Das peças indígenas a fósseis: os itens culturais brasileiros que estão ou correm riscoir parar no exterior:
Segundo pesquisadores, os exemplares que estão na Dinamarca, na França, na Itália, na Bélgica, na Alemanha e na Suíça saíram do Brasil como consequência da invasão holandesa no Nordeste. Com a expulsão dos holandesesPernambuco no século 17, os mantos acabaram sendo levados para a Europa - ainda que não se saiba exatamente como chegaram aos museus onde estão hoje.
Por e-mail, o Nationalmuseet disse à BBC Brasil que o item constaregistros do museu que datam1689 e admitiu que não há "conhecimento sólido" sobreprocedência.
A instituição afirmou que, por"longa tradiçãodiálogos positivos e trocas globais", é uma prática recorrente o empréstimopeças a museus do exterior. O inícioum processodevolução, porém, dependeum pedido oficial do país - o que, segundo o Nationalmuseet, nunca foi feitorelação ao manto tupinambá.
Patrimônio nacional
Para além dos mantos tupinambás, o Brasil abasteceu - e continua abastecendo - acervos estrangeiros com peças arqueológicas, etnográficas e fósseisdinossauros e animais pré-históricos.
Mas, se no passado, o colonialismo foi responsável pelas perdas, hoje o tráfico ilegalobrasarte e fósseis é o maior responsável pelo problema.
Atualmente,acordo com o Ministério das Relações Exteriores (MRE), o tráfico ilegalfósseis oriundos da região do Crato, na Bacia do Araripe (CE), é a principal áreapreocupação do Brasilrelação à evasãopatrimônios nacionais. Alguns fósseis chegam a ser ofertadossites especializados na internet. Uma lei1942 criminaliza a saídafósseis do território nacional.
A pasta diz já ter feito questionamentos formais sobre a procedênciaalguns itens alocadosmuseus internacionais, mas verificou-se que os bensquestão não estavam nestes acervos.
O cenárioevasãobens culturais como esses fez com que a célula brasileira do Conselho Internacional dos Museus (ICOM) - rede que reúne instituições do tipotodo o mundo - passasse a desenvolver um mapeamento do que estárisco no patrimônio cultural nacional. Esse dossiê, batizadoRed List, faz um diagnostico dos tiposbens mais vulneráveis - gerando, por exemplo, cartilhasorientações para agentes que trabalham nas alfândegas por onde o patrimônio pode acabar escapando ilegalmente.
No caso do Brasil, há pelo menos três tiposbens que deverão estar na Red List brasileira: itens arqueológicos, fósseis e peças do Barroco. É o que indica Maria Ignez Mantovani Franco, presidente do ConselhoAdministração do ICOM no Brasil, que prevê que uma primeira versão do dossiê seja concluída ainda2018.
Apesar da situação, segundo o presidente do Instituto BrasileiroMuseus (Ibram), Marcelo Mattos Araujo, o Brasil não acumula uma quantidade expressivareinvindicações oficiaispeças que estão no exterior.
Tartaruga mais antiga do mundo
No que diz respeito aos fósseis, porém, há iniciativas incipientesrepatriação.
Há quase seis anos, o governo brasileiro iniciou um processo para repatriar seu primeiro fóssil. Trata-seum exemplar da tartaruga mais antiga do mundo, a Santanachelys gaffneyi, hojeuma universidade no Japão.
Atualmente, esse é um dos quatro fósseis que a Procuradoria da República no Ceará tenta recuperar por meiocooperação com instâncias jurídicas do exterior. Os outros três itens com processosaberto estão na França, Alemanha e Itália.
"O trabalhorepatriação estácurso", disse à BBC Brasil o procurador da República Rafael Rayol. "Todo mês temos notíciaspessoas que transportam, às vezes até como suvenir, fósseis do Araripeforma irregular. Há também uma rede internacionaltráfico, e a Europa é o maior mercado. Em geral, os consumidores finais são colecionadores, mas vez ou outra esses itens chegam também a universidades."
Segundo Renato Pirani Ghilardi, presidente da Sociedade BrasileiraPaleontologia, é sabido que existem pesquisadores que receptam fósseis no exterior - e estes acabam muitas vezes figurandoestudos científicos prestigiados.
"Nos últimos cinco anos, posso apontar várias espécies que foram encontradas no Brasil, mas descritas lá fora", disse Ghilardi à BBC Brasil. "Nas publicações, eles dizem que o material estudado estava perdidoalguma coleção antiga, anterior a 1942 (quando foi implantada a legislação que criminaliza a saídafósseis). Não achamos que as ciências devam ter fronteiras. Mas poderia ter uma regulação maior, com esse material voltando depoisum tempo, por exemplo".
