Com crise e altaviolência, é preciso aumentar responsabilidade das Forças Armadas na segurança, diz Beltrame:
O gaúcho Beltrame foi secretárioSegurança Pública do Rio entre 2007 e 2016, durante toda a gestãoSérgio Cabral (PMDB), hoje preso e alvo11 denúnciascorrupção. Ele afirma que nunca teve "noção" das irregularidades e diz ver com muita tristeza o que acontecia.
Em entrevista à BBC Brasil, Beltrame diz ter largadovez o serviço público e se diz aliviado com a nova rotina no setor privado. É consultorsegurança corporativa da Vale, e viaja frequentemente para acompanhar operações da mineradoralocais como Pará, Maranhão e Moçambique.
Apesar da situação crítica enfrentada pelo Rio, Beltrame defende o seu legado. Afirma que trouxe "esperança" e que as UPPs - as UnidadesPolícia Pacificadora instaladas dentrofavelas, o principal marcosua gestão - devem ser mantidas.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista.
BBC Brasil - Há uma piora generalizada dos indicadoresviolência no Rio. Após um períodootimismo, para muitos a sensação hoje éestaca zero. Após uma década na SecretariaSegurança Pública, como o senhor se sente com a situação que o Rio enfrenta hoje?
José Mariano Beltrame - Eu confesso que me sinto apreensivo. Primeiro como cidadão, e segundo por ter sido secretario por dez anos. Tenho visto muitas críticas, principalmente ao programaUPPs. Mas essas críticas esquecemanalisar os índices.
Se você analisar os dados produzidos pelas UPPs, você vê que é um projeto exitoso. Foi um momento exitoso da segurança no RioJaneiro. Saímos da faixa40 homicídios por 100 mil habitantes e chegamos a 20. Foram 21 mil vidas salvas. Isso não é banal.
Hoje, o Estado e o país se enterraram numa criselegitimidade, institucional, financeira.
Acho que o país não supera esse problema sem mudanças no CódigoProcesso Penal e no Código Penal. Não que queira encarcerar as pessoas. Mas acho que existe um descolamento entre o que diz a lei e a realidade. O povo não se sente representado pelas decisões judiciais. O Poder Judiciário é um regulador da sociedade, deve dar exemplo às pessoas do que vale ou não a pena fazer.
BBC Brasil - O sr. diz que implementou uma política exitosa. Realmente vimos os índicesviolência caírem e se manteremum patamar mais baixo durante boa parte dagestão. Mas isso não se manteve. Por que essa política não foi sustentável?
Beltrame - Uma política pública não pode ficar às custasuma ou duas instituições. Isso foi dito desde o início do projeto. O projeto pode ter lá suas falhas, mas teve muito mais resultados positivos do que negativos.
O que faltou foi o que sempre preguei: as ações sociais eordem pública, para abrir vetoresdesenvolvimento.
Querendo ser pedagógico: o desembarque na Normandia acabou com a Segunda Guerra Mundial. Mas não foram os soldados que desembarcaram na Normandia que fizeram uma Europa nova ou executaram o Plano Marshall (planorecuperação da Europa implementado pelos EUA no pós-guerra). Acho que faltou para nós foi exatamente o Plano Marshall.
Muita gente critica a Polícia Militar, a Polícia Civil. Mas elas foram para a frente. A gente colocou a cara e fez. Quem não fez não recebe crítica.
BBC Brasil - Como o sr. avalia a crise financeira do Rio e o governoLuiz Fernando Pezão (PMDB), que às vezes parece moribundo mas ainda está lá?
Beltrame - É a situaçãoque o Brasil se encontra, não é? Não é só o RioJaneiro. O Rio Grande do Sul está pior. Minas está muito mal. Maranhão nem se fala. Não vejo um horizontemelhora financeira nos próximos dois anos. A minha visão é que as coisas tendem a piorar ainda.
No Rio, a situação étotal penúria. E não vamos sair dessa crise sem o apoio do governo federal. Como é que você vai cobrar das pessoas se não há recursos?
BBC Brasil - A cada semana vemos um novo episódio assustadorviolência no Rio. Crianças mortas no meio da aula, ônibus queimadosgrandes vias, confrontos fortes nas comunidades com UPP. Como a situação se deteriorou tão rapidamente?
