Governo federal financia entidades para dependentes químicos denunciadas por maus-tratos e irregularidades:bet 666
Procuradas pela BBC News Brasil, as comunidades terapêuticas negaram os problemas apontados, e parte afirmou ter havido uma "análise ideológica" por parte dos órgãos fiscalizadores.
Já o governo federal não explicou os motivos da manutenção dos contratos, mas disse que exige das comunidades a contrataçãobet 666profissionais graduadosbet 666ciências humanas e saúde, alémbet 666liberdade religiosa para os internos - também diz que estão previstas vistorias a cada 12 mesesbet 666contrato.
Os contratos foram assinados sem licitação, meses após a divulgação do documento que apontava os problemas. Ao todo, as cinco instituições devem receber aproximadamente R$ 2 milhões dos cofres federais neste ano.
A participação das comunidades terapêuticas (CTs) na Política Nacional sobre Drogas vem se tornando o principal mecanismobet 666combate à dependência química da gestão Bolsonaro. Mas a política foi iniciada por Dilma Rousseff, do PT. Segundo dados do governo federal, foram repassados cercabet 666R$ 234 milhões para 384 entidades deste tipobet 6662015 a 2018,bet 666valores nominais.
Em março, o ministro da Cidadania, Osmar Terra, aumentoubet 66678% o númerobet 666entidades do tipo contratadas (de 280 para 497), também sem licitação. Neste ano, serão repassados R$ 149 milhões para custear 10,8 mil vagas.
Esse movimento vem na esteira da nova Política Nacionalbet 666Drogas, projetobet 666lei aprovado pelo Senadobet 666maio. O texto facilita internações involuntáriasbet 666unidadesbet 666saúde e fortalece as comunidades terapêuticas.
Essas entidades agora podem receber dinheirobet 666isenção fiscal - pessoas e empresas podem deduzir no Impostobet 666Renda doações feitas às comunidades.
Existem três tiposbet 666internações previstas na lei: a voluntária, a involuntária (quando o dependente é levado pela família ou por um agentebet 666saúde) e a compulsória - quando há determinação da Justiça.
Liberdade religiosa
As comunidades terapêuticas são um dos vários modelosbet 666atenção a dependentes oferecidos pela saúde pública. Em geral, são residências coletivas que promovem o modobet 666vidabet 666abstinência.
Os leitos, oferecidos gratuitamente, são financiados pelo governo e cada um custa R$ 1.172 por mês. Os internos têm o direitobet 666abandonar o tratamento a qualquer momento, mas nem sempre é o que ocorre na prática.
Uma das principais críticas feitas por especialistas e procuradores ao modelo passa pela relação entre o tratamentobet 666dependentes químicos e proselitismo religioso.
Das quase 2 mil comunidades terapêuticas no país, segundo estudo do Ipea (institutobet 666pesquisa vinculado ao Ministério da Economia), 82% disseram ter ligação com igrejas e organizações religiosas - 40% pentecostais e 27% católicas.
A leitura da Bíblia é uma atividade diáriabet 66689% delas, e a participaçãobet 666cultos e cerimônias religiosas é obrigatóriabet 66655%.
Segundo as vistorias feitas pelo CFP e o MPF, grande parte das 28 instituições não oferecia liberdade religiosa - ou seja, internos eram punidos ou expulsos caso não participassem dos cultos.
Uma das denunciadas foi a Jovem Maanaim, ligada a uma igreja evangélica da cidade mineirabet 666Itamonte, a 385 kmbet 666Belo Horizonte. A instituição firmou um novo contrato com o governo federalbet 666dezembro passado, durante a gestão Michel Temer, dois meses após a divulgação da vistoria.
Neste ano, a entidade já recebeu R$ 146,5 mil dos R$ 281 mil previstos no contrato. Desde 2014, a comunidade obteve R$ 911 mil do erário.
De acordo com o relatório, a Jovem Maanaim só concede alta terapêutica aos dependentes químicos se eles se converterem ao Evangelho.
"Como não há acompanhamento da evoluçãobet 666cada caso, o único critériobet 666alta é a conversão e adoção dos preceitos religiosos cuja demonstração pública e convencimento dos obreiros constituem a ideiabet 666tratamento concluído. Há certo obscurantismo", afirma o documento.
Uma travesti relatou ter sido proibidabet 666vestir roupas femininas, pois o pastor teria lhe dito que "aquele comportamento era possessão do espírito maligno ou 'pombagira'" - segundo o mapeamento do Ipea, os acolhidos não têm permissão para escolher a própria roupabet 66638% das comunidades terapêuticas.
