'Post Office': como sérieTV gerou indignação sobre um dos maiores escândalos do Reino Unido:

O elencoMr Batex vs the Post Office

Crédito, ITV

Legenda da foto, A série mostra a odisséiafuncionários dos correios acusados ​​de roubo, mas que não têm como provarinocência

Uma sérietelevisão que retrata aquele que é considerado um dos maiores erros judiciais da história do Reino Unido está conseguindo alcançar algo que nem décadasreclamações e protestos havia sido capaz.

A série trata do chamado Escândalo dos Correios,que centenasgestoresagência inocentes foram acusados ​​de roubo, fraude e adulterações na contabilidade da empresa postal britânica.

Muitos foram condenados à prisão por crimes que nunca cometeram, mas foram denunciados por contafalhasum software informático, uma redementiras e a faltaatenção por partedirigentes e autoridades.

As pessoas afetadas tentam obter justiça há maisduas décadas. Mas nada teve o impacto que a sérietelevisão Mr Bates vs The Post Office teve.

A reação à série nas redes sociais e na imprensa tem sido enorme.

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O tema tem dominado os debates no Parlamento britânico nos últimos dias e o governo foi forçado a se comprometer com pagamentosindenizações multimilionárias e a prometer perdão judicial aos inocentes punidos.

Mais1 milhãopessoas assinaram uma petição pedindo que a ex-gerente dos correios Paula Vennells perdesse uma condecoração concedida a ela pelo Reino unido. Por fim, ela mesma acabou renunciando à honraria.

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Além disso, a série inflamou os ânimos do público na exigênciapunições severas para os culpados e para que a empresa privada envolvida fosse cobrada pelo custo do desastre, para que os contribuintes britânicos não tivessem que pagar por ele.

Mas esta não é a primeira vez que a comunicação social desempenha um papel crucial nesta luta.

O furo sobre o escândalo foi publicado2009 na revista Computer Weekly e o caso foi acompanhado e relatado extensivamente por jornalistas dedicados ao longo dos anos. Em 2013, foram mais300 matérias sobre o assunto, segundo a revista.

A BBC produziu uma premiada série documentalrádio2020 e mais tarde o seu programa investigativo Panorama cobriu o caso.

Em 2021, Nick Wallis, um dos jornalistas que conduziram uma longa investigação sobre o caso, publicou o livro O Grande Escândalo dos Correios.

E a cobertura continuou, acompanhando e dando voz aos afetados pelo escândalo que, aos poucos, foram somando algumas vitórias.

No entanto, foi a transmissão, a partir1janeiro2024, da série produzida pelo canal britânico ITV que despertou enorme interesse público e aumentou a pressão sobre as autoridades.

Por que agora?

Nenhum dos principais eventos apresentados nos quatro episódios da série dramática Mr Bates vs the Post Office é novo.

No entanto, eles expuseram detalhes do escândalo aos olhos do público.

Mas como e por que agora?

Por um lado, a série capturou a atenção dos espectadoresuma forma que um documentário talvez não fosse capazfazer, diz o correspondente político da BBC, Harry Farley.

"Muitas das vítimas deste escândalo ficaram traumatizadas", diz ele. "Suas reputações foram arruinadas e, como resultado disso, eles não queriam falar com jornalistas diante das câmeras."

Através dos atores foi revelado o verdadeiro drama emocional e, pela primeira vez, o público pôde compreender a magnitude do escândalo.

"Muito mais pessoas sabem o que aconteceu, graças ao alcance da série dramática da ITV", diz Farley.

Isto significa que se multiplicou o númeropessoas que pressionam os seus representantes no Parlamento, expressando apreocupação e raiva pelo que aconteceu.

E os políticos, que serão testados nas urnas nas eleições gerais deste ano,repente tiveram interesse no caso e urgênciamostrar que estão agindorelação a ele.

O que aconteceu?

Mulher envia uma carta pelos correios

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Os correios desempenham um papel importantemuitas comunidades

A Post Office Ltd. (PO), equivalente aos Correios do Reino Unido, é uma grande empresa que tem boa reputação, graças àlonga história que remonta ao ano1660.

Possui cerca12.000 postosserviçotodo o país,um sistema muito semelhante ao que opera no Brasil, onde são abertos editais por estado para interessadosoperar uma agência.

No caso britânico, muitas das agências estãoáreas rurais e pequenas cidades. São parte integrante das comunidades e os seus funcionários são valorizados.

Essas unidades são administradas por parceirosfranquia ou proprietáriosempresas independentes, conhecidosinglês como "subpostmasters".

Alémenviar cartas e encomendas, essas lojas desempenham funções bancárias, prestam todo o tiposerviço financeiro, processam a renovaçãopassaportes e cartasmotorista e realizam pagamentosassistência social e pensões.

Mas entre 1999 e 2015, a PO destruiu as vidas"subpostmasters" e das suas famílias, criando um pesadeloconfusão, segredos e mentiras.

A empresa perseguiu incansavelmente administradoresfiliais ​​por supostos roubos, fraudes e contabilidade falsa.

Durante esses anos, exerceu os seus poderes institucionais para questioná-los e processá-los por inconsistências nos registros financeiros.

As inconsistências, porém, só começaram a aparecer após a introduçãoum novo sistema informático instaladotodas as agências.