Beltrame - Fundamentalmente? Dinheiro. Recursos. O Estado não tem dinheiro, e com isso acabou com projetos que quase que duplicavam o efetivopoliciais, como o RAS (Regime AdicionalServiço, que remunera o trabalhoagentes fora do horário normalexpediente).
Em segundo lugar, não formamos mais policiais. Os concursos públicos estão parados. A instabilidade previdenciária (devido ao projetoreforma no Congresso) fez com que mais2 mil policiais saíssem da corporação, tanto civis quanto militares. O problema é que não há dinheiro para repor os policiais.
Assim como vários setores da sociedade viram que o Estado parou, o crime, obviamente, também viu. E o crime, ao contrário, tem dinheiro para investir. E veiomaneira forte. Ele vem para roubar carga, vem para rouborua, para uma serieoutras ações.
Tal é a sensaçãoimpunidade, que os tentáculos dos criminosos vão aumentando. Quando tínhamos um processopacificação sólido e contratávamos novos policiais com concursos, fazíamos frente a isso. Hoje não.
BBC Brasil - Vemos relatos frequentes sobre a faltainfraestrutura básica para a polícia trabalhar, como a faltacombustível para viaturas e salários atrasados.
Beltrame - Parece que 50% da frota está parada hoje. Você acha que os criminosos não percebem? Eles estudam o comportamento, as fragilidades da polícia. A base do crime esta no princípio da oportunidade. Então eles avançam.
É urgente que se faça uma ação forte. No sentidodar um revés e dizer "Existe um limite, o Estado está aqui". Mas do jeito que as coisas vão, não vejo um horizonte para que isso aconteça.
BBC Brasil - O que teria que ser feitoimediato, emergencialmente? Uma das medidas anunciadas foi o enviohomens da Força NacionalSegurança pelo governo federal, o sr. acha que isso ajuda?
Beltrame - (Risos) Acho que precisamosuma grande uniãoesforços. As polícias brasileiras - Militar, Civil, Federal - sabem trabalhar e trabalham muito bem. Mas precisamos dar condições a elastrabalharem com mais inteligência, e fazer com que as informações sejam integradas.
Assim como acho que está na horarepensar o papel, o fazer e os objetivos do Ministério da Defesa. Sei que há problemas constitucionais,controle (que impõem restrições à atuação), mas na situaçãoque estamos, temos que passar por cima dessas suscetibilidades.
BBC Brasil - O sr. esta falando do Exército?
Beltrame - Do Exército, da Marinha, da Aeronáutica. São pessoas bem preparadas, capacitadas, que têm capilaridade no Brasil inteiro. Eles têm massa. Tem gente.
E falo também da Receita Federal, do Coaf (ConselhoControleAtividades Financeiras) da Agência BrasileiraInteligência (Abin). Temos que pensarcomo aproveitar a potencialidadecada instituição.
E não mais dizer "Não, não posso ir ali, porque depois dessa esquina é com a Marinha, depois daquela esquina é com a Polícia Federal". Está na horarever isso. Temos uma sériepessoas einstituições boas, mas precisamos nos unir. Para que se dê um basta nisso.
Precisamosuma releitura para o século 21 para o Ministério da Defesa para enfrentar a situaçãoque estamos.
BBC Brasil - Mas é sempre muito polêmico no Brasil falarpoliciamento do Exército nas ruas.
Beltrame - Mas aí é que está. Não falo especificamentepoliciamento nas ruas. Mas acho que a gente pode sentar e conversar. Não tivemos bons exemplos no RioJaneiro com os grandes eventos? Contamos com essas forças juntas. Nós fizemos o processoUPP juntos. Então por que não podemos sentar e conversar? Não vou dizer que é para o Exército virar polícia ostensiva ou investigativa. Mas no mínimo é possível pactuar um alcance maior das responsabilidadescada um.
E sei que há problemas legais e que isso é polêmico. Mas vamos ficar assistindo à apreensãoum fuzil por dia, nove pistolas por dia? Não sei quantos homicídios por dia? Porque a população diz isso ou aquilo?
