A viagem épica no trem com que Lênin retornou à Rússia para liderar revolução1917:
- Author, Pablo Esparza
- Role, Especial para a BBC Mundo*
Na tarde9abril1917, um trem aguardava para partir da estaçãoZuriquedireção à fronteira alemã. A bordo dele viajavam Vladimir Ilyich Ulyanov, mais conhecido como Lênin, e outros 31 revolucionários. O destino final, a Rússia.
Depoismaisuma década no exílio, apenas oito dias separavam Lêninsua entrada triunfal na cena da revolução russa com um papel — o do líder revolucionário — para o qual ele havia se preparado durante quase todavida.
A chegada a Petrogrado, como São Petersburgo era conhecida na época, seria um pontovirada na história do século 20.
Mas antessair na Estação Finlândia da cidade russa, o líder bolchevique tinha pela frente uma longa viagem por uma Europaplena Primeira Guerra Mundial.
Um trajeto que, segundo os historiadores, mudou a estratégia da revolução: o socialismo deixouser um objetivo a médio prazo para uma ação iminente.
O novo plano foi refletido nas famosas TesesAbril, que Lênin tornou públicas apenas alguns dias após achegada à Rússia.
Sem czar
O percurso foi minuciosamente preparado, mas no momento da partida, seu desenvolvimento, e até mesmo a recepção que esperaria os exiladosSão Petersburgo, eram incertos.
A situação na Rússia eraconvulsão.
O czar Nicolau 2° havia abdicado15marçodecorrência dos protestos contra o desabastecimento e o envolvimento russo na guerra contra a Alemanha.
A chamada RevoluçãoFevereiro levou à tomadacontrole do país por um governo provisório formado por liberais e socialistas moderados, com a conivência dos bolcheviques.
Lênin tinha ouvido falar desses acontecimentos emresidência, no número 14 da rua Spielgasse,Zurique, um quarto modesto onde vivia com a mulher, Nadya Krupskaya.
Menosum mês depois, ele estariaum trem a caminho da Rússia.
Heróis ou traidores
Na plataformaZurique, na Suíça, as vozes que cantavam a Internacional e os gritosanimação se misturavam com acusaçõestraição contra o líder bolchevique e seus companheiros por terem concordado cruzar a Alemanha, que a Rússia enfrentava no conflito mundial.
Às 03:10, a locomotiva deu a partida e a gritaria foi ficando para trás. Os preparativos para a viagem não tinham sido simples.
Fritz Platten, secretário do Partido Social-Democrata suíço, tinha conseguido um acordo com o Kaiser Guilherme 2° para que Lênin e seus companheiros pudessem atravessar a Alemanha.
Mas a bênção do Kaiser era um movimento interessado. E uma facadois gumes para os revolucionários, que temiam ser acusadosespionagem e traição ao chegarem a seu país.
"A Alemanha estava empenhadafazer a Rússia sair da guerra, e Lênin era um dos principais porta-vozes daqueles que queriam encerrar a participação russa na guerra. Foi por ordem do próprio kaiser que chegaram as permissões parasaída", diz à BBC Mundo Ricardo Martín, professorhistória da UniversidadeValladolid.
"A obsessão do Kaiser era concentrar todo o esforço bélicouma frente, a ocidental. Se a frente oriental desaparecesse rapidamente, para a Alemanha poderia ser a vida".
"Claro que a sintonia entre o pensamento do Kaiser eLênin era mínima, mas o Kaiser olhou fundamentalmente para o curto prazo", acrescenta o especialistahistória russa.
Limites territoriais... no trem
Para evitar o riscoserem vistos como colaboradores dos alemães, Lênin estabeleceu uma sériecondições antesaceitar a ajudaBerlim.
E assim nasceu a ideia do "trem selado": um vagão com um statusextraterritorialidade semelhante aouma embaixada estrangeiraque os exilados poderiam viajar pelo território inimigo sem contato com os alemães.
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"A partir do momentoque embarcaram no trem, não sairiam dele até ao final da viagem. As portas estavam seladas", conta o historiador Robert Serviceseu livro O Trem Selado.
De acordo com esse plano, o próprio Fritz Platten viajaria no trem e faria a intermediação para evitar que houvesse contato direto entre os exilados russos e interlocutores alemães.
"Lênin insistiu que não houvesse nomes, apenas uma listanúmerospassageiros", aponta o professor eméritohistória da Rússia na UniversidadeOxford.
Na estaçãoGottmadingen, já na Alemanha, houve a mudançatrens. Dois oficiais do exército alemão embarcaram no mesmo vagão que os exilados e se instalaramum compartimentoterceira classeuma das extremidades.
De acordo com Service, uma linha branca foi traçada com giz no chão para delimitar o "território alemão" e o "território russo".
"Assim que o trem se moveu da estaçãoGottmadingen, os medos se dissiparam e os ânimos se levantaram", diz o historiador britânico.
A escala misteriosa
O "trem selado" avançava pela Alemanha.
Os homens que viajavam sozinhos instalaram-secompartimentosterceira classe. As mulheres e os casais — incluindo Lênin eesposa —, na segunda.
