O que acontece quando a comida some das prateleiras:

Fila para receber alimentosajuda humanitária durante cerco a Sarajevo

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Legenda da foto, Durante cerco a Sarajevo, ficar na fila para receber alimentos entregues por agências humanitárias significa muitas vezes correr riscomorte

Quando o cerco terminoujaneiro1996, mais11,5 mil pessoasSarajevo haviam morrido. Muitas por causaestilhaços, explosivos ou disparos. Mas, sem dúvida, algumasfrio (gás e eletricidade foram cortados) e fome.

Mas Trbonja lembra que, apesartodo o sofrimento, o povoSarajevo resistiu.

"As pessoas que viviam nos subúrbios compartilhavam legumes e verduras que cultivavam nos quintaiscasa", diz. "Vizinhos trocavam sementes para plantarcaixasfloressuas varandas. O sabor daqueles tomates cultivados emprópria varanda é inesquecível."

Enquanto a comunidade internacional hesitava sobre como intervir no conflito, as tropas canadenses - atuando como parteuma forçapaz das Nações Unidas - conseguiram reabrir o aeroportoSarajevo. Foi um passo crucial. Durante o cerco, mais12 mil voosajuda humanitária da ONU levaram à cidade 160 mil toneladasalimentos, remédios e outros produtos.

"Sem a ajuda humanitária, Sarajevo não existiria mais", diz Trbonja. "Noventa por cento da população viviaalimentos distribuídos pela ONU. Aqueles que eram extremamente ricos podiam trocar joias, quadros, qualquer objetovalor por comida extra no mercado negro.

Cerco a Sarajevo

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Legenda da foto, MoradoresSarajevo tentavam encontrar qualquer pedaçoterra onde pudessem cultivar alimentos durante os 47 mesesque ficaram desconectados do mundo exterior

Já os que não tinham posses precisavam encontrar outras maneiras para comer. Trbonja, que como muitos jovensSarajevo pegouarmasuma tentativa desesperadadefenderfamília ecasa, doava sangue no hospital da cidade quando voltava para casa depoislutar. Em troca, recebia uma latacarne.

"Também tivemos que encontrar outras formas", diz ele. "Pesquisávamos nos livros para descobrir quais plantas eram comestíveis para podermos fazer saladas com flores. Houve diasque só tínhamos uma fatiapão e chá e outros nada. Estávamos realmente lutando por nossa sobrevivência a cada dia".

Conversando com Trbonja, é difícil acreditar que isso tenha ocorrido no coração da Europa há menos30 anos. Mas relatos como os dele também não fazem parte da história oficial.

Graças aos conflitos, incertezas políticas e seca, o mundo está atualmente passando porpior crisefome desde a Segunda Guerra Mundial. De acordo com o SistemaAlerta AntecipadoFome (FEWS Net, na siglainglês), uma organização dos EUA que prevê emergências humanitárias, 85 milhõespessoas precisarãoassistência alimentaremergência201946 países - o equivalente às populações do Reino Unido, Grécia e Portugal somadas. Estima-se que hoje 124 milhõespessoas enfrentem crises alimentares,acordo com o Programa Alimentar Mundial da ONU.

O númeropessoasriscofome aumentou 80% desde 2015, com o Sudão do Sul, o Iêmen, o noroeste da Nigéria e o Afeganistão entre os mais atingidos.

Mas, enquanto imagenscrianças famintas durante a crise etíope da década1980 permanecem gravadas no imaginário popular, as "fomes modernas" estão passando quase despercebidas.

Somália

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Legenda da foto, A fome nos diashojevários países africanos, incluindo a Somália, passa quase despercebida aos olhos dos países mais desenvolvidos

Parte da razão é que o mundo parece ter se convencidoque não existe mais fome. É verdade que as taxas mundiais diminuíram. De acordo com AlexWaal, diretor-executivo da Fundação da Paz Mundial da Universidade Tufts,Boston, no Estado americanoMassachusetts, 1 milhãopessoas morreramfome por ano nos 100 anos que antecederam a década1980.

"Desde então, a taxamortalidade caiu para 5%, 10% disso", dizWaal. "Não tínhamos mais sociedades inteiras morrendofome. O crescimento dos mercados globais, melhor infra-estrutura e sistemas humanitários quase acabou com a fome. Até os últimos anos, foi assim."

Podemos encontrar as nossas prateleirassupermercados empilhadas com produtostodo o mundo, mesmopaíses vizinhos que sofremfome

Guerra e má gestão

A fome está ressurgindo como uma ameaça. O motivo? Guerra - e má gestão.

"É difícil seres humanos passarem realmente fome, pois somos tremendamente resilientes", diz Waal. "Você precisaum governo realmente ruim que busque ativamente o tipopolítica que priva as pessoas daquilo que precisam e degradam o meio ambiente. É isso que explica as fomes que estamos vendolugares como a Síria, o Sudão do Sul e o Iêmen."