Será que não podemos pensar na capacidade que temos, ou pelo menos na potencialidade, e fazer um plano? Já que não há dinheiro, vamos usar os recursos que temos para fazer o que for possível. Agora, vai ter que passar por cimacertas questões, não tenha dúvida.
BBC Brasil - O sr. foi secretário da gestãoSérgio Cabral durante maissete anos. Ele agora está na cadeia e enfrenta 11 denúncias por uma redecorrupção que se espalhava por diversas secretarias, como aObras eSaúde. Como convivia com isso?
Beltrame - Bom, eu tenho que dizer que eu não tinha noção da dimensão que isso assumiu. Ainda acredito que vá ter desdobramentos. Eu vejo com muita tristeza.
É muito difícil chegar a um pontoque não há ração para os cães do canil. Não tem gasolina para botar nos helicópteros que lutou para comprar, assim como nos carros blindados, sem manutenção. Não tem alfafa para os cavalos da cavalaria.
E no entanto, assiste-se agora a uma situação dessas. Vejo com muita tristeza tudo isso que aconteceu e está acontecendo. Muita tristeza.
BBC Brasil - Isso eraalguma maneira visível? O sr. desconfiava?
Beltrame - Primeiro, foram dez anosque me entreguei para a SecretariaSegurança. De domingo a domingo, sem fimsemana, sem férias. Em segundo lugar, eu não tinha vida social com o governador. Eu não tinha como perceber.
Às vezes você até percebe que seu vizinho está mudandopadrão, viajando muito, trocoucarro. Mas eu não tinha convívio social com ele para ter essa desconfiança. Eu marcava uma audiência via secretária, ia lá, despachava, e vinha embora. Não sabia da vida dele, onde ele ia, o que ele usava. Essas coisas que estão sendo reveladas não transpareciam para nós.
BBC Brasil - Seu nome foi aventadouma das reformulações do governo Temer. O sr. chegou a ser sondado? Cogitaria um cargo na instância federal?
Beltrame - Acho que a minha contribuição ao serviço público brasileiro acabou. É como um livro. Quando você chega à última página, acabou, fechou. Para mim, chegaserviço público. Foram 30 anos.
E acho que o serviço público brasileiro deve passar por uma reformulação muito grande. Ele deve ser bem pago, bem treinado e enxuto. Isso daria velocidade e condições para ter respostas rápidas. Hoje temos exatamente o contrário: servidores desanimados, que ganham mal, que foram esquecidos nos seus cargos, que não foram capacitados.
E o que você faz quando as coisas não funcionam? Bota gente para dentro achando que vai mudar. É um ciclo vicioso.
BBC Brasil - Quando o sr. saiu da secretaria, houve quem dissesse que estava abandonando o barco antesele afundar. O sr. sente alguma culpa ou responsabilidade pela situação o Rio vive hoje?
Beltrame - Eu não, absolutamente. Eu me entreguei totalmente, me dediquei diuturnamente a esse trabalho. Agora, é lógico, a gente sempre sai com a sensaçãoque tem mais coisa para fazer. E tem mesmo.
Mas não pensemjogar tudo fora para, no ano que vem, prometerem uma coisa nova. Tentem enxergar o que aconteceu, o que é recuperável, o que é mensurável. A sociedade tem que estar muito ligada, presente, ter critério, para não entrarconversassalvadores da pátria.
O momento é oportuno para isso. Para as pessoas que chegam dizendo que tem que apagar tudo e fazer tudonovo. Há quantos anos não estamos nessa? A pessoa que entra tem que desmanchar tudo que o outro fez para deixarmarca. Temos que ter muito cuidado. Aparece gentetodos os lados dizendo que tem soluções mágicas, e esse discurso tem um fundamento ideológico e partidário.
BBC Brasil - O senhor usou o pretérito para falar nas UPPs. Como o senhor vê hoje o projetopacificação? Ainda considera que estejapé?
Beltrame - Acho que não posso dizer que estápé na acepção da palavra, né? As cenas que vi no Complexo do Alemão são cenas que me motivaram a fazer a ocupação (ele se refere à operação que ocupou o conjuntofavelas2010). O que se vêcertos lugares do Alemão são cenas que deram motivo à UPP. Aquilo que se viu aí não é UPP.
