Spencer: mistérios da princesa Diana são exploradosfilmes e séries:
Os dois filmes não poderiam ser mais distintos. Enquanto Diana é um estereótipo desastrado, um vazio artístico, Spencer tem o benefício da hábil direçãoLarraín.
O filme é simultaneamente familiar e enigmático, como a própria personagem-título, repletosurrealismo expressivo e desafiador, idealizando Dianaum horrível feriadoNatalSandringham House, propriedade da rainha Elizabeth 2ª,1991 - quando seu relacionamento com o príncipe Charles estava próximo do fim.
Para grande desalentoDiana, tudo o que ela faz durante essa estada é regidoforma militar, desde a escolhasuas roupas até os alimentos que ela pode comer.
Uma cena específica, que sugere a rigidez opressiva do mundo que ela precisa enfrentar, fica gravada na memória.
Diana está jantando com os outros membros da família real, que tomam a sopacolheradas levadas à boca com simetria robótica. A câmera mostra a rainha com olhar austero, do pontovistaDiana;seguida, a cena se inverte e parece nos comprimir contra ela, colocando-nos dentro damenteparafuso.
Em pânico, ela derruba as pérolas que rodeiam seu pescoço no próprio pratolíquido verde. Em seguida,um momentohorror avassalador - como se estivesse comendo olhos suspensosum caldo venenoso - ela engole as pérolas inteiras, com grande dificuldade.
É uma das muitas metáforas visuais ricas do filme para transmitir a solidão sufocanteDiana - literal e psicológica - e outra dentre várias indicaçõesque Larraín não segue as regras dos filmes biográficos comuns.
O diretor chileno Larraín, cuja filmografia poderá ser considerada esotérica, decidiu produzir Spencer porque ele queria fazer um filme que agradassemãe. Mas por que ele acha que Diana - como mito, ícone pop e figura cultural - combina tão bem com ela?
"Bem, eu não tenho certeza", contou ele à BBC. "Este é o ponto. É claro que, quando eu cresci no Chile e via minha mãe tão interessada, eu era um garoto. E então percebi que minha mãe era apenas uma entre milhões [de fãsDiana]todo o mundo. Quando [Diana] morreu1997, eu compreendi que o mundo estavaluto."
Foi depoisJackie, seu filme biográfico similar2016 sobre Jacqueline Bouvier Kennedy, Onassis, que ele decidiu fazer Spencer, mergulhandoum profundo processopesquisa sobre a princesa falecida - que, segundo ele, incluiu a leituramuitas reportagens da BBC.
"Acho que, culturalmente falando, ela é uma das pessoas mais conhecidas da cultura contemporânea. E, ao mesmo tempo, é a mais misteriosa delas. Esse paradoxo... é simplesmente maravilhoso para o cinema e para a arte [em geral]", segundo Larraín.
O fatoque tantos produtores cinematográficos, documentaristas, produtorestelevisão, escritores, artistas, atores e compositores musicais tenham tentado abordar a história, e mesmo o mito,Diana serve para sugerir que Larraín tem razão.
Com certeza, seja devido a esse paradoxo cheiodramaticidade ou por outra razão, ela inspirou inúmeros trabalhos na cultura popular, desde as artes visuais (como a estátuaDiana, construída por Ian Rank-Broadley e inaugurada no início deste ano naantiga casa, o PalácioKensington, retratando-a como um ser divino) até o teatro, o cinema e a TV.
Pelo menos uma dúziaatrizes a retrataram na tela ao longo dos anos, incluindo as mais aclamadas Kristen Stewart, no filme Spencer, e Emma Corrin, na quarta temporada da série The Crown.
No outro extremo do padrãoqualidade, entre os diversos filmes biográficos produzidos para televisão, Diana, o filmeHirschbiegel, estrelando Naomi Watts como a princesa, é provavelmente o maior fiascotodos eles.
"Diana não precisa nem mesmo ser comparado com nenhum outro filme para ser identificado como um fracasso", segundo o críticocinema Guy Lodge. "Ele foi simplesmente uma tempestade perfeita, que reuniu um péssimo roteiro, direção confusa e atores totalmente à deriva nessa confusão."
Enquanto isso, Diana: O Musical (2021), o recente show barato da Broadway que teveexibição suspensa devido à pandemia, mas foi lançadoversão filmada na Netflixsetembro passado para menosprezomuitos, foi mais bem recebido com seu pequeno orçamento.
Dentre seus muitos absurdos, ele se apega a um dos mitos mais enganosos sobre Diana promovidos pela cultura popular: que o inícioseu namoro com o príncipe Charles teria sido um contofadas, da menina pobre que conhece a riqueza - apesar da fortuna multimilionária e da linhagem aristocráticamuitas gerações da família Spencer.