A unidade negou todas as irregularidades apontadas, afirmando que o relatório é enviesado. "A vistoria foi realizada por uma pessoa que não é qualificada para o trabalho, nada ali é fidedigno", disse Marcos Vinicius Vitorino, gestor administrativo da casa.
Ele também refuta acusaçõesbet 666maus-tratos ebet 666faltabet 666liberdade religiosa. "Há pessoas que inventam que foram abusadas para sair da comunidade. E aqui temos pessoas ateias e católicas", disse.
'Momentos devocionais'
A Esquadrão da Vida,bet 666Montes Claros (MG), também foi acusadabet 666proselitismo religioso - ela vai receber R$ 253 mil do governo.
"Não há liberdade religiosa, na medidabet 666que todos são obrigados a participar dos momentos denominados 'devocionais'. A cada dia, um interno é responsável pelo devocional, que significa escolher uma parte da Bíblia para ser lida. O interno que não se apresentar para o momento da reza será disciplinado (punido)", diz o relatório.
Após a publicação da reportagem, a entidade afirmou que "repudia" as informações relatadas pelo documento do MPF, negando qualquer proselitismo religioso. "Nestes maisbet 66627 anosbet 666existência nunca ocorreram tais fatos, e a instituição nunca deixoubet 666cumprir a lei que regulamenta o setor", disse,bet 666nota.
Na comunidade Jovem Ebenezer,bet 666Seropédica (RJ), os fiscais também relataram que cultos evangélicos diários são o ponto mais importante do tratamento. "Quando uns se mostram mais isolados, ou quando destoam do comportamento tido como desejável, eles são imediatamente interpelados por um dos monitores, que os chamam ao convívio, à fé, à crença, às normas desejáveis. A não adesão implica no afastamento."
A unidade vai receber R$ 422 mil dos cofres federais neste ano.
Responsável pela entidade, o pastor Aldemir Gomesbet 666Paiva afirmou que "ninguém é obrigado a se converter ali, já que a presençabet 666todos dos acolhidos é voluntária, e o trabalho espiritual serve mais como um alento para quem está nessa situação (de vício)".
Afirmou ainda que a instituição atua dentro da legislação e que os acolhidos são acompanhados individualmente por psicólogos e profissionais da rede públicabet 666saúde.
Para Jardel Fischer Loeck, pós-doutorandobet 666Saúde Coletiva na Unisinos, integrante da Associação Brasileira Multidisciplinarbet 666Estudos sobre Drogas e autorbet 666um dos estudos do volume do Ipea "Comunidade Terapêuticas - Temas para Reflexão", nem todas as entidades buscam necessariamente (ou unicamente) a conversão religiosa dos acolhidos, mas esse método se repetebet 666muitos centros.
"Ao mesmo tempo, a busca pela transformação moral pode passar pela conversão religiosa. O mais importante é que se tratam, sim,bet 666projetosbet 666conversão (lida dessa maneira mais ampla) e que tendem a não comportar especificidades individuais. Pelo contrário, buscam homogeneizar as experiências individuais para que a retórica terapêutica sirva a todos, apesar das diferenças entre as pessoas", afirma Loeck.
Pablo Kurlander, gestor-geral da Federação Brasileirabet 666Comunidades Terapêuticas, critica generalizações sobre o segmento.
Segundobet 666entidade, uma comunidade terapêutica precisa oferecer, entre outras coisas, acolhimento apenas voluntário, garantiabet 666direitos básicos como liberdade religiosa e acesso ao mundo externo, acompanhamento individual, atendimento multidisciplinar, ligação com a rede públicabet 666saúde e fiscalização frequente.
Isolamento e abstinência dos internos
Outra controvérsia se refere à abstinência mediante isolamento dos dependentes químicos, meta da nova política sobre drogas. Os pacientes chegam a ficar internados por meses e até anos, muitas vezes sem qualquer contato com o exterior.
Essa lógica, segundo o Conselho Federalbet 666Psicologia, pode se assemelhar à dos manicômios, que perderam força no país desde a reforma psiquiátricabet 6662001.
Quem é a favor dessa linha afirma que é preciso retirar o usuário do ambientebet 666consumo da droga e que só a interrupção do uso pode acabar com o vício.
Em geral, entidadesbet 666classebet 666psicólogos ebet 666médicos costumam apoiar a chamada políticabet 666reduçãobet 666danos - conjuntobet 666práticasbet 666saúde adotadasbet 666diversos países com o objetivobet 666diminuir os efeitos causados pelo usobet 666drogasbet 666pessoas que não conseguem ou não querem parar -, e a abstinência pode ser uma das abordagens.
