O que faz um processodesmatamento da Amazônia demorar 28 anos para ter uma sentença:
O caso da Terra Indígena Caru pode ser considerado um símbolo da demora da Justiça para julgar casosdesmatamento.
Essa morosidade preocupa ainda maisum momentoalta da destruição por meiodesmatamento e queimadasáreas da Amazônia - que tem ganhado repercussão internacional. Em junho e agosto, por exemplo, alertasdesmatamento da Amazônia cresceram 203%relação ao mesmo período do ano passado, segundo dados do Instituto NacionalPesquisas Espaciais (Inpe).
O caso Caru
A Terra Indígena Caru, que tem cerca173 mil hectares, foi reconhecida pela Fundação Nacional do Índio (Funai)1982, ainda sob a ditadura militar. Junto com as reservas indígenas Awá e Alto Turiaçu, ela forma uma espéciecorredorfloresta amazônica no Maranhão.
Nela, vivem índios das etnias awá-guajá e guajajara.
O julgamento sobre a invasão da área,março deste ano, juntou duas ações civis - uma1991 e outra2000.
Segundo o primeiro processo, três réus invadiram a reserva1989 e "devastaram diversos pontos da terra indígena ao promover o desmatamentodiversas espéciesárvores, para posterior beneficiamento e comercialização da madeiraserrarias irregulares da região".
Eles também teriam limpado a área "com a utilizaçãofogo para a construçãocercas, casas, currais, barracos e plantaçãoroças (em especial,capim para pastagemgado bovino), o que impede a regeneração da área afetada."
Porém, a destruição da mata piorou nos anos seguintes à primeira invasão. Uma inspeção da Funai1999 descobriu que a área desmatada havia aumentado para 20 mil hectares.
Esse relatório gerou um novo processo civil com mais quatro réus. As duas ações depois foram reunidas e julgadasconjunto pela Justiça Federal, mas isso só ocorreu neste ano.
Em 1999, os fiscais da Funai encontraram uma comunidade com 600 famílias e 2 mil pessoas vivendo na reserva indígena - boa parte tinha vindocidades vizinhas e trabalhava com produtos agrícolas como formasobrevivência. Além disso, havia pastos com dezenasmilharescabeçasgado, porcos, cavalos e cabras.
Segundo o relatório da Funai, a comunidade invasora já tinha 200 casas, currais, pastagens, cercasarame, casasfarinha, pomares e poços. Também foram encontrados máquinas agrícolas, tratores, motosserras, espingardas e rifles. Na área, foi aberta uma estrada60 kmextensão para escoar a madeira retirada da mata ilegalmente.
O documento apontava que um dos comandantes da invasão "aliciava as pessoas a adentrarem na Terra Indígena Caru, oferecendo lotesaproximadamente20 a 30 alqueires, para a finalidade do cultivolavoura, na condiçãoque a madeira encontrada nos devidos lotes fosse destinada para comercialização junto às madeireiras".
O documento da Funai também citava que a liderança mantinha "vigília das madeiras espalhadas no interior da reserva com pessoas fortemente armadas, o que representava uma verdadeira ameaça às comunidades indígenas."
No processo, os três réus da ação1991 alegaram que tinham autorização do Ibama para realizar a derrubadaparte da mata, mas a Justiça considerou que apenas um deles tinhafato o documento.
Os acusados também afirmaram que o crime tinha prescrito e que eles eram donos da terra, mas o juiz negou os argumentos. Segundo o magistrado Ricardo Felipe Rodrigues Macieira, não houve prescrição e, além disso, o Supremo Tribunal Federal (STF) já decidiu que títulospropriedade dentroreservas indígenas são nulos.
Duas pessoas foram condenadas a criar, junto ao Ibama, um planorecuperação florestal para a área - e, caso o local esteja irrecuperável, os réus devem pagar uma indenização.
Já no processo2000, relativo à degradação constatada um ano antes pela Funai, a Justiça condenou quatro pessoas a pagar uma multaR$ 50 mil, além da criaçãoplanosrecuperação. Entre outros argumentos, os réus alegaram que havia erros na demarcação da reserva e que não houve danos ambientais, pois "não havia índios na área" - esses pontos foram refutados pela Justiça.
Por que demorou tanto?
Não há uma única explicação para a lentidão para julgar o caso. Ele ficou seis anos parado na Justiça sem qualquer movimentação.
O procurador da República Marcelo Santos Correa, que recentemente assumiu a área ambiental da Procuradoria do Maranhão e o processo relativo à invasão da Terra Indígena Caru, diz que uma sérieentraves na burocracia da Justiça Federal, responsável por julgar danos a áreas públicas da União, tem atrasado os processos relativos à Amazônia, como o do Caru.
