A saga dos moradoresruaSão Paulo por um copo d'água:

Famíliabarraca embaixo do viaduto Santa Ifigência,São Paulo

Crédito, Felix Lima/ BBC News Brasil

Legenda da foto, Mulher que vivebarracacamping diz que já usou água da chuva para dar banho nos filhos
Moradoresrua na região do Mercado MunicipalSão Paulo

Crédito, Felipe Souza/ BBC News Brasil

Legenda da foto, Reportagem presenciou ratos correndomeio aos colchões onde dormem moradoresruaSP

Silva, por exemplo, relata que já viu pessoas bebendo água do esgoto e que já viveu diversas situaçõesinsalubridade para matar a sede.

"Você é obrigado a pedir para uma pessoa que não tem higiene nenhuma. Uma bebezinha tomar leite (em pó diluído) com restoágua dos outros é embaçado. Você daria isso ao seu filho?".

Ela defende que sejam instaladas tendas que ofereçam banho a moradoresruapontos estratégicos da cidade. "Pode ser gelado mesmo. Nós não somos bichos, só queremos ficar limpos. Já que o governo não me ajudanada, poderia fazer ao menos isso", queixa-se. "Já mostrei que tive dez filhos e não consegui a operação (laqueadura), não recebo Bolsa Família nem nada".

Cobertores, marmitas e água

Com poucas opções para conseguir água por conta própria - a opção mais comum é recorrer a nascentes e torneiras externasalguns prédios públicos -, os moradoresrua dependem da sorte e da ajudavoluntários para ter acesso a água limpa.

O comerciante Eduardo Lira Junior é uma das pessoas que fazem esse trabalho socialforma voluntária. Ele é donoum mercadinho e, alémajudar a famíliaMaria da Silva, permite que outros moradoresrua encham seus baldes, galões e garrafas na torneira do comércio.

Eduardo Lira Junior

Crédito, Felix Lima/ BBC Brasil

Legenda da foto, Comerciante Eduardo Lira Junior permite que moradores encham suas garrafas e galõeságua na torneiraseu mercadinho

Junior conta que os moradoresrua não incomodam e pedem água apenasdois horários para não atrapalhar as vendas: logo cedo, quando a loja está sendo aberta, e pouco antesfechar.

"Desde que não me prejudique, eu faço questãoajudar as pessoas. É só água, que eles precisam para beber e tomar banho. Então, a gente faz questãoceder. Não tem nenhum motivo plausível para você negar água para alguém", afirmou ele.

A psiquiatra e membro do Comitê da PopulaçãoRuaSP Carmen Santana escreveu um livro sobre saúde mental dos moradoresrua e diz que a realidade dessas pessoas é muito semelhante na maior parte das cidades brasileiras, inclusive a dificuldadeacesso à água.

"Esse território é muito parecido. É um territóriouma enorme exclusão e as pessoas vivemcondições muito parecidas", disse. Ela explicou que cidades diferentes podem oferecer padrõesvida distintos para pessoas que vivemcasas, apartamentos, ocupações e favelas. Já para os moradoresrua, que vivem "às margens, a condição é muito parecidatodos os lugares".

Ela conta que2017, na cidadeTeresina, no Piauí, um moradorrua foi impedidoentrar no único centroconvivência que existia na cidade para tomar banho porque ele estava alcoolizado.

"Então, ele resolveu entrar num rio (para tomar banho) e morreu afogado", conta a psiquiatra, que também é professora do departamentosaúde coletiva da (Universidade FederalSão Paulo) Unifesp.

Portas fechadas

A dificuldade para matar a sede é ainda maiormadrugada, quando grande parte dos comércios e postoscombustível fecha.

MarcosMoraes e seu assistente

Crédito, Felix Lima/ BBC News Brasil

Legenda da foto, GCM que entrega cobertores a moradoresrua diz que parte deles diz sentir mais sede do que fome

O guarda municipal MarcosMoraes trabalha há dez anos na corporação e já recebeu homenagens por seu trabalho dedicado aos moradoresrua. Ele afirma à BBC News Brasil que diariamente encontra pessoas com sede, principalmente entre 0h e 7h.

"No momentoque a gente entrega cobertores para eles (moradoresrua), eles nos pedem comida, mas principalmente água. Por isso, carregamos algumas garrafinhas no carro", diz.

O guarda conta que, na semana anterior, encontrou um moradorrua cadeirante que dormia apenas com um cobertor fino enrolado no corpo. Ainda assim o homem disse que sentia mais sede do que frio.

Como funcionaoutros países?

Um balanço feito pelo jornal americano The New York Times apontou que a cidadeNova York tem mais3 mil fontes e bebedouros públicos instaladosparques e ruas. A cidade italianaRoma também tem mais2 mil bebedourosespaçosgrande circulaçãopessoas. Os primeiros foram instalados1874, após pedido do prefeito Luigi Pianciani.