"Uma das primeiras dificuldades foi relacionada ao tabaco, que Lênin detestava. Desde o início, ele decidiu que aqueles que queriam fumar deveriam retirar-se", aponta o Service.
Da fronteira sul, o vagão — que mudou várias vezesvia elocomotiva — entrou na Alemanhadireção a Berlim. Os exilados cruzaram Ulm, Stuttgart, Karlsruhe, Frankfurt... até chegarem à capital alemã, onde o trem parou por horas.
Essa escala misteriosa, observa Service, teve consequências profundas na formapensarLênin.
A teoria marxista mais difundida entendia que países economicamente atrasados como a Rússia deveriam passar por um períodocapitalismo ao estilo ocidental antesentrar no socialismo.
Mas nachegada a São Petersburgo, o líder bolchevique defendeu uma estratégia revolucionária que omitiu esse passo intermediário.
O que havia depois que não havia antes
"As razões para essa parada são ao mesmo tempo obscuras e tentadoras (...). Houve uma reunião secretaque Lênin recebeu informações que o fizeram mudar a estratégia da revolução?", pergunta Service.
"Embora os eventos daquela noiteBerlim só possam ser objetoespeculação, não há dúvidaque, durante a viagemBerlim a São Petersburgo, Lênin alterou completamente seu plano tático (...)".
"Nenhum historiador — soviético ou ocidental — foi capazdar uma explicação adequada sobre isso até hoje", destaca o especialistahistória russa.
Mas Service aponta uma hipótese:
"Depois da viagem pela Alemanha no trem selado, surgiu um fator que não existia quando Lênin estava na Suíça: uma grande quantidadefinanciamento alemão, suficiente para publicar jornaistoda a Rússia e difundir propagandauma escala que Lênin nunca antes poderia conceber".
As autoridades soviéticas e historiadores comunistas sempre negaram a existência desses fundos alemães.
Bem-vindo a Estocolmo
Seja como for, após a escalaBerlim, Lênin e seus companheiros continuaram a viagem e,12abril, chegaram a Sassnitz, na costa báltica, onde embarcaram no ferry sueco "Rainha Vitória", com destino a Trelleborg.
De lá continuaram, novamentetrem, até Malmo e depois, num trem noturno, até Estocolmo.
Na capital sueca, Lênin foi recebido quase como uma estrela. Reuniu-se com socialistas locais e com outros exilados.
No dia seguinte, uma multidãojornalistas e curiosos despediram-se dele na estação,onde partiu para Haparanda, 600km ao norte.
Tornio, a primeira cidade da então província russa da Finlândia (que foi um grão-ducado da Rússia entre 1809 e 1917), fica do outro lado do rio Torniojoki, quemeadosabril está congelado, e que deve ser atravessadotrenó.
Na fronteira, o interrogatório e os registros foram intensos, mas eventualmente eles conseguiram passar.
Pontoperigo
Era domingo, 15abril. Lênin enviou um breve telegrama à irmã, que estavaSão Petersburgo, pedindo-lhe que informasse o jornal oficial bolchevique sobrechegada iminente.
No dia seguinte, o trem atravessou a Finlândia.
"À tarde, eles se aproximaram da fronteira da Rússia. Beloostrov, a pequena cidade da fronteira russo-finlandesa era o primeiro pontoperigo, um lugar óbvio para uma unidadecossacos ou junkers, os corposelite, esperarem por eles para prendê-los", diz Service.
A detenção não aconteceu e os revolucionários entraram na Rússia. O destino final, a estação da Finlândia, estava a apenas algumas horasdistância.
Paz, pão e terra
A notícia da chegadaLênin correu como pólvora e as autoridades locais prepararam uma grande recepção.
Milharespessoas com cartazes e símbolos revolucionários esperavam os exilados. Era noite e muitos carregavam lanternas e tochas. A imagem da chegada se tornaria um dos ícones da Revolução Russa e da arte soviética.
JáSão Petersburgo, na plataforma, Lênin fez um discurso chave para a compreensão do futuro da Rússia.
"O povo precisapaz, o povo precisapão, o povo precisaterra. E eles lhe dão guerra, fome, não pão, e deixam os proprietáriosterras com a terra. Devemos lutar pela revolução social, lutar até o fim, até a vitória completa do proletariado. Longa vida à revolução social internacional".
34 semanas
Apenas alguns dias depois, Lênin desenvolveu essas ideias nas suas TesesAbril que, segundo os historiadores, serviriamroteiro para a RevoluçãoOutubro.
"Com elas, ele rompealguma forma com outros líderes bolcheviques que não estavamacordo com essa estratégia: assinatura imediata da paz, processocoletivização, não colaboração, até mesmo luta, com o governo provisório e o famoso 'todo o poder para os sovietes'", observa o professor Martin.
A Revolução Russa — com suas consequências profundas e duradouras não apenas para a Rússia — chegaria oito meses depois dessa viagemZurique a São Petersburgo. Em apenas 34 semanas, o mundo mudaria.
Como o próprio Lênin disse: "Há décadasque nada acontece e semanasque décadas se passam".
*Este artigo foi originalmente publicado9abril2017 para lembrar o centenário da saídaLêninZuriqueseu retorno histórico à Rússia.