"É totalmente inverídico [pensarDiana na classe trabalhadora]", afirma Lodge, "mas se encaixa perfeitamente no mito" - um mito que se estabeleceu na cultura popular a partir do momentoque Diana ficou conhecida pelo público.
O iníciouma obsessão cultural
Já1982, apenas um ano depois do seu casamento com o príncipe Charles, as redestelevisão norte-americanas voltaramatenção para a florescente históriaDiana com Charles & Diana: A Royal Love Story ("Charles e Diana: uma verdadeira históriaamor",tradução livre).
O drama documentário produzido pela ABC que estreousetembro daquele ano enquadrou superficialmente seu namoro inicial no cenário dos contosfadas, culminando com a encenação da cerimônia na Catedral Saint Paul´s,Londres.
Apenas três dias depois, a CBS apresentouprópria dramatização das núpcias, adequadamente denominada The Royal Romance of Charles and Diana ("O romance realCharles e Diana",tradução livre), que retratou um romance ainda mais meloso e perfeito, mas foi um sucessoaudiência.
Tom Shales, do jornal norte-americano Washington Post, comparou este último com o filme da ABC e o descreveu como sendo inferior,um "voyeurismo real maravilhado, incapaz e aparentemente desinteressadotransformar vultos distantes dos noticiáriosseres mortais palpáveis".
Mas mesmo o primeiro, com seus brilhantes floreios quase majestosos,pompa real e fantástico assombro, é um produtoclara anglofilia, que vê a monarquia com os mesmos olhos brilhantesuma criança.
É claro que não demorou muito para que começassem os rumoresproblemas conjugais, até que,1992, as fitas do "Camillagate", revelando conversas íntimasCharles compaixão da infância, Camilla Parker-Bowles, antecederam a separação oficialCharles e Diana.
"As pessoas que puderam ver seu casamento... assistiram a uma narrativa construídacontofadas sendo desfeitatempo real", relembra Lodge. "Foi atraente para a imprensa, é claro, que trouxe inicialmentehistória para a maiorianós."
Por isso, as dramatizações da vidaDiana que se seguiram, emmaioria, imaginaram a queda da princesacontosfadas, fixando-se no trágico turbilhãofotógrafos paparazzi agressivos, na obsessão do público, celebridade tóxica, distúrbios alimentares e desilusão amorosa que viriam a dominarimagem popular.
Um desses exemplos anteriores àmorte é Princess in Love ("A princesa apaixonada",tradução livre),1996, outra capitalização da "Dianamania" feita pela CBS para televisão, que se concentra no seu caso amoroso com o capitão James Hewitt - desta vez, com base no livro do mesmo nomeAnna Pasternak, que teria contado com Hewitt como fonte central.
Nele, são apresentadas as discussões familiares: Diana e Charles brigando sobre Camilla, o "terceiro membro" do casamento ("você não acha que há gente demais aqui?", pergunta Diana,uma fala adaptada dafamosa entrevista1995 ao jornalista Martin Bashir para o programa Panorama, da BBC); Charles, hipocritamente, responsabiliza Diana pelas suas indiscrições; e o relacionamento sem amor a leva para os braçosoutro. Com seu tom piegas esériepadrões comuns, a produção não se destacou.
É impossível saber o quanto Diana poderia estar na consciência cultural se fosse viva hoje. Mas pouco se duvida do seu real endeusamento causado pela morte inesperada1997, como ocorre frequentemente com ícones pop falecidos com pouca idade.
Horas depois da confirmação damorte, o primeiro-ministro britânico Tony Blair já a chamava"a princesa do povo" e esta seriaimagem duradoura.
Essa ideia somente veio a se consolidar ainda mais na cultura popular contemporânea, com a exaltaçãoDiana como figura trágica - a mesma adotada por Spencer, como se poderia esperar com o intertítulo mencionado acima.
Mas a essência dessa tragédia ainda é sujeita a interpretações. "Tudo o que um herói da tragédia grega faz é escapar da tragédia", segundo Larraín.
"Mas, ao fazê-lo, ele só chega mais perto da tragédia. E, no fim, enfrenta a morte. É isso que, infelizmente, acredito que Diana viveu metaforicamente. E,forma muito prática, ela estava dirigindo com rapidez para escapar da imprensa quando sofreu o acidenteParis naquela noite", acrescentou o diretor chileno.
Larraín observa que ele e o roteirista do filme, Steven Knight, queriam deliberadamente ignorar a "tragédia específica" - ou seja, os anos, meses e dias finaisDiana, e até o acidente fatal -trocaalgo mais metafórico:suas palavras, "uma sentimentotragédia, uma atmosfera trágica na personagem".