Trata-seuma das ironias do nosso mundo moderno. Graças às cadeias globais alimentares e ao comércio internacional, podemos transportar produtos pelos oceanosapenas alguns dias. Podemos encontrar nossas prateleirassupermercado repletasmercadoriastodo o mundo.

Mas mesmo nas nações desenvolvidas, a perspectivaescassezalimentos talvez não seja tão distante quanto gostaríamosacreditar. As cadeias alimentares internacionais que fornecem nossos produtos prediletos são precariamente equilibradas.

E não é preciso uma catástrofe como guerra ou seca para isso acontecer. Na Venezuela, país com ricas reservaspetróleo, uma crise política impulsionada pela disparada da inflação levou à escassezalimentos e medicamentos, forçando famílias a viveremcarne podre. Mais3 milhõesvenezuelanos já deixaram o país.

Outro país a enfrentar a escassezalimentos foi a Grécia, durante a crise da zona do euro.

Enquanto isso, a doença, o mau tempo e o aumento dos preços vem fazendo desaparecer uma sérieculturas agrícolas. Há cercadez anos, o aumento do preço do arroz espalhou pânico nas Filipinas eoutros países asiáticos, causando uma criseabastecimento deste alimento básico. Em 2017, o mau tempo na Europa provocou o aumento do preçomuitos legumes e verduras. Além disso, houve também uma escassez mundialabacates quando vários países foram atingidos por safras ruins.

Supermercado com prateleiras vaziasCaracas, Venezuela

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Legenda da foto, Instabilidade política e disparada da inflação esvaziaram as prateleiras na capital venezuelana, Caracas

Os protestos contra o aumento dos combustíveis que ocorreram no Reino Unido2000, quando agricultores e transportadoras bloquearam as refinariaspetróleo e depósitos, levaram os supermercados a racionar os alimentos enquanto não recebiam seus pedidos. Assim, puderam reabastecer suas prateleiras. Até mesmo o aumento do estoquealimentos por escolas, asilos, hospitais e pessimistas por causa do Brexit, a saída do Reino Unido da União Europeia, mostram o efeito que uma mera boataria pode ter.

É importante esclarecer que a escassezalimentos não leva à fome e que a maioria das crisesfome no mundo não é causada pela escassezalimentos - e sim pela faltaacesso à comida. Somente quando a carência alimentar severa se transformauma experiênciamassa que chamamos realmentefome.

Nos EUA, um dos maiores exportadoresalimentos do mundo, quase 12% das famílias não tem acesso adequado a comida por questões financeiras ou outros recursos

Mas a insegurança alimentar é mais comum do que muitosnós pensamos. A Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) estima haver quase 821 milhõespessoas subnutridas no mundo. Nos EUA, um dos maiores exportadoresalimentos do mundo, quase 12% dos domicílios são classificados como inseguros do pontovista alimentar e cerca6,5 milhõescrianças não têm acesso a uma alimentação adequada.

Dores da fome

O que a fome faz com você? Devido a questões éticas envolvendo experimentos, os cientistas têm que se basear nas experiências e relatos daqueles que sobreviveram a períodosfome.

"A curto prazo, há perdapeso à medida que você metaboliza a gordura extra e os tecidos musculares", diz Bradley Elliott, fisiologista da UniversidadeWestminster, no Reino Unido, que estudou o efeito da fomeum homem que passou 50 dias sem comida. O corpo humano é capazlidar com níveis surpreendentesperdapeso: quando o corpo perde 20% do seu peso, consome 50% menos energia. A temperatura corporal cai, enquanto a letargia e a apatia tomam conta. Ao mesmo tempo, o corpo tenta conservar a pouca energia que tem. Eventualmente, no entanto, os próprios órgãos começam a desperdiçar energia, todos com exceção do cérebro, que parece se adaptar para se proteger da fome.

"Problemas no fígado e nos rins também parecem ocorrer", diz Elliot. "A regulação da pressão arterial também fica prejudicada, o que significa que as pessoas podem desmaiar mais facilmente".

Fome no Iêmen

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Legenda da foto, Enquanto imagenscrianças etíopes desnutridas estamparam jornais durante a década1980, as vítimas da fome no Iêmen foram amplamente ignoradas

À medida que vitaminas e minerais começam a faltar, aparecem doenças como o escorbuto e a pelagra. As crianças tendem a ser mais vulneráveis do que os adultos, mostrando rapidamente os sinaisenfraquecimento e sucumbindo a doenças infecciosas, segundo a Rita Bhatia, do Programa Alimentar Mundial, que analisou a severa escassezalimentos na Coreia do Norte nos anos 90.

A sobrevivência sem comida depende do peso corporaluma pessoa, das suas reservas calóricasgordura eoutros problemassaúde dos quais ela pode estar sofrendo. As mulheres tendem a ser mais resistentes do que os homens. Mas,geral, a maioria das pessoas morrerá se o seu peso corporal cair para metade do índicemassa corporal normal - o que geralmente ocorre após 45-61 dias sem comida.

Para aqueles que sobrevivem, podem haver sequelas permanentes.