Um software falho

Logo da empresa Fujitsu

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, A Fujitsu ainda não foi considerada culpada

No período entre 1999 e 2000, a PO implementou um sistematecnologiainformação denominado Horizon, desenvolvido pela empresa japonesa Fujitsu. O software era usado para tarefascontabilidade e controleestoque.

"Era sabido que o programa era muito fraco", disse Richard Roll, engenheiro da Fujitsu entre 2001 e 2004, à BBC.

"Algumas semanas depoiscomeçar a trabalhar lá, eu disse ao meu chefe: 'Isso precisa ser apagado e reescrito do zero'."

"A resposta dele foi: 'Isso não vai acontecer, você tem ideiaquanto tempo levaria e quanto custaria para refazer isso?'"

Roll garantiu que havia erros conhecidos no sistema que afetavam os saldos finais, portanto era provável que houvesse discrepâncias que os usuários não conseguiriam explicar.

Foi exatamente isso que começou a acontecercentenasagências postais pelo país.

Uma pessoa usa a tela do sistema Horizon
Legenda da foto, O sistema informático Horizon destinava-se a rastrear transações nos correios, mas foram reportadas diversos defeitos

Imagine que um franqueado dos correios está fechando o caixa uma noite usando o sistemacomputador Horizon. Ele aperta o botão para fechar as contas e há uma discrepânciacentenas, talvez milhareslibras.

As contas no papel dizem que está tudo bem, mas o sistema, inexplicavelmente, calcula que há um grande déficit.

Ele entrapânico, pois sabe que há uma cláusulaseu contrato com a PO que especifica que o dono da franquia é o responsável por qualquer desaparecimentodinheiro, não importa como isso aconteça.

Após ligar para o suporte técnico, eles garantem que não há outros relatosproblemas com o sistema.

O dono da loja tem então duas opções: pagar o déficitdinheiro imediatamente ou enfrentar um julgamento com alta probabilidadeacabar na prisão.

Vidas arruinadas

Vítimas do escândalo entrevistadas pela BBC
Legenda da foto, Graças à sérieTV, os donos das franquias estão sendo ouvidos

No total, cerca3.500 donosagências postais foram falsamente acusados ​​de desviar dinheiro.

Centenashomens e mulheres acabaram sendo julgados e condenados. As penas variaramcentenashorasserviço comunitário à prisão.

Após as condenações, muitos passaram por graves dificuldades financeiras ou falência total.

Mesmo aqueles que conseguiram impedir uma acusação formal tiveramcontrair dívidas para cobrir os enormes montantes que supostamente deviam.

As vítimas e suas famílias ficaram marcadas, sofreram rejeição social, estresse e doenças.

Foram registrados pelo menos quatro suicídios ligados ao escândalo.

Alan Bates
Legenda da foto, Alan Bates foi fundamental para trazer à luz o infame escândalo

Em 2009, Alan Bates, que anos antes havia sido demitido após relatar problemas com o Horizon, formou o grupocampanha JSFA (Justice for Sub-postmasters Alliance) para expor o escândalo.

Ele conseguiu reunir 555 vítimas no grupo e processou os correios, embora durante anos a empresa tenha conseguido escapar das acusações graças aos seus poderosos advogados.

Apesar dos relatos da imprensa sobre problemas com o sistema Horizon, os seus gestores continuaram a insistir que a tecnologia era "robusta".

Depoisuma longa batalha,2019 o grupo JSFA conseguiu vencer um processo judicial que determinou que as sentenças emitidas tinham sido injustas e que a culpa era do sistema Horizon.

Algumas sentenças foram anuladas e outros casos foram revistos, abrindo caminho para que os acusados ​​injustamente recebessem indenizações.

Até o momento, cerca32 milhõeslibras (R$ 146 milhões)danos foram pagos.

Mas a PO tem sido criticada por atrasar os pagamentos. Além disso, dezenasvítimas morreram antesserem indenizadas e os custos destinados à defesa legal reduziram drasticamente a indenização.

Em contraste, os executivos da PO receberam bônus vinculados à investigação do escândalo2021.

E ninguém dos correios ou da Fujistu foi considerado responsável.

Movimentação política

O premiê britânico, Rishi Sunak
Legenda da foto, Rishi Sunak: quando era ministro das Finanças, o atual premiê britânico concedeu à Fujitsu mais 6 milhõesdólarescontratos

Após o alvoroço causado pela sérietelevisão, a classe política britânica não teve escolha senão retomar a discussão sobre o tema.

O governo britânico propôs a aprovaçãouma lei que prevê perdão judicial a todos os "subpostmasters" envolvidos no escândalo.

Com ela, mais900 pessoas teriam as suas condenações anuladas e mais4.000 pessoas no total poderiam ser elegíveis para compensação.

São vários os esquemascompensação propostos. Em um deles, o governo ofereceu um pagamento único75.000 libras (R$ 464.000) a cada uma das vítimas.

Mas acredita-se que um número significativopessoas afetadas não aceitará esta compensação porque não cobre os danos econômicos e emocionais que sofreram.

Um porta-voz do primeiro-ministro Rishi Sunak disse que aqueles que foram "significativamente mais impactados" poderão "buscar uma oferta maior".

Seria algotorno600 mil libras (R$3,7 milhões), mas que não estaria disponível automaticamente.

Entretanto, a investigação parlamentar prossegue visando apontar culpados, buscar falhastodo o processo e encontrar lições a serem aprendidas.