Paris, na França, tem mais1.200 bebedouros públicos. Londres, na Inglaterra, também iniciou uma políticainstalar esses equipamentos para combater o usogarrafas plásticas e saciar a sede não apenaspessoas, mas tambémanimaisestimaçãolocais públicos. O mesmo ocorre no Chile.

Voluntário entrega garrafaságua no centroSão Paulo

Crédito, Felix Lima/ BBC News Brasil

Legenda da foto, Todos os sábados, voluntários da ONG Anjos da Noite distribuem alimentos, roupas, cobertores e água a moradoresrua

São Paulo, a maior e mais rica cidade da América Latina, não tem nenhum bebedouro instalado nas ruas.

Procurada pela reportagem, a prefeitura informou que "há estudos para ampliar o númerobebedouroslocais públicos" e que o assunto chegou a ser discutido2016. A administração municipal afirmou ainda,nota, que "para a implantação do projeto, é precisoautorização da Câmara Municipal, o que não ocorreu até o momento."

A reportagem procurou também a Câmara Municipal que, no entanto, disse que não há nenhum projeto nesse sentido para ser votado.

Procurada novamente pela reportagem após a negativa da Câmara, a prefeitura recuou e disse que não existem projetos voltados ao tema da água potável gratuita. Por telefone, a assessoriaimprensa da administração municipal disse que existem apenas estudos, mas não apresentou nenhum deles ou deu previsão sobre quando alguma medida será proposta.

São Paulo é a cidade que concentra a maior populaçãorua do país. De acordo com os dados dos últimos dois censos, o númeromoradoresrua aumentou14.4782011 para 15.905,2015.

Parque sem torneiras

Moradoresrua da região da Mooca, na zona leste, disseram à reportagem que a prefeitura retirou todas as torneiras do Parque da Mooca depois que eles passaram a usar a água no local.

Um deles, que pediu para não ser identificado, disse que agora precisa andar mais1 km para conseguir encher suas garrafas. Disse também que os donosbares da região estão irritados com a frequência com que eles pedem água.

A reportagem percorreu todo o parque e não encontrou nenhuma torneira, nem mesmo nos banheiros. O local possui pista para caminhada, quadras poliesportivas etênis. Acostumados com a situação, os visitantes costumam levar águacasa para não passar sede.

Bebedouro sem torneira no parque da Mooca

Crédito, Felipe Souza/ BBC News Brasil

Legenda da foto, Reportagem não encontrou nenhum bebedouro funcionandoparque da zona lesteSP

Questionada, a prefeitura não soube informar há quanto tempo o parque da Mooca está sem água. O padre Julio Lancellotti, da Pastoral do PovoRua, diz que o problema se estende há maisum ano.

Para facilitar o acesso à água, o padre permite que os moradoresrua usem a torneirauma paróquia próxima ao parque. Na região, é comum presenciar pessoas lavando roupas e escovando os dentes com a água que conseguiram na igreja.

A prefeitura alega que não retirou os bebedouros e torneiras, mas que "eles foram vandalizados. O mesmo ocorreu com os sanitários. A instalaçãobebedouros com sistema antivandalismo estáfaseplanejamento, assim com a reforma do banheiro", informounota.

Banheiro sem água no parque da Mooca

Crédito, Felipe Souza/ BBC News Brasil

Legenda da foto, Parque da Mooca não tem água disponível nem mesmobanheiros há maisum ano, segundo padre

A administração diz ainda que a entrada principal do parque tem água disponível 24 horas por dia e que a população tem à disposição ofertaágua potávelequipamentos públicos, como parques, centrosassistência social, unidadessaúde e prefeituras regionais.

Masquem é a responsabilidadefornecer água para os moradoresrua?

Já passam das 23h do primeiro sábado do mêsagosto. A reportagem da BBC News Brasil acompanha a distribuiçãomarmitex, roupas, cobertores e água feita por 70 voluntários da ONG Anjos da Noite, que atua há quase 30 anos distribuindo alimentos a moradoresrua.

O grupo se reúne todas as semanasArtur Alvim, na periferia da zona leste, onde passam o dia cozinhando e separando roupas para doar. Por volta das 21h, eles distribuem comida para os moradoresrua da região e seguem para a região do Mercado Municipal, no centro da capital paulista.

Pontogrande circulaçãopessoas e atração turística durante o dia, à noite a região fica quase deserta. A exceção são alguns bares pouco movimentados e a presençaalguns moradoresrua que caminham enroladoscobertores.

Em certo momento, a equipe se divide e apenas homens seguem para uma área mais afastada, onde ficam estacionados caminhões aguardando para abastecer o Mercadão. A reportagem acompanha a distribuiçãoalimentos na área definida pelos voluntários como "mais complicada".

No canteiro sobre o rio Tamanduateí, que corre junto à avenida do Estado, a reportagem presenciou ao menos duas ratazanas e outros ratos menores correndomeio aos colchões onde ao menos dez pessoas dormiam.

