Tratamento contra Alzheimer: Agência americana altera indicação; entenda o que muda:

Ilustraçõescérebros

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Demências como o Alzheimer já atingem 45 milhõespessoas no mundo e não há tratamentos que atuem diretamente na doença

Segundo um levantamento feito pelo The New York Times,termos numéricos, o público-alvopotencial anteriormente era6 milhõesamericanos. Agora, ficacerca2 milhões.

O FDA alega que, desde a aprovaçãojunho, seguradorassaúde e os próprios cidadãos tinham muitas dúvidas sobre quem deveria pagar pelo tratamento e quando ele seria realmente válido. A alteração serviu justamente para esclarecer essas questões, apontam os representantes.

O aducanumabe tem como alvo a beta-amiloide, uma proteína que forma aglomerados anormais no cérebropessoas com Alzheimer. Essas formações podem danificar as células e desencadear demência, incluindo problemasmemória e comunicação, alémconfusão mental.

Marasmo total

O aducanumabe estava cercadogrande expectativa — afinal, a última aprovaçãoum tratamento contra o Alzheimer aconteceu2003, há 17 anos, quando um fármaco chamado memantina chegou ao mercado.

De lá para cá, mais240 moléculas diferentes foram testadas, mas nenhuma se mostrou segura e eficaz. A taxafracasso supera os 99% e é a maiortodas as especialidades médicas — a títulocomparação, na área da oncologia, cerca80% das terapias falham durante os testes clínicos.

Para completar o cenário, estima-se que 45 milhõespessoas tenham algum tipodemência no mundo (2 milhões delas no Brasil). Com o envelhecimento da populaçãovários países, esse número deve duplicar a cada 20 anos.

Os tratamentos atuais ajudam a controlar alguns sintomas e até atrasam um pouco a progressão da doença, mas eles se tornam ineficazes nos casos mais graves e avançados.

Mas, afinal, por que é tão difícil criar novos tratamentos contra o Alzheimer?

Há uma sérieobstáculos e entraves nessa história. E o próprio aducanumabe é um exemplo para ilustrar essa busca infrutífera dos últimos anos.

Esperanças e frustrações

Em meados2015, o aducanumabe apareceu como uma das grandes promessas contra o Alzheimer. Os estudosfase 1 chamaram tanta atenção que foram destaquecapa da revista Nature2016.

A droga, desenvolvida a partircélulasdefesaidosos que não tinham demência, se mostrou capazeliminar uma proteína chamada beta-amiloide no cérebro.

Pelo que se sabe até o momento, essa substância está relacionadaalguma maneira ao início da doença. Com o tempo, ela se acumula do ladofora dos neurônios e dá início ao processoperda das memórias e da cognição.

O aducanumabe foi apenas um entre maisuma dezenaanticorpos monoclonais feitos para frear esse tipodemência. Nos testes iniciais, vários deles se mostravam capazesretirar o excesso dessa talbeta-amiloide da massa cinzenta.

Porém, quando os estudos progrediam para as fases finais, essa "faxina" cerebral não repercutia nos sintomas da doença: os pacientes continuavam a ter prejuízos nas recordações e na capacidaderaciocinar.

Os cientistas suspeitaram, então, que o problema não estava no mecanismo das drogassi, mas no momentoque elas eram aplicadas.

Talvez os voluntários recrutados para os estudos estivessem numa fase muito adiantada da doença,que os danos aos neurônios já eram irreversíveis.

Hojedia, se sabe que o Alzheimer começa a corroer o cérebro até duas ou três décadas antesos primeiros sintomas darem as caras. "A beta-amiloide se acumula com grande antecedência aos incômodosmemória", conta o neurologista Fábio Porto, do InstitutoPsiquiatria do Hospital das ClínicasSão Paulo.

Portanto, um indivíduo que começa a ter falhas nas lembranças aos 80 anos pode estar num longo processo degenerativo, que começou lá quando ele tinha apenas 50 ou 60 anos.

Seguindo essa lógica, será que usar os anticorpos monoclonais antecipadamente, nessa fase assintomática, ou quando os primeiríssimos sintomas aparecerem, poderia fazer alguma diferença?

Ilustraçãoneurônios conectados

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Legenda da foto, Pelo que se sabe até o momento, a doença se inicia com a deposição da proteína beta-amiloide (representada na cor laranja na ilustração) do ladofora dos neurônios

Reviravolta surpreendente

Foi justamente para responder a essa pergunta que o aducanumabe foi testadodois ensaios clínicosfase 3 (os últimos antes da aprovação) a partir2016.

Esses estudos ganharam nomesinglês: ENGAGE e EMERGE. O primeiro teve a participação1.647 voluntários, enquanto o segundo recrutou 1.638 pessoas.

Em março2019, os responsáveis pelos trabalhos resolveram fazer uma análise preliminar do progresso até aquele momento, para ver como as coisas estavam evoluindo.

Foi um verdadeiro banhoágua fria: os resultados não estavam dentro das expectativas e os estudos foram encerrados antes do prazo.

Sete meses depois, veio a notícia que ninguém esperava: Biogen e Eisai anunciaram que haviam reavaliado as duas pesquisas e encontradouma delas evidênciasque o aducanumabe poderia, sim, funcionar num determinado grupopacientes.