A fome a longo prazo pode afetar a altura das pessoas, levando ao nanismopopulações que enfrentaram fome e graves carências alimentares. Aqueles que tinham entre um e três anos no início da Grande Fome na China, onde cerca30 milhõespessoas morreram entre 1959-1961, se tornaram adultosmédia 2,1cm mais baixos do que aqueles que não cresceram durante a fome. Eles também tinham braços mais finos, eram 4,4% mais leves e,média, atingiram níveis educacionais mais baixos. Os abortos entre as mulheres grávidas também aumentaram.

Bebês que sobreviveram à fome na Etiópiameados da década1980 tiveram maior probabilidadesofrer doenças na vida adulta, enquanto outros estudos mostraram que uma longa listaproblemassaúde, como pressão alta, diabetes e doenças cardíacas são mais comunscrianças que crescemperíodosfome.

Mas o impacto da fome vai além da saúde física. Durante a Grande fome chinesa, o rendimento do trabalho caiu 25%, afetando drasticamente a produção econômica do país. As crianças que sobreviveram à fome etíope ganharam3% a 8% menos por ano ao longosua vida do que seus contemporâneos.

Crianças buscam comida no lixo

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Legenda da foto, Alguns moradoresSarajevo tiverambuscar comida no lixo durante cerco

Embora esses estudos possam fornecer algumas pistas, não conseguem transmitir a agonia do que é realmente passar fome.

Oonagh Walsh, professoraestudosgênero na Glasgow Caledonian University, no Reino Unido, descobriu que o númeropessoas internadasasilos psiquiátricos disparou durante e imediatamente após a fome irlandesa entre 1845-1851.

"Houve um enorme aumento nas internaçõesasilosuma população que foi efetivamente reduzida pela metade durante esse período", diz ela. "Alguns deles talvez fossem pessoas que procuravam uma refeição decente e sabiam que iam encontrá-laum asilo. Mas também houve uma mudança na maneira como as pessoas pensavam".

"As pessoas rapidamente se tornaram muito fatalistas. A fome foi pior na costa oeste, onde eles têm acesso ao mar e aos peixes. O que não faz nenhum sentido até que você percebe que as pessoas venderam tudo o que tinham, incluindo suas redes e barcos. A população faminta passou a comer pássaros, grama, ervas daninhas e palha para sobreviver".

Mecanismosenfrentamento

Situação semelhante aconteceu durante a fome holandesa durante a Segunda Guerra Mundial. Entre o inverno e início da primavera1944-1945, a população faminta começou a se alimentarplantas e cogumelos na tentativasobreviver.

"Na Holanda, um país relativamente rico e densamente povoado, com pouca vegetação natural, o forrageamento (busca e exploraçãorecursos alimentares) já não era uma prática comum quando a 2ª Guerra Mundial começou", diz Tinde van Andel, professorhistória da botânica na UniversidadeLeiden, na Holanda. As pessoas recorreram a antigos livrosreceitas sobre a preparaçãoplantas silvestres e a parentes idosos para aprender a coletar e cozinhar alimentos que eram seguros para alimentação. Eles consumiram beterraba, bulbostulipa, cascasbatata, urtigas e fungos selvagens.

ParquesLondres

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Legenda da foto, Parques reaisLondres foram loteados para permitir que população cultivasse alimentos durante a 1ª e 2ª Guerras Mundiais

"Grupos urbanos começaram a fazer excursões para o interior", diz van Andel. "Qualquer um que pudesse ter acesso a um pedaçoterra transformou-ouma horta. As pessoas criavam coelhos nos pátios da cidade. Também roubaram forragemfazendas ou resíduos agrícolas ".

Muitos dos famosos parques reaisLondres foram loteados e transformadosjardins durante os dois conflitos, enquanto as pessoas tentavam se alimentar. Se hoje a rúcula é um ingrediente glamurosoqualquer salada, seu uso teve origem durante a 2ª Guerra Mundial, quando os italianos passaram a buscar comida no interior do país.

Mais recentemente, a ameaçaescassezalimentos fez explodir o númeropessoas que buscam cursos para aprender sobre agricultura.

Segundo AlexWaal, as populações rurais tendem a sobreviver melhor à fome do que as das áreas urbanas.

"Nas áreas tradicionais propensas à fome, as pessoas têm suas próprias fazendas e suas próprias formassobrevivência", diz. "Elas guardam também conhecimento. Na África, as avós saberão sobre alimentos, frutas e nozes que podem obter da floresta. Essas pessoas tendem a se sair muito melhor".

Para Rešad Trbonja, a memória daquele pesadelo47 meses vividos1992 nunca vai desaparecer. Masmeio ao horror e à miséria por que passou, ele diz acreditar quecidade sobreviveu à guerra e à escassezalimentos ao alimentar-semaneira diferente.

"Toda Sarajevo tornou-se uma enorme família", lembra ele. "Fomos muito gentis uns com os outros, compartilhando tudo. Nunca tinha visto isso. Tenho muito privilégioque,um momentodesespero e miséria, vi minha cidade mais bonita do que nunca".

Línea

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