"A generalização do idealbet 666abstinência total como desejável para todos leva,bet 666muitos casos, pessoas a alternarem entre estadosbet 666intoxicação total e abstinência total. Ou seja, é uma leitura totalizante do indivíduo que usa drogas, que não abre margem para arranjos diferentes, particulares, relacionados ao usobet 666drogas e ao cuidadobet 666saúde", afirma Jardel Loeck.
Por outro lado, embet 666tesebet 666doutorado sobre comunidades terapêuticas, Pablo Kurlander aponta para "a abstinência como fator que aumenta a chancebet 666melhores indicadoresbet 666qualidadebet 666vida, podendo ser tanto causa quanto efeito, mas isso não significa que ninguém possa ter qualidadebet 666vida boa se fizer uso não problemáticobet 666substâncias psicoativas".
O psicólogo Paulo Maldos, membro do Conselho Federalbet 666Psicologia, participou das visitas às comunidades Salve a Si e Cavernabet 666Adulão, ambas no Distrito Federal. As duas também foram contratadas pelo governo por R$ 844 mil e R$ 168 mil, respectivamente. No relatório, elas receberam diversas críticas.
"Ambas repetem o isolamento das pessoas, o cortebet 666relações com os familiares até por meiobet 666controle das correspondências, que são lidas por funcionários antesbet 666chegarem aos internos", diz Maldos. "No nosso pontobet 666vista, essa não é a melhor formabet 666enfrentar o problema. Não há trabalho individualizado para cada paciente e não há qualquer projetobet 666vida para ele fora dali."
Na comunidade Cavernabet 666Adulão, os acolhidos chegam a ficar três meses sem qualquer contato com o exterior - a reportagem não conseguiu contato com os responsáveis. Já na Salve a Si, o tempo mínimobet 666internação ébet 666seis meses.
Fundador da casa, Henrique França nega todas acusações contra a unidade, como violaçãobet 666correspondências. "Esse relatório é alimentado por uma ideologia tendenciosa. Quem fez essa vistoria é antirreligião e antifamília", disse. Também afirmou que a unidade passa por vistorias mensais feitas pelo governo do Distrito Federal.
Entidades contratadas pelo governo são obrigadas a oferecer um Planobet 666Atendimento Singular (PAS),bet 666que são registrados o histórico, os dados e o planejamento da saída do acolhido com a anuência voluntária do próprio oubet 666familiares. O acolhimento pode se estender por até 12 meses consecutivos ou intercalados, no intervalobet 66624 meses.
Para Kurlander, da Federação Brasileirabet 666Comunidades Terapêuticas, um dos principais trunfos do modelo é, ante a escassezbet 666equipamentos públicos, ter uma capilaridade muito maior que a rede públicabet 666saúde, principalmentebet 666municípios menores e zonas rurais.
Já Rogério Giannini, presidente do Conselho Federalbet 666Psicologia, afirma que as comunidades terapêuticas trabalhambet 666forma intuitiva - ou seja, não há métodos científicos ou médicos. "A religiosidade é imposta às pessoas. Raramente existe tratamento individualizado ou projeto terapêutico para cada paciente", diz.
Ele também critica a faltabet 666fiscalização e estudos sobre a efetividade dos tratamentos oferecidos. "Não há qualquer estudo do governo para medir o impacto e efetividade desses tratamentos. Não há nada que aponte quais comunidades produziram resultados. É uma política baseadabet 666preceitos religiosos, intuição e ideologia."
Questionado, o Ministério da Cidadania não soube informar qual é a taxa médiabet 666recaída dos dependentes químicosbet 666comunidades terapêuticas financiadas pelo governo federal.
Terapia do trabalho
Pesquisa do Ipea mostrou que 92,9% das comunidades terapêuticas do país usam a laborterapia como método do tratamento. O documento do MPF e do CFP também aponta que várias casas utilizam ex-internos na monitoria dos dependentes químicos - e parte delas não remunera esses funcionários.
Na comunidade Salve a Si, por exemplo, "houve relatosbet 666uma cargabet 666trabalho por um períodobet 666duas horas e meia diárias, no entanto, muitos trabalhavam além desse horário", segundo o relatório dos inspetores.
"Uma pessoa estava lá há dois anos com a justificativabet 666ter se tornado um voluntário trabalhador da casa, porém, sem receber salário e com direito somente a uma ajudabet 666custo". A entidade nega a acusação, dizendo que houve um engano por parte dos fiscais.
