Após ação afirmativa, negros enfrentam preconceito na universidade e no trabalho:

Luciana Barreto (arquivo pessoal)
Legenda da foto, Luciana Barreto conta que já ouviu que só está na TV porque 'precisamalguém negro'
  • Author, Caio Quero
  • Role, Da BBC Brasil no RioJaneiro

Uma repórtertelevisão que perdeu as contasquantas vezes foi confundida com maquiadora na emissoraque trabalhava. Uma estudanteDireito que teveconvencer um professorque a resposta certauma prova era frutoseus estudos, não "adivinhação", e que já teveenfrentar a desconfiançaum juiz quanto àformação.

Embora vivamcidades diferentes e tenham profissões distintas, essas duas personagens carregamcomum o fatoserem negras e terem participadoum programaação afirmativa pioneiro que nos anos 1990 concedeu bolsas a afrodescendentes carentesuma das mais importantes universidades do RioJaneiro.

As histórias da jornalista Luciana Barreto e da advogada e historiadora Miracema Alves dos Santos fazem parte do livro Afrocidadanização – Ações Afirmativas e TrajetóriasVida no RioJaneiro (Editora PUC-Rio), escrito pelo pesquisador Reinaldo da Silva Guimarães. A obra mostra a trajetória14 alunos, emmaioria negros, egressosum dos primeiros programasação afirmativa instaladosuma universidade brasileira.

Iniciado1994, o convênio entre a PUC-Rio e o Movimento Social Pré-Vestibular para Negros e Carentes (PVNC) permitiu que alunos aprovados no vestibular pudessem ingressar na faculdade com bolsasestudo, possibilitando que centenasnegroscomunidades pobres passassem a frequentar os bancos da universidade.

Choque

Mas se o ingresso na universidade já era uma grande conquista, para alguns o mais difícil ainda estava por vir. Vindos emmaioria da Baixada Fluminense oubairros do subúrbio, esses alunos sofreram com dificuldades para se deslocar até o campus da PUC, que fica na Gávea, zona sul do Rio, alémterem que driblar resistências sociais e econômicas.

"Eu achava que era o fimmeu drama, mas era só o começo", conta Luciana Barreto, uma das primeiras alunas a ingressar no cursojornalismo como parte do programaação afirmativa.

Moradora da cidadeNova Iguaçu, Luciana trabalha desde os 15 anosidade. Após ser reprovada no primeiro vestibular que prestou, ela pediu a seus pais para ficar um ano apenas estudando para tentar assim realizar o sonhoingressar na faculdadejornalismo.

A estratégia deu certo. Após mesesestudos, Luciana foi aprovada nos vestibulares das principais universidades do Rio. Decidiu cursar jornalismo na PUC e História na UFRJ.

"Foi um choque muito grande. Aquele mundo era muito diferente. Eu fui durante um bom tempo a única negra do cursojornalismo. Então aquilo era um choque visual, um choque cultural, um choque econômico", disse a jornalista à BBC Brasil.

"Você imagina que eu precisava acordar às 3h30 da manhã. Eu pegava o ônibus4h20 para pegar a aula das 8h."

Mas o choque não se restringiu aos alunos que estavam ingressando na universidade. O pesquisador Reinaldo Guimarães, ele próprio negro, ex-aluno da PUC-Rio e origináriouma comunidade carente, conta que parte da comunidade acadêmica também teve resistência ao que chamanovos "filhos da PUC".

"É uma resistência a esse novo público, que teoricamente tem menos capital cultural, alémocuparem um espaço que teoricamente não deviam estar ocupando", diz Guimarães.

Doutorserviço social pela PUC-Rio e mestresociologia pelo Iuperj, Guimarães conta ter ouvido relatosparticipantes do programa que, ao levantarem as mãos para fazer perguntas durante as aulas, eram ignorados por professores.

