'Dia do Índio': Como cogumelos descobertos por Yanomamis estão conquistando chefs renomados:slot 777

Cogumelo Sonöma
Legenda da foto, Indígenas utilizam cogumelos como base da dieta e como proteína substituta da carne | Foto: Arquivo Noemia Ishikawa

"No mundo inteiro, quem tem o conhecimento sobre os cogumelos são os povos tradicionais. Inclusive na Europa e na Ásia,slot 777onde vêm os cogumelos que mais consumimos no Brasil", explica o antropólogo Moreno Saraiva, líderslot 777um levantamento do conhecimento da culinária yanomami feito pelo Instituto Socioambiental (ISA).

O levantamento deu origem à obra Ana Amopö: Cogumelos Yanomami, o primeiro livro sobre cogumelos comestíveis do Brasil e o primeiroslot 777língua indígena a ganhar o Jabuti, maior prêmio literário brasileiro, na categoria Gastronomia,slot 7772017.

Nele, são descritas 15 espécies comestíveis da Amazônia consumidas pelos Sanömas, subgrupo dos Yanomami - sete delas registradas cientificamente pela primeira vez.

Cogumelo Sanöma
Legenda da foto, Cogumelos nascemslot 777épocas diferentes do ano,slot 777acordo com o progresso da roça dos Yanomami | Foto: Moreno Saraiva/ ISA

Uma espécieslot 777fungo pode produzir tantas toxinas diferentes, dizem os pesquisadores, que sem saber o que procurar, é quase impossível saber se ele pode ser prejudicial à saúde ou não.

"Sempre dá insegurança, porque eu mesmo não consigo distinguir sempre. Tenho medoslot 777entrar na floresta e achar que é uma espécie que eu conheço e ser uma espécie nova. Só conhecemos 3% das espéciesslot 777fungos das cercaslot 7774 milhões estimadas para o mundo", disse à BBC Brasil a micologista (especialistaslot 777fungos) Noemia Kazue Ishikawa, do Instituto Nacionalslot 777Pesquisas da Amazônia (Inpa), que também participou do projeto.

"Nós sempre estamos nos deparando com coisas novas. Já os Yanomami têm segurança, têm o conhecimento deles e conseguem identificar os grupos que sempre comem."

Escassez

Os Sanömas vivem nos Awaris, parte da área Yanomami no extremo noroesteslot 777Roraima, quase na fronteira com a Venezuela.

Segundo Saraiva, o projeto foi motivado pela necessidadeslot 777registrar o conhecimento dos indígenas sobre os alimentos que a floresta oferece para as novas gerações - que vivemslot 777comunidades maiores e mais sedentárias do que as anteriores.

"A regiãoslot 777que eles vivem sofreu um impacto grande da presença dos não indígenas e causou uma sedentarização muito grandeslot 777comunidades que eram seminômades. Isso gerou uma superexploração dos recursos ambientais da região. A população cresceu muito e começou a haver escassezslot 777alimentos", explica.

A partir daí, o instituto ajudou a formar pesquisadores indígenas, que soubessem catalogar e registrar cientificamente o conhecimento tradicional sobre as espécies - maisslot 777400 delas, incluindo animais e vegetais.

O resultado é uma enciclopédia dos alimentos Yanomami, lançada desde 2015 por partes - o livro dos cogumelos é a segunda delas.

"Toda a alimentação deles é incrível. É tudo processado por eles, e são ingredientes completamente diferentes dos que usamos nas cidades, com a exceção da mandioca", conta.

Pela primeira vez nesse tiposlot 777projeto, os livros foram completamente escritosslot 777língua Yanomami e só depois traduzidos para o português. O resultado final, que venceu o Jabuti, está nas duas línguas.

"Eles têm escolas e processosslot 777formação há algumas décadas, mas sempre recebiam livrosslot 777português, e ninguém sabia lerslot 777português. Quando eles viram o livroslot 777verdade escrito na língua deles foi muito emocionante", relembra o antropólogo.

Expediçãoslot 777investigaçãoslot 777cogumelos Sonöma
Legenda da foto, Pesquisador japonêsslot 777cogumelos fez parteslot 777projeto que catalogava conhecimento botânico e gastronômico dos indígenas | Foto: Arquivo Noemia Ishikawa

Mistério do cultivo

Para Noemia Ishikawa, a busca pelos cogumelos dos Yanomami é a realizaçãoslot 777um projeto que começou há 20 anos, quando ela era uma aluna da graduação - e se perguntava se seria possível estudar o assunto no Brasil.

