar para a mãe que se classificou na Olimpíada. "Acho que ela vai ficar feliz, porque ela fala tanto por telefone, 'filha, estuda, a mãe quer te ver no serviço, com uma vida boa, que essa vida não é para ninguém'."

"Eu achava que minha mãe nunca ia me perdoar. Mas ela me perdoou."

*Os nomes dos adolescentes foram alterados para preservar suas identidades

Línea

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