O cientista soviético que chocou o mundo com experimento que criou cães2 cabeças:

Vladimir Demikhov procurou demonstrar as possibilidadesum novo campo da medicina daépoca: a transplantologia
Legenda da foto, Vladimir Demikhov queria demonstrar as possibilidadesum novo campo da medicina daépoca: a transplantologia

Konstantinov estudou os trabalhos do cientista soviético Vladimir Demikhov (1916-1998).

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Em 1959, Demikhov convidou o fotógrafo Howard Sochurek, da revista Life, para fotografar a ele e ao seu assistente, Vladimir Goriainov, enquanto eles realizavammais nova cirurgia: a criaçãoum cachorro com duas cabeças.

Quando Zochurek entrou na salacirurgia, ele ouviu os latidosum pequeno cão com orelhas caídas e focinho pontudo. Demikhov explicou que se tratavauma cadelanove anos chamada Shavka. Ela seria o que ele chamou"cabeça convidada".

O chamado "cachorro anfitrião" era Brodyaga ("vagabundo",russo), um vira-latas que havia sido recolhido por um laçadorcãesMoscou, então capital da União Soviética.

A reportagem publicada na revista foi escrita pelo seu correspondenteMoscou, Edmund Stevens. Ele descreve o procedimentotrês horas e meiadetalhes realistas.

"Primeiro, eles fizeram uma incisão na base do pescoço do cachorro grande, expondoveia jugular, a aorta e um segmento da coluna vertebral...

O corpo flácidoShavka foi colocado na mesacirurgia ao ladoBrodyaga. Goriainov fez a incisão cuidadosamente...

Depois, os dois cirurgiões suturaram a pele dos dois cachorros e a operação terminou."

As fotospreto e branco apareceram na edição da revista Lifejulho1959. Elas mostram o espantoso resultado.

O cãoduas cabeças, criado pelo cientista soviético Vladimir Demikhov

Crédito, Howard Sochurek

Legenda da foto, O cãoduas cabeças, criado pelo cientista soviético Vladimir Demikhov

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A criatura viveu por quatro dias.

E aquele não foi o primeiro cãoduas cabeças criado por Vladimir Demikhov. Ele já havia realizado o mesmo experimento 23 vezes, com diferentes graussucesso. Uma das suas criações chegou a viver por 29 dias.

"Sinto emoções desencontradas quando vejo as imagens, pois são animais que, resumidamente, foram torturados", confessa Konstantinov.

Demikhov declarou à revista Life que o objetivo dos seus experimentos era demonstrar que é possível transplantar tecidos e órgãos saudáveis.

Atualmente, os transplantes são uma prática comum. Mas os primeiros transplantesfígado e coração só foram realizados com sucesso no final da década1960.

Por isso, para os leitores da reportagem da revista Life na década1950, a visãoDemikhov sobre o futuro dos transplantes parecia tão grotesca quanto seus cachorrosduas cabeças.

"Começaremos formando um bancotecidos", explicou o médico soviético ao correspondente da revistaMoscou. "Com o tempo, ele incluirá todas as partes concebíveis da anatomia humana: córneas, globos oculares, fígados, rins, corações e até membros. Tudo será mantidorefrigeração."

"Quando estivermos totalmente preparados, uma vítimaacidente será trazida com uma lesãoalgum órgão essencial que, normalmente, seria fatal", prossegue Demikhov.

"Como a pessoa iria morrerqualquer forma, ela não tem absolutamente nada a perder. E trataremosfornecer a ela o órgão necessário do nosso banco."

"Se o transplante tiver sucesso, ela irá viver. Se não, boa sorte na próxima vez."

Você se imagina lendo isso antes que se tornasse algo normal e até desejável?

A reportagem ilustrada da revista LIFE fez com que Demikhov ficasse gravado na memóriaparte das pessoas como um cientista louco

Crédito, Reprodução

Legenda da foto, A reportagem ilustrada da revista LIFE fez com que Demikhov ficasse gravado na memóriaparte das pessoas como um cientista louco

Origens

Demikhov nasceu1916,uma pobre famíliapequenos agricultores. Seu pai morreu na Guerra Civil Russa (1917-1922) emãe ficou determinada a dar boa educação aos seus três filhos.