"Na mente deles, esse aluno não vai fazer uma pergunta relevante, porque ele já tem um ‘pré-conceito’ sobre que tipoestudante ele recebeu a partir das bolsas, um estudante vindo das camadas mais pobres, a grande maioria negra, moradores do subúrbio, da Baixada Fluminense"

Adivinhação

Formadahistória nos anos 1980, quando decidiu cursar Direito na PUC, Miracema Alves dos Santos já dava aulasuma universidade e na rede pública estadual. Embora pagasse regularmente as mensalidades no início do curso, após perder doisseus três empregos ela foi incluída no programabolsas para alunos negros e carentes.

Dedicada, ela conta que costumava ter um bom desempenho nas provas, embora fizesse uma jornada dupla, estudando pela manhã e trabalhando à noite. Mesmo assim, ela diz que,algumas situações, recebeu um tratamento diferente por parteprofessores.

"Uma vez fiz uma prova, tirei nota boa, mas aí eu notei que o professor não tinha considerado uma questão que eu sabia que estava certa", conta. Quando questionou o fato, Miracema conta que o professor perguntou como ela havia "adivinhado" a resposta. "Eu respondi que não havia adivinhado, tinha estudado."

Perguntada se ela atribui a atitude do professor ao fatoela ser negra, Miracema explica que atitudes racistas ou preconceituosas poucas vezes são claras.

"Essa questão do preconceito é muito difícil. Quando não é uma coisa muito direta, fica sempre uma dúvida. O brasileiro criou formasser preconceituoso sem demonstrar completamente", diz.

"Às vezes eu converso com meus colegas brancos sobre situações que eu passo e eles dizem: 'ah, mas pode não ter sido preconceito'. É, realmente pode não ter sido, mas quando você é negro, você sente a diferença, porque é com você."

Mercado

Mas é no mercadotrabalho que algumas situações ficam mais evidentes.

De acordo com uma pesquisa realizada2010 pelo Instituto Ethos e pelo Ibope, os negros ocupam 25,6% dos cargossupervisão, 13,2% dos cargosgerência e 5,3% dos cargos executivos nas empresas brasileiras, embora, segundo o IBGE, 50,7% dos brasileiros sejam pretos e pardos (categorias usadas pelo próprio IBGE).

"Nos espaçospoder e visibilidade é onde você encontra menos negros, mesmo os que já estão qualificados" diz Guimarães.

Reinaldo da Silva Guimarães
Legenda da foto, Para Guimarães, há 'resistência' aos 'que teoricamente tem menos capital cultural'

"Em condições idênticas, o negro vai ser sempre preterido,função das razões históricas,memória,subalternidade que foram impostas ao negro no Brasil. O negro sempre é o subalterno, não o principal".

Para além das estatísticas, essas situações se refletem no dia a diaalguns dos egressos do programaação afirmativa da PUC-Rio.

Atualmente âncora da emissora pública TV Brasil, Luciana Barreto conta que ao longosua carreira já enfrentou questionamentos a cercasuas qualificações para estarfrente às câmeras.

"(As pessoas dizem) ‘ah, você está no vídeo porque é negra, porque eles precisamalguém negro’. Você nunca está no vídeo porque é competente" diz.

Em um dos seus trabalhos anteriores, a jornalista afirma que foi diversas vezes confundida com maquiadora nos bastidores. "Eu costumava descansar na salamaquiagem no intervalo do telejornal. Sempre que entrava alguém assim, para algum programa especial, principalmente esses programasentretenimento, olhavam e pediam para mim: ‘você pode fazer minha maquiagem, por favor’".

No casoMiracema, ela continua dando aulashistória, mas atua esporadicamente como advogada. Ela conta que, durante uma audiência, já se encontrou com um juiz que era seu ex-professor, mas que, mesmo assim, ficou surpreso com o fatoela ter se formadouma instituiçãoelite como a PUC.

"Imagina (que ele) ia achar que essa neguinha que está fazendo audiênciaum juizado especial na zona norte tenha estudado na PUC", diz."Quantas abolições a gente vai precisar ter no Brasil para que um negro ocupe um espaço nessa sociedade?"