Em meados da última década, a Justiça Federal criou uma vara especializadacrimes ambientais no Maranhão. Ela ficou responsável por julgar açõesdesmatamento, acelerando os processos dessa área e desafogando outras seções. No entanto,vezajudar, a medida causou confusão.
"Houve uma grande discussão sobre quem tinha competência para julgar os casos. Muitos processos, atéquestões fundiárias, eram repassados para a vara ambiental, depois retornavam para a comum. E aí ficava nesse impasse sobre quem deveria julgar. Muitas vezes, a Justiça demorava anos para se chegar a uma conclusão sobre isso", diz Correa.
Essa discussão tem ocorrido também no Pará, onde seções da Justiça Federal também têm "disputado" quem pode julgar alguns casos.
Além da enorme quantidadeprocessos, outro problema, afirma Correa, é a dificuldade para encontrar e ouvir réus e testemunhas que vivemcidades muito distantes das varas federais, que normalmente ficamcidades médias ou grandes. O território da Terra Indígena Caru, por exemplo, está localizado nos municípiosBom Jardim e São João do Caru, a mais270 quilômetrosSão Luís.
"Nesses casos, a Justiça Federal envia uma carta para a Justiça Estadual ouvir a testemunha ou o réu, como uma espéciefavor. Mas às vezes isso demora anos para acontecer, porque os fóruns estaduais também estão cheiosprocessos", diz.
No caso da invasão ao Caru, por exemplo, o depoimentouma única testemunha demorou quatro anos para ser colhido depois que ele foi pedido pelo juiz federal. Essa lentidão acabou paralisando o processo e atrasou ainda mais a obtençãosentenças.
"É um absurdo que um processo demore mais20 anos para ser julgado. Ainda mais quando há flagrante e provas claras do dano ambiental, como ocorreu no Caru. Era um caso relativamente simplesjulgar", diz Correa.
'Demora como incentivo ao desmatamento'
Hoje subprocurador-geral da República, Nicolao Dino estavainíciocarreira no Ministério Público Federal quando participou da ação contra os invasores da Terra Indígena Caru, nos anos 1990.
"A intenção dos invasores era extrair madeira ilegalmente, alémimplantar a cultura do gado na região", afirmou Dino à BBC News Brasil, por telefone. "Houve uma redução gradativaespaços demarcados e prejuízos socioambientais e à cultura indígena da área".
Dino não sabia que os dois processos relativos à área demoraram tanto para serem finalmente julgados, pois, ao ascender na hierarquia do MPF, a ação foi assumida por outros procuradores - cinco ao todo, nesses 28 anos.
"Preocupa essa demora para a resoluçãocasosextrema importância, como é a destruiçãomatas virgens, que fazem parte do patrimônio ambiental brasileiro", explica.
Para ele, processosdestruição da Amazônia deveriam ser tratados como prioridade pela Justiça. "A demora na resposta do Estado e a sensaçãoimpunidade são interpretadas como estímulo por quem pratica ações ilícitas. É preciso que o Estado dê uma resposta rápida", afirma.
O procurador Daniel Azeredo, que também trabalhaprocessosdano ambiental, concorda que casosdesmatamento deveriam ser priorizados.
"Há algumas áreas da Justiça, como a Trabalhista, que trabalham com metasresoluçãoprocessos. Talvez essa seja uma alternativa a se estudar nesse campo", diz ele, que atua no projeto Amazônia Protege, grupotrabalho do MPF e do Ibama criado para combater a destruiçãoáreas florestais.
Desde 2017, o projeto já moveu 2.539 ações judiciaisdanos ambientais. Nenhuma delas recebeu condenações definitivas até agora, segundo levantamento do UOL.
Azeredo também é a favorum endurecimento das penas criminais impostas a quem desmata. Hoje, a lei prevêum a cinco anosprisão para quem causar danosáreas públicas protegidas econservação. Na prática, as condenaçõesprisão são, emmaioria, convertidasmultas ou prestaçãoserviços à comunidade.
"É importante que a punição tenha o efeitoser um exemplo. As pessoas precisam entender que crime ambiental pode dar cadeia", afirma Azeredo.
Em entrevista recente à BBC News Brasil, o procurador LuísCamões, que trabalha no Pará, resumiu a situação das penas com outras palavras: "Hoje, se você furtar um celular, talvez fique mais tempo preso do que se botar fogo na floresta", disse.
É difícil resumir os motivostanta demora, pois cada caso tem problemas próprios, como enorme quantidaderecursos, problemas para ouvir testemunhas, excessoprocessos e até indefinições sobre qual seção da Justiça Federal tem competência para julgar.
A Operação Curupira da Polícia Federal (PF) e MPF, por exemplo, descobriu2005 um esquemadesmatamento e extração ilegalmadeiratrês Estados. O processo completou 14 anos e ainda está aberto na Justiça Federal, sem resolução.
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