Ele estudou biologia na Universidade EstatalMoscou, onde se formou com honras1940. E, ao longo dos 20 anos seguintes, Demikhov se dedicou a uma sérieexperimentos que impulsionariam o campo dos transplantes.

Além dos cãesduas cabeças, Demikhov elaborou diversos estudos e processos experimentais extremamente inovadores.

Em 1937, o médico projetou o primeiro aparelho mecânicoassistência cardíaca.

E, no início1946, ele realizou transplantes intratorácicosmamíferos,coração e pulmão – isoladamente econjunto. Eles foram os primeiros procedimentos deste tipo realizadosmamíferos com sucesso.

Demikhov também foi responsável pela primeira operaçãobypass da artéria coronariana e pelo primeiro transplantefígado, entre outras façanhas.

Ele chegou a cunhar a palavra "transplantologia", natesedoutorado. Publicada1962Nova York (EUA), Berlim (Alemanha) e Madri (Espanha), ela se tornou o primeiro trabalho sobre transplantologia – e foi, por muito tempo, o único estudo disponível na áreatransplanteórgãos e tecidos.

"Considerando suas origens, é muito difícil entender por que ele teve este impulso incrível para realizar transplantes, apesartodo o desastre econômico do seu país e da horrível guerra mundial, que recém havia terminado", destaca Konstantinov.

"Só posso imaginar que ele tenha sido criadouma sociedade muito utópica, na épocaque o dinheiro significava muito pouco e se tentava fazer algo grandioso pelo seu país,benefício da humanidade", prossegue ele. "Acredito que, no final, era só isso que importava."

A contribuiçãoDemikhov para a transplantologia foi tão grande que o médico sul-africano Christiaan Barnard (1922-2001), autor do primeiro transplante bem sucedidocoração humano, chamou o médico soviético"pai do transplantecoração e pulmão".

Mas seus cachorrosduas cabeças ofuscaram seu trabalho positivo, especialmente naterra natal.

Diveras pessoasbrancotornouma mesacirurgia onde não é possível ver o paciente, apenas uma figura coberta
Legenda da foto, Em setembro1959, durante o 18º Congresso InternacionalCirurgiaMunique, na Alemanha, Demikhov demonstrou aos especialistas como implantar uma bomba intratorácicaum cachorro

Em setembro1959, durante o 18º Congresso InternacionalCirurgiaMunique, na Alemanha, Demikhov demonstrou aos especialistas como implantar uma bomba intratorácicaum cachorro. A bomba funcionava como coração artificial.

"Os funcionários o denunciaram como charlatão e seus experimentos foram proibidos", segundo Konstantinov.

"Ele precisou trabalhar no DepartamentoCirurgia que era dirigido por Alexander Vishnevsky [1906-1975], cirurgião-chefe do exército soviético, independente do Ministério da Saúde da URSS."

"Por isso, ele foi ironicamente protegido pelo exército soviético, para poder continuar com seus experimentos", prossegue o especialista.

Igor Konstantinov se formou na Academia Médica MilitarSão Petersburgo,1992.

"Posso dizer que, tendo estudado medicina na União Soviética e trabalhadoseguida por dois anos na Rússia, nunca ouvi falarDemikhov. Seu nome nunca foi mencionado."

Mas,outros países, suas conquistas não são apenas conhecidas – elas são admiradas.

"Ele merece um lugar entre os grandes cirurgiões experimentaistodos os tempos. Não teve o reconhecimento geral a que tinha direito", declarou, por exemplo, a revista The Annals of Thoracic Surgery,1994.

Vladimir Demikhov morreu1998, com 82 anosidade, no seu pequeno apartamento pertoMoscou. No ano damorte, ele foi reconhecido na Rússia e homenageado com a Ordem por Serviços à Pátria.

"Tudo o que ele fez foi pelo bem dos pacientes e muitos, muitos pacientes pelo mundo se beneficiaram, direta ou indiretamente, dos seus experimentos extremamente pioneiros", conclui Konstantinov.

"Acredito que o mais importante, provavelmente, foi que ele conseguiu convencer as pessoas que o seguiamque o impossível era possível."

Ouça o episódio "O cientista soviético que fazia cãesduas cabeças" (em inglês) da série Witness History, do Serviço Mundial da BBC, no site BBC Sounds.