"Em um congresso, o diretor do Inpa me contou que os Yanomami conheciam várias espéciesslot 777cogumelos. Eu não tinha ideia, ainda trabalhava com shitake. Ele me chamou para trabalhar lá e disse: 'Venha, a Amazônia precisaslot 777você'. E eu pensei: 'Um dia eu vou'", conta.

"Algumas das espécies que registramos agora eu já conhecia há anos, mas finalmente peguei nas mãos pela primeira vez. Fiquei muito feliz, porque eu vinha me preparando tanto para aquilo, como uma atleta. Tudo o que eu estudei nesses anos todos me deu as respostas que a comunidade queria."

Uma destas respostas, diz ela, era o porquêslot 777aquela região ter mais cogumelos comestíveis do que outras na floresta. Mas, para resolver o mistério, foi preciso trazer o especialista Keisuke Tokimoto, do Institutoslot 777Micologiaslot 777Tottori, no Japão.

"Descobrimos que é a maneira como eles preparam a roça que promove o surgimento desses cogumelos. Eles não apenas encontram as espécies. Sem eles, não seria possível tê-las ali", explica.

Capoeira nos Awaris
Legenda da foto, Yanomamis usam partes da floresta como roçaslot 777mandioca durante quatro anos, e depois deixam que elas se recuperem | Foto: Moreno Saraiva/ ISA

Tudo começa com a mandioca: os Yanomami cultivam-na o ano inteiroslot 777um sistemaslot 777rotaçãoslot 777locaisslot 777cultivo. Primeiro, eles identificam um local propício. Depois, derrubam a árvores e queimam as que estão secas.

"Não é o mesmo que desmatar a região. É uma atividade que respeita a floresta e espera o tempo da natureza", explica Ishikawa.

Uma vez que a terra queimada esfria, as mudasslot 777mandioca são plantadas. E três meses depois, começam a aparecer os primeiros cogumelosslot 777troncos caídos que não foram completamente queimados.

"A madeira caída é alimento para os fungos. O fatoslot 777eles deixarem os troncos ali é essencial para que existam (os cogumelos). E os índios também dispersam os cogumelos, porque os transportam até as aldeias."

Depoisslot 777quatro anos, a roça yanomami deixaslot 777produzir mandioca e é abandonada. Mas seu períodoslot 777recuperação, até se tornar floresta novamente, é quando brotam,slot 777uma vez, todas as 15 espécies comestíveisslot 777cogumelos.

Fascínio

Uma vez colhidos, os cogumelos são embrulhadosslot 777folhas e levados para as aldeias. Lá, são assados na brasa junto com beiju (massa feita com farinhaslot 777mandioca) e banana, cozidos com sal e pimenta ou viram pratos mais complexos, misturados com caranguejo, por exemplo.

"Tem uma coisa nos cogumelos dos Yanomamis que é o tchan, na minha opinião. Lá só dá para desidratá-los no sol ou no fogo. E o sabor do defumado no fogo é algo que, na maioria dos cogumelos que consumimos hoje, se perdeu", diz Noemia Ishikawa.

O sabor - que no casoslot 777algumas espécies é próximo do shitake e,slot 777outras, chega a ser naturalmente picante - atraiu chefs famosos como Alex Atala e o catarinense Felipe Schaedler, do premiado restaurante Banzeiro,slot 777Manaus.

Cogumelo Sanöma
Legenda da foto, Índígenas preparam os cogumelos na brasa com banana e beiju ou cozidos com sal e pimenta | Foto: Moreno Saraiva/ ISA

"Eles têm um sabor pronunciado, com bastante umami (um dos cinco gostos básicos do paladar humano). São muito bons para caldos e risotos. Uns são mais fibrosos e duros, por isso usamos uma mistura delesslot 777pó. Já outros podemos mastigar e se dissolve na boca. Têm uma crocância gostosa e um cheiro incrível", disse Schaedler à BBC Brasil.

"Estou usando nos pratos há dois anos e as pessoas adoram. Chego a ficar sem o suficiente porque pedem demais. Além do sabor, as pessoas entendem que estão comendo um pouco da biodiversidade da Amazônia", diz.

Atala, porslot 777vez, trouxe o ingrediente para seus restaurantesslot 777São Paulo e os chamaslot 777"fascinantes".