E, enquanto produções como Diana e Diana: O Musical abordam superficialmente a angústiaDiana, explorando cinicamente a tragédia como catástrofes baratas como fazem os tabloides, o filme Spencer oferece uma representação mais robusta da princesa.
"Eu gosto muitoSpencer, mas, mesmo se você não gostar - já que o cinemaLarraín ainda é controverso -, você pode observar que ele é comprometido com um pontovista", afirma Lodge.
"Ele traça um mundo físico e psicológicovolta da heroína que é totalmente envolvente e se interessa fundamentalmenteDiana enquanto personagem humana, não como uma manchete ambulante."
A variedade infinitaDiana
Merecidamente, Spencer recebeu inúmeros aplausos da crítica desdeestreia no FestivalFilmeVenezasetembro passado, desafiando a audiência comabordagem formalmente audaciosa da vida da princesa.
Sandringham House parece tão "assustadora quanto o hotelKubrikO Iluminado", segundo Xan Brooks, do jornal The Guardian, "com corredores sem fim, quartos mal-assombrados e visitantes pálidos sentados à mesapostura totalmente ereta".
Muitos críticos também destacaram o pontovista aparentemente republicano do filme, mais direto que implícito: "se você tiver o menor desapreço sobre a... monarquia britânica", segundo Jessica Kiang, do site The Playlist, "um dos maiores prazeres... é imaginar como [Spencer] exibirá os personagens ainda vivos indiretamente retratados pelo filme".
Outros, como Xan Brooks, no jornal The Guardian, argumentaram que a abordagem ousada e irreverente do filme só poderia virum "outsider" - alguém que não cresceu na sombraBuckingham e Windsor que cobre o país.
Mas Larraín não se considera dessa forma. "Venhouma república - que pode ser melhor ou pior - mas não me considero um 'outsider' com relação a Diana", afirma ele.
"Acho que ela é parte da narrativa universal, [para quem] os países e regiões têm diferentes percepções e abordagens. Algumas delas são muitos simples: referem-se à moda, à família e à caridade."
Cada atriz que interpretou Diana também ofereceuprópria interpretação da princesa, embora com sucesso variável.
Dentre as interpretações mais famosas, Watts optou por uma personificação óbvia, enquanto Corrin, embora possua provavelmente a menor semelhança física, talvez ofereça a interpretação mais sensível da personagem Diana, habilmente invocando familiaridade com afetações - como a famosa inclinaçãocabeça.
Já a princesaStewart é a mais inesperada, intencionalmente teatral e maravilhosamente sofisticada. A variedade dessas interpretações confirma um ponto importante destacado por Larraín: "todos nós temos uma versãoDiana dentronós. Dependendoonde você é, dainstrução, dos seus interesses, do seu gênero, daorientação sexual etc. - você acabará por criar aprópria versão", comenta ele, acrescentando que ele vê Diana como "fragmentos, quase como um Picasso... que, quando você reúne, criam o ícone".
A própria versãoLarraín para Diana mudou à medida que ele concebia Spencer e percebia que, para ele, era afinal um filme sobre a maternidade, segundo ele.
Essa representação certamente tem razãoser. Talvez a cena mais emotivatodos os trabalhos mencionados até aqui é aquelaque, no início do segundo atoSpencer, Diana, Harry e William brincam"soldados" no meio da noite.
É um mistojogo e ritual elaborado, baseadocandura, no qual os melhores jogadores são penalizados - sob a alegaçãoserem pessoas cuidadosas (sim, esta é uma metáfora recorrente) - e precisam compartilhar seus pensamentos mais sinceros. É pelo prisma do afeto materno que a almaDiana é mais completamente exposta.
O que o mitoDiana nos traráseguida?
Os telespectadoresThe Crown podem esperar Elizabeth Debicki tomar o lugarEmma Corrin para interpretar os últimos anos da princesa nas duas temporadas finais da saga. Mas, depois disso, só o tempo dirá.
Talvez, depoistantas abordagens declaradamente trágicas da vidaDiana, surjam mais representações da princesa mostrando a luzvez da sombra e até alguma alegria -forma semelhante ao musical e ao episódio da série britânica Urban Myths, da Sky TV. Ambos contaram a história apócrifa da visita da princesa ao famoso localentretenimento LGBTQ+ The Royal Vauxhall Tavern,Londres, junto com Freddie Mercury e o DJ Kenny Everett.
Mas, como cada interpretação oferece algo novo e cria ainda mais discussões, um ponto permanece certo: a auramistérioDiana nunca será completamente desfeita.
Leia a íntegra desta reportagem (em inglês) no site BBC Culture.
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