Ao serem acordados para receber a comida das doações, todos pedem as garrafaságua, inclusive um moradorrua que passava apressado com dois sacosreciclagem nas costas que,tão grandes, quase encostavam no chão.

"Irmão, normalmente eu tenho que andar quilômetros para conseguir água, você não tem noção. Eu só não te explico melhor porque o ferro velho fecha20 minutos e eu ainda preciso ganhar meu dia", disse antessair às pressas sem falar o nome.

Fundador da ONG Anjos da Noite, Kaká Ferreira

Crédito, Felix Lima/ BBC News Brasil

Legenda da foto, FundadorONG que ajuda moradoresrua diz que disponibilizar águalocais públicos é básico

Em pouco maisuma hora, o grupo distribuiu 800 refeições, a mesma quantidadegarrafaságua e dezenaspeçasroupa e cobertores para moradoresrua. O fundador da ONG, Kaká Ferreira, diz que voluntários fizeram uma vaquinha para comprarúltima hora as garrafas500 ml, já que naquela semana não havia nenhuma doaçãoágua.

"O que custa para um governo colocar bebedouros nesta cidade? Existe um descaso total do poder público. Estou há 30 anos neste trabalho e já vi muita mudançapolíticagoverno, mas ação nessa direção a gente não vê. Você não pode colocar uma torneira e um bebedouro na rua? Quebra sim, mas a cidade tem que ter manutenção e zeladoria. A gente não pode ver uma pessoa morrersede ou doente porque não consegue o básico, que é a água", disse Ferreira.

Ele acrescenta que, muitas vezes, o moradorrua diz que precisa maiságua que comida. "Antes, a gente distribuía suco, mas fizemos uma pesquisa e eles disseram que esse não era o ideal. Falaram assim: 'Kaká, suco não mata a sede. O que mata a sede é água'".

O professordireito constitucional na PUC-SP edireito econômico na USP André Ramos afirma que a Constituição não determinaquem é a obrigaçãofornecer água à população. O docente afirma ainda que o CódigoÁguas, da União, afirma apenas que ela é um bem comum, mas sem atribuir a responsabilidadeseu fornecimento.

"Devemos compreender como dimensão da dignidade, um direito básico. E, assim,responsabilidadetodos os entes federativos. O problema é o poder público assumir voluntariamente a responsabilidade pela execução desse dever. Mesmo com leis e Constituição taxativas, sabemos que os direitos prestacionais sofrem resistência do Estado", afirma.

Quanto mais limpo, mais fácil

Ao ladoum viaduto no bairroArtur Alvim, na periferia da zona lesteSão Paulo, o sapateiro Santiago Cardoso, dorme na calçada ao ladosuas roupas, sem nenhuma cobertura. "Eu tenho 41 anos e acho que não chego aos 42."

Soropositivo, usuáriocrack e quase cego do olho esquerdo, ele conta que caminha com dificuldade por cerca15 minutos para tomar um banho "congelante" numa bica no bairro vizinhoItaquera. Mas conta que a água "é gelada demais" e que a fraqueza que sente no corpo o levou a ficar um dia e meio sem ter o que beber.

Santiago Cardoso na calçada onde viveArtur Alvim, na zona leste

Crédito, Felix Lima/ BBC News Brasil

Legenda da foto, Soropositivo e quase cegoum olho, Santiago diz que sente saudadequando tomava banho quente e tomava água gelada emcasa

"Eu fiquei sem água porque eu não conseguia me levantar. Eu estou debilitado por causa do vírus HIV e tem vezes que fico três dias deitado", afirmou.

Ele afirma também que é tratado com preconceito sempre que pede água, até mesmobaresconhecidos.

"Eles (donos) falam assim: 'pega um copo descartável para ele'. A gente não é bicho. (Quando ouço isso), eu penso que sou um lixo. Peço para encher garrafa aágua e muitas vezes olham torto e não enchem. Dizem que estáfalta", conta, chorando à reportagem.

Eliana Toscano e seu companheiro na avenida do Estado

Crédito, Felix Lima/ BBC News Brasil

Legenda da foto, Professora que mora nas ruas há três meses diz que quanto melhor a aparência, mais fácil é conseguir água

Formadaletras, a professora Eliana ToscanoAraújo mora há três meses na rua com o companheiro embaixoum viaduto na avenida Santos Dumont, na região central da capital. Ela diz que a facilidade para conseguir água é proporcional à aparência da roupa que a pessoa está vestindo.

"Se você estiver muito feio, eles negam na hora. Negam até o acesso ao estabelecimento", conta Araújo.

Ela diz também que tem mais facilidade para conseguir água que o marido, principalmente quando ele está sem camiseta, com suas tatuagens à mostra.

Mas ainda assim Araújo lembra que costuma ficar tanto tempo desidratada que chega a sonhar que está matando a sede. "Essa noite, eu sonhei que estava bebendo água na mão. Ah, que delícia!".

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