"Seis anos atrás, tive os primeiros contatos com o Inpa e ouvi falar sobre o estudo formal dos cogumelos. Essa informação, alémslot 777me impressionar, me remeteu ao anoslot 7772003, quando,slot 777meu primeiro livro, escrevi que não era possível que no Brasil não houvesse cogumelos comestíveis", disse à BBC Brasil.

"O estudoslot 777cogumelosslot 777terras brasileiras é muito anterior a isso, mas, infelizmente, a cozinha e a pesquisa e a ciência não souberam conversar para que as coisas andassem mais rápido."

Pesquisadores com Alex Atala
Legenda da foto, Equipeslot 777cientistas registrou e ajudou a identificar cogumelos conhecidos pelos pesquisadores Yanomami | Foto: Arquivo Noemia Ishikawa

'Troca justa'

Os pesquisadores também comemoram o fatoslot 777que, além do livro, conseguiram transformar os cogumelos dos Sanömaslot 777um produto que, pouco a pouco, chega a mercados especializados no Brasil.

"A recepçãoslot 777geral foi muito boa, mas sabemos que ainda é um produto mais caro do que gostaríamos. Para chegar à mesa das pessoas e no mercado dá trabalho. São diasslot 777caminhada, pega-se um barco, pega-se um pequeno avião na Floresta Amazônica para chegarslot 777Boa Vista, que está há 5 mil quilômetrosslot 777São Paulo, por exemplo", diz Moreno Saraiva.

"E queremos pagar um preço justo aos Yanomami. Ninguém tem lucroslot 777verdade com essa cadeiaslot 777produção", diz Moreno Saraiva.

Os cogumelos são coletados pelos índios Sanöma nos Awaris, que ganham por quantidade entregue ao membro da aldeia que organiza a coleta.

"Todos os Yanomami hoje têm demanda por produtos manufaturados da cidade para fazer as coisas básicas daslot 777vida: sandálias Havaianas, sabão para lavar roupa, facão, machado para a construção, sal, fósforo para acender fogo. Por isso, estão buscando projetosslot 777geraçãoslot 777renda com o conhecimento que têm", explica o antropólogo.

"Eles podem escolher se recebem pela coleta dos cogumelosslot 777dinheiro ouslot 777mercadorias. Temos uma ficha com os produtos que eles mais pedem e o preçoslot 777gramas. Por exemplo, um parslot 777Havaianas custa 50 gramasslot 777cogumelosslot 777qualquer espécie. E um facão custa 75 gramas."

Cogumelo Sanöma
Legenda da foto, Os Yanomami acreditam que fotografias podem roubarslot 777alma; por isso, há poucos registrosslot 777suas atividades | Foto: Moreno Saraiva Martins/ISA

O que os indígenas querem, diz Saraiva, é ter "uma troca mais justa" com a sociedade fora das aldeias.

Aos que acham estranho que comunidades indígenas sintam necessidadeslot 777fósforos, chinelos ou facões, o antropólogo lembra que o contato com os colonizadores europeus - maisslot 777500 anos atrás - transformou profundamente todos os povos, mesmo os mais isolados.

Essa transformação não os torna menos indígenas, afirma, mas também não tem volta.

"Mesmo sem eles terem contato direto com os europeus, sabemos que indígenasslot 777todo o continente recebiam as ferramentasslot 777metal por complexas redesslot 777trocas. Os produtos viajavam milharesslot 777quilômetros nessas redes. Antes mesmoslot 777conhecer europeus, os Yanomami já conheciam essas ferramentas."

"Hoje, a vida cotidiana deles está baseadaslot 777alguns produtos manufaturados, sim. Por que querem Havaianas e fósforos, se podem andar descalços e fazer fogo? Ora, porque é mais fácil, seguro e prático."

Para Noemia Ishikawa, cujo avô foi um dos pioneiros do cultivo do cogumelo japonês shitake no Brasil nos anos 1960, levar as espécies dos Yanomami para a gastronomia é o "amarrarslot 777pontas" que pode permitir ao país dar um salto na produção sustentávelslot 777alimentos locais.

"Vemos estudos sobre cogumelos cultivados por indígenasslot 777todos os países da América Latina há decadas. Mas ninguém conseguiu levar um produto ao mercado. Me pergunto por que cultivamos toneladasslot 777cogumelos da Europa e da Ásia se temos cogumelos do Brasil", diz.

"Dá alegria ver que o cogumelo pode ser uma fonteslot 777renda para os indígenas. E é emocionante ver o quanto aquelas espécies também são importantes na dieta deles e devem ter ajudado que eles chegassem nos diasslot 777hoje. As pessoas precisam saber disso."