Legitimidadequem pedevolta e custosdevolução
No entanto, a experiência mostra que, na prática, a restituiçãobens culturais esbarraquestões complexas: da legitimidadequem pedevolta aos custos da devolução.
"Pelas regras da ONU e da Unesco, uma vez que a negociaçãodevolução é bem-sucedida, o país reivindicante deve arcar com as despesas da restituição. Isso implica que o país deve estar disposto a trazer o objeto", aponta Luiz Carlos Borges, pesquisador do MuseuAstronomia e Ciências Afins (MAST), no RioJaneiro.
E, quando a consideração dos custos envolve também a manutenção e exibição dos artefatos, alguns especialistas são reticentes sobre as vantagensreaver itens do patrimônio brasileiro no exterior.
"A gente não pode reivindicar sem ter condiçõesreceber. Isso é calamitoso no Brasil", afirma Lúcio Menezes Ferreira, professorDepartamentoAntropologia e Arqueologia da Universidade FederalPelotas (UFPel), no Rio Grande do Sul. "E a repatriação não é receber apenas por receber, tem que haver um desejo das comunidades locais ou uma demanda dos pesquisadores que justifique o pedido."
Mesmo aqueles cientistas brasileiros cujo materialpesquisa nacional está a milharesquilômetrosdistância se dividem sobre trazer as peçasvolta ou não.
No século 19, o pesquisador dinamarquês Peter Lund descobriu que a região mineiraLagoa Santa guardava artefatos e resquíciosatividade humanamais10 mil anos. O material abasteceu museus europeus ao redor do mundo.
O pesquisador Danilo Vicensotto, da Universidade Federal do Rio Grande, estima que existam cerca30 crânios humanos retirados dalimuseus como oZoologia da UniversidadeCopenhague, na Dinamarca, e o MuseuHistória NaturalLondres, na Inglaterra. Isso fora outros vestígios, como fósseisanimais.
"Às vezes temos que viajar para o exterior para fazer pesquisas. Mas, mesmo assim, não sei se seria a favortrazer as peças para cá. Acho que não. A gente, com raríssimas exceções, não tem onde colocar o material. Faltam obra, pessoal, verba, manutenção. A ciência no Brasil é a última das prioridades, vista como um artigoluxo, supérfluo", avalia Vicensotto.
Para a museóloga Maria Ignez Mantovani Franco, ainda que o Brasil tenha legitimidade para exigir repatriações, a projeção internacionalpeças brasileiras é um aspecto que deveria ser levadoconta nesse debate.
"Quando o Abaporu (pinturaTarsila do Amaral) foi para o Malba (MuseuArte Latino-AmericanaBuenos Aires, na Argentina), foi uma guerra. Muitas pessoas foram contra. Mas eu acho que aquele é um museu latino-americano, então ter uma peça expressiva ali é significativo", avalia.
"Há uma importância tambémque a cultura brasileira e o Brasil sejam compreendidosoutras dimensões no exterior. É claro que não precisa ser com transposição do acervo todo, mas há outros caminhossensibilização, como exposições temporárias."
Quando os museus brasileiros são questionados
O Brasil, do seu lado, também já viu seus museus envolvidosdemandas por restituição.
O caso mais famoso, e nunca atendido, foi o pedido paraguaio pela devolução do CanhãoCristiano, símbolo da Guerra do Paraguai (1864-1870) e hoje parte do acervo do Museu Histórico Nacional, no RioJaneiro.
Já as demandas por objetos usurpadosjudeus durante a Segunda Guerra Mundial, uma grande discussão no mercado internacionalarte, também chegaram ao país.
O MuseuArteSão Paulo Assis Chateaubriand (Masp) tem peçasseu acervo reivindicadas por herdeiroscolecionadores judeus perseguidos durante a guerra - como a pintura O Casamento Desigual,autor desconhecido, e uma coleçãoesculturasbronze do francês Edgar Degas.
Segundo o museu, porém, essas e outras peças nunca foram requisitadas formalmente, com "embasamento ou provas concretas", pelas famílias.
"O museu apoia a repatriação aos herdeirosobras cujo histórico e procedência sejam comprovadosjuízo (...) No entanto, também tem a missãozelar por seu acervo, que é patrimônio nacional, e não pode agir a partirsolicitações informais", afirmou o Maspnota.