AssassinoCampinas atirou sozinho, mas não inventou assassinatomulheres sozinho, diz filósofa:
Diante da atitude e da "justificativa" do assassino, muitos passaram a tratá-lo como psicopata e enxergaram o caso como algo "bizarro", desconectado da realidade. Mas, para a filósofa Márcia Tiburi, ele não cometeu o crime sozinho.
Especialista na questãogênero e autoralivros como As Mulheres e a Filosofia e Mulheres, Filosofia ou Coisas do Gênero, ela alerta para o papel da sociedade na barbárie. "Ele não inventou esse assassinato das mulheres sozinho. Ele pode ter atirado sozinho, mas o que ele fez é simbolicamente muito mais grave", afirmou ela à BBC Brasil.
"A culpa éum sistema,um imaginárioódio às mulheres que deixa os indivíduos descompensados."
Veja os principais trechos da entrevista.
BBC Brasil: Nas cartas que o autor da chacina deixou, há um discurso repletoódio contra as mulheres, chamando todas elas"vadias". Dos 12 mortos, 9 eram mulheres. O que isso representa?
Marcia Tiburi: Esse elemento no discurso do assassino faz parteum contexto mais geral, a meu ver. A gente chama issomisoginia. Esse discurso não é novo: ele só nos choca no fatoser tão declarado eaparecer numa maneira tão tosca.
O caráter brusco desse discurso, que tem autorização para dizer tudo isso sem preocupação, isso é o que o torna mais chocante. Mas se você for ler discursos mais rebuscados na mídia tradicional, na Bíblia, nos textos clássicos da História, você encontra o mesmo tipoconteúdo, a mesma estrutura simbólicaódio às mulheres. Como há um ódio histórico aos judeus, aos negros.
O ódio no contexto do machismo é estrutural. Não tem machismo sem ódio. Todo machismo carregasi um afeto odiento. Seja como repulsa, como inveja, como necessidadefazer calar.
BBC Brasil: Muitos estão tratando o assassino como psicopata. O que acha disso?
Tiburi: Ele poderia ser,fato, a partirum pontovista psiquiátrico, medido como um psicopata. Mas não temos esse registro comprovado. A gente tem que tomar muito cuidado com isso, com esse diagnóstico que surge no senso comum.
O importante aqui é que do pontovista sociológico, filosófico, a gente não vive sozinho, a gente tem influência do meioque vivemos. Eu diria que esse cidadão seria, no nível do senso comum, apenas um pobre coitado que realiza algo que é da ordem do desejo coletivo. É um desejo forjado por uma estrutura social machista e que nesse momento perde seu freio.
Um dos exemplos que perde o freio social, a noção da lei. Ele confronta a leiuma maneira jocosa, interpreta a lei à luz daprópria ignorância e usa essa ignorância como um aval, uma justificativa.
Mas ele não inventou essa matança sozinho. Ele pode ter maquinado essa chacina sozinho, mas não inventou esse assassinato das mulheres sozinho. Ele pode ter atirado sozinho, mas o que ele fez é simbolicamente muito mais grave.
Podemos analisar esse lugar do encontro entre a atitude particular e um contexto percebendo a semelhança entre o discurso que ele profere e o discurso que a gente vê no senso comum. Esse indivíduo pensa a partir do senso comum. É importante perceber que as ideias não são nossas, eu tenho ideias com relação ao mundo, eu absorvo os conceitos do mundo, as ideias do mundo, e nós vivemosum mundo machista, misógino.
Ele,que peseculpa, é mais um cidadão que foi destruído pelo machismo. Não é mais vítima do que as vítimas que ele causou, mas ele é também vítimaum sistema dos quais todos nós somos vítimas. A gente não deve colocar a culpa no indivíduo, a culpa éum sistemaum imaginárioódio às mulheres que deixa os indivíduos descompensados.
Esse cidadão rompeu com o bom senso, com a racionalidade, mas ele estava buscando a compensação.
Eu, como professoraFilosofia, acho que as pessoas não devem nesse momento achar que elas não têm nada a ver com isso. Elas têm algo a ver com isso, nós todos temos, porque todos nós participamosuma cultura assim. Onde nós como cidadãos estamos errando? Esse cidadão pode fazer o que fez? Ele achou que estava acima da lei.
BBC Brasil: Muitas pessoas comentaram que o autor da chacina seria uma personificação dos comentários que se lê nas redes sociais - o discurso dele traz esses elementosódio que encontramos nas redes. Qual é o perigotornar "naturais" esses discursos?
Tiburi: A naturalização faz parte da história da cultura. O feminismo irrita porque ele é um questionamento do machismo naturalizado, estrutural. Então todo o questionamento relativo àquilo que foi naturalizado incomoda.
As naturalizações servem pra acobertar alguma coisa. Nesse caso, um sistemaprivilégios dos homens. Nesse sistemaprivilégios, os homens não querem olhar para uma mulher como alguémigual para igual. Então esse indivíduo assassino olhava para mãe do seu filho como uma pessoa que não tinha direito nenhum, a reduzia a uma vadia. Ele se colocava como cidadãobem, correto e,tão correto, acima da lei.
A grande questão pra se colocar hoje é: como nós chegamos a essa ideiaque nós podemos fazer tudo o que a gente achar certo? Ele rebaixa a cidadã, mas rebaixa (também) a lei.
Mas ele não inventou isso sozinho. Ele é uma evidenciação, uma metonímia da sociedade nesse momento. É a parte que fala pelo todo.