Mas as pessoas se esquecem que tem lugar onde deu muito certo, como o Vidigal (entre o Leblon e São Conrado). O Dona Marta (em Botafogo) estava bem também, achei que estava bem (o morro era a principal vitrine das UPPs, mas voltou a apresentar confrontos e tráficodrogas ostensivo).
Eu acho que não é uma derrocada. Temos que pensaronde avançamos. A sociedade tem que entender que ela fez o pior. O pior foi ocupar as comunidades antes.
BBC Brasil - O sr. quer dizer o mais difícil?
Beltrame - Sim, o mais difícil, a sociedade tem que entender que o mais difícil foi feito. Não podemos perder isso. Mesmo com os problemas que temos hoje, é mais fácil fazer alguma coisa agora do que o que já foi feito há dez anos atrás.
BBC Brasil - O sr. tem esperança que as UPPs continuem?
Beltrame - Eu acho que o RioJaneiro não sai desse problema se não olhar para essas áreas que foram até agora tratadas como guetos. O que foi feito para as comunidades antes da UPP? O que teve? Acho que não se pode abrir mão.
Tem problemas, não dá para negar, mas não dá para dizer que acabou. É muito mais fácil você racionalizar, fazer um reestudocima do que se tem, do que botar tudo fora. Não dá para desperdiçar tudo. Vamos ver o que dá para recuperar.
BBC Brasil - Temos visto uma nova ondaconfrontos nas comunidades do Rio. Há quem diga que as UPPs levaram a um reordenamentoforças nas facções criminosas, enfraquecendo grupos locais e favorecendo a entrada do Primeiro Comando da Capital (PCC). Que mudança no balançoforças foi ocasionado pelas UPPs?
Beltrame - O PCC se expandiu com um poderio muito grande para o Norte e o Nordeste. Os recursos sãoassaltos a banco. Você viu os milhõesdólares que roubaram no Paraguai (referência a assalto a uma transportadoravaloresabril deste ano).
Agora vai dar um segundo passo, que é apossar-se da vendadrogas. É tirar os paraguaios e os bolivianos como fornecedores. E eles, o PCC, virarem os fornecedores.
Eles querem o monopólio da vendadrogas earmas para o mundo. Não é para cá. A ideia deles é uma ideia grande, empresarial, e é por pensarem assim que eles não vêm para o RioJaneiro. Porque o tráfico aqui é totalmente desorganizado, ostensivo, gostaaparecer, fazer barulho e terror. O PCC pensa. Se organiza. É estratégico.
Então essa históriao PCC estar aqui, eu particularmente não acredito. Porque eles são estrategistas. Talvez ainda seja a nossa sorte que o crime aqui é desorganizado. Se ele fosse organizado, ficaria muito mais difícil.
Mas do jeito que as coisas estão, eu tenho muito medo do que vai ser daqui para a frente no país, especialmente no RioJaneiro, se nada for feito. É preciso haver uma resposta da nação brasileira contra o crime.
Precisamosmuita união para dar uma resposta à altura da velocidade com que as coisas estão se degradando.
BBC Brasil - Como o sr. vê o legado que deixou à frente da segurança pública do Rio? O sr. é cobrado nas ruas, recebe críticas?
Beltrame - Graças a Deus, acho que a gente deixou um legado intangível - que é o legado da esperança. Desculpe a minha pretensão, mas acho que foram dez anosque pelo menos a sociedade carioca teve esperança.
Porque se olharmos para trás, você não vai ver nada feitomaneira objetiva, mensurável. Houve um momentoproliferação econômica eentusiasmo, e ali a sociedade, o Estado e o município tinham que ter feito também aparte.
Graças a Deus saio com a consciência tranquila e tenho recebido só palavrasapoio. Mas não me sinto bem vendo tudo na situaçãoque está. Tenho um temor muito grande pela situação do RioJaneiro.
Mas a verdade, e o mais triste, é onde o país está. Tenho viajado o país inteiro e visto a situação no Maranhão,Natal, na minha terra, Rio Grande do Sul. As coisas realmente não estão boas. Acho que o problema hoje chegou num nível nacional.