Já na Esquadrão da Vida, dois monitores sem formaçãobet 666saúde são os responsáveis pelo local. "Eles trabalham por turnosbet 666sete dias, alternando-se durante o mês. Cuidambet 666todos os detalhes do cotidiano: tocar o sino para demarcar os horáriosbet 666despertar, rezar, trabalhar. Também decidem sobre a utilização dos espaçosbet 666oficina e acompanham as ligações realizadas pelos internos para seus familiares. Os monitores são os principais agentesbet 666'cuidado' da CT."
Mas a cargabet 666trabalho chega a ser mais problemática e afetar a saúde dos internosbet 666outros locais.
O relatório cita o caso da Casabet 666Resgate Emanuel,bet 666Bandeira do Sul (MG). "Não são distribuídos equipamentosbet 666proteção individual para os internos executarem tarefas. A equipebet 666visita recebeu sérios relatosbet 666pessoas que tiverambet 666visão afetada ('queimada') por trabalharem com solda sem a devida proteção."
Embora não faça parte dos novos contratos da gestão Bolsonaro, a Casabet 666Resgate Emanuel recebeu R$ 656 mil do governo federalbet 6662014 a dezembro do ano passado - mesmo após ter sido acusada maus-tratos, ela ainda foi beneficiada por três repassesbet 666verbas.
Para Rogério Giannini, do Conselho Federalbet 666Psicologia, esse tipobet 666terapia é "escandalosa". "Na prática, o que acontece é que as pessoas fazem trabalhos domésticos sem remuneração, como limpeza, manutenção, pintura e até segurança das unidades. São tarefas forçadas que não acrescentambet 666nada", diz.
Disciplina e punições
A disciplina passa por diversos aspectos da rotina, segundo pesquisa do Ipea. Metade proíbe faltas a cultos e cerimônias religiosas e um terço veta que essas pessoas escolham o próprio cortebet 666cabelo. Mesmo a prática mais permitida, assistir à TV, não é indiscriminada - parte só exibe programas religiosos ou noticiáriosbet 666determinados horários.
"O baixo percentualbet 666CTs que permitem que os acolhidos mantenham relações sexuais com seus parceiros (6,3%) e com os demais residentes (0,8%) também é dignobet 666destaque, revelando a quase unanimidade com que a sexualidade dos acolhidos é vista também como problemática e,bet 666alguma forma, associada ao consumobet 666drogas", afirma o Ipea.
Conselheiro do CFP, o psicólogo Paulo Maldos presenciou esses aspectosbet 666suas vistorias. "Relações afetivas e sexuais eram vistas como prejudiciais ao tratamento", relata.
"O trabalho terapêutico é focado na culpa e no remorso. Ou seja, a pessoa é constantemente lembrada dos males que causou à família, às pessoas, aos amigos. Não se fala sobre os pontos positivos da pessoa, mascarando as questões que as fazem mal", diz.
Na comunidade Jovem Maanaim, havia internos presosbet 666quartos por até uma semana como punição por desvios disciplinares, segundo o documento.
"Dependendo do grau da infração, o adolescente, ou a moça interna, permanece dentro do quarto por uma semana, apenasbet 666companhia da Bíblia", escreveram os fiscais com basebet 666depoimentosbet 666pacientes da casa. Outros dependentes, menoresbet 666idade, sequer eram liberados para frequentar a escola, aponta o documento.
"Também foi relatado por diversos internos que a disciplina é rígida, sendo aplicadas penas como lavar panelas e retirar o colchão do interno que, por exemplo, se recusa a participarbet 666cultos. Um paciente psiquiátrico,bet 66662 anos, confirmou já ter sido punido com a retirada do colchão, o que o obrigava ficar deitado na camabet 666alvenaria - pelo fatobet 666nem sempre conseguir participar dos cultos porque sentia muito sono, devido ao usobet 666remédios."
A unidade nega as denúncias.
Já na Casabet 666Resgate Emanuel, os fiscais ouviram relatosbet 666que os internos precisam ficar nus durantes as revistas pessoais.
Em entrevista à BBC News Brasil, Sebastião Silveira, responsável pela comunidade, atribuiu os maus-tratos e desrespeitos à privacidade dos acolhidos, como retençãobet 666documentos e violaçãobet 666correspondência a uma psicóloga que atuava no local à época da vistoria. Segundo ele, a profissional defendia essas práticas para evitar recaídas e vendabet 666drogas dentro da entidade.
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