As empresas foram além e disseram que, a partir dos dados, pediriam a liberação do medicamento para uso clínico nos EUA.

E essa trajetória foi concluídajunho2021, quando o FDA deu a aprovação, apesartodas as polêmicas envolvidas nessa história.

As controvérsias

A mudançarumos, o pedido e a aprovação pegaram a comunidade científicasurpresa. Afinal, não é comum que pesquisas como as que estavamandamento sejam paralisadas ou reanalisadas no meio do caminho.

A surpresa ficou ainda maior agora, com essa mudança incomum na bula logomenosum mês após o ok regulatório.

"Geralmente, todo o desenho do estudo clínico é definido antes do início. Fazer modificações assim é uma coisa muito complexa, que leva a problemas estatísticos", diz o neurocientista Eduardo Zimmer, professor do DepartamentoFarmacologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

O químico americano Derek Lowe não poupou críticas aos movimentos feitos por Biogen e Eisai. Numa sérietextos publicadosseu blog In The Pipeline, no site da revista Science, no final2020 ele demonstrou desconfiança com os resultados do aducanumabe:

"Eu não acredito que as empresas demonstraram a eficácia [do medicamento]. Eu acho que eles têm capacidade suficiente para fazer um estudo melhor se assim quisessem. Mas eles não querem. Eles desejam ir logo até o FDA para ter a droga aprovada e começarem a imprimir dinheiro".

Os especialistas dizem que, antesbuscar a aprovação nas agências regulatórias, os responsáveis pelo fármaco deveriam fazer um novo estudofase 3, que focasse justamente nessas doses mais altas e nesse perfilpacientes que parece se beneficiar mais do remédio.

O problema é o tempo. "Esses novos testes exigiriam um investimento econômico gigantesco e demorariam mais quatro ou cinco anos para darem os resultados", estima Zimmer, que também é membro da Academia BrasileiraCiências.

E no Brasil?

Em março, a Biogen anunciou que também pediu a aprovação do aducanumabe para a Agência NacionalVigilância Sanitária (Anvisa).

Em uma nota, a empresa disse que "o medicamento teria o potencialalterar a fisiopatologia da doença, desacelerar o declínio cognitivo e manter a capacidade dos pacientesrealizar certas atividades diárias por um período, incluindo a gestãofinanças pessoais, a realizaçãotarefas domésticas, como limpeza e atividades relacionadas à lavanderia, compras e viajar independentemente".

Num comunicado para a imprensa, Tatiane Rivas Marante, gerente geral da farmacêutica no Brasil, afirmou que, se aprovado, o aducanumabe poderia "se tornar um vetoresperança para aqueles impactados por essa doença devastadora".

Até o momento, ainda não houve nenhuma resposta oficial da Anvisa sobre o caso e se a medicação também será liberadanosso país.

Profissional da saúde atende um indivíduo mais velho

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Legenda da foto, O tratamento atual do Alzheimer envolve a prescriçãomedicamentos que aliviam os sintomas nas fases iniciais, mas se tornam inefetivos com a progressão da doença

Mais pedras no caminho

A dificuldadedemonstrar o benefício práticouma nova molécula é apenas a ponta do iceberg desse drama que aflige milhõespacientes e seus familiares.

Pesquisadores da área enfrentam uma sérieoutras barreiras para entender o Alzheimer e seus desdobramentos.

Para começoconversa, não existe um modelo animal que permita replicar as características do cérebro humano e da doençaAlzheimer com fidelidade.

Isso dificulta bastante na horafazer trabalhos experimentais, ou mesmo entender a açãonovas drogascobaias. Esse estágiopesquisa é essencial antesque as formulações sejam encaminhadas para testes com seres humanos.

Outra barreira importante está no diagnóstico: atualmente, a detecção do Alzheimer dependetestes muito invasivos ou muito caros.

É o caso, por exemplo, da análise do líquor, uma substância encontrada na medula óssea, ou do PET-CT, um exameimagem bastante específico. "Esses são métodos ainda pouco acessíveis, por razões técnicas e financeiras", pontua Porto.

Na horarealizar estudos clínicos, por exemplo, os laboratórios gastam milhõesdólares para garantir que os voluntários façam exames do tipo e conferir se eles realmente têm Alzheimer. Esse investimento maciço é algo que poucos laboratórios conseguem fazer.

Por fim, há muitas dúvidas sobre o mecanismo que está envolvido neste tipodemência. Ainda existe controvérsia sobre o papel da proteína beta-amiloide na doença e como ela interage com várias substâncias que se alteram no cérebro durante o processodegeneração, como uma outra proteína conhecida como TAU.

Enquanto esses mistérios permanecerem, é difícil desenvolver tratamentos específicos capazesatuaralguma etapa da enfermidade.

Promessas futuras

Vale destacar, por fim, que o aducanumabe não é a única opção que chama a atençãopesquisadores e da comunidadepacientes e familiares:acordo com o site ClinicalTrials.Gov, mantido pelo governo americano, outros 2.623 testes clínicos com candidatos a remédios contra o Alzheimer estãoandamento neste exato momento.

Um que é acompanhadoperto é o solanezumabe, da Eli Lilly. Ele também atua na proteína beta-amiloide e está sendo avaliadopacientes com sintomas bem iniciais da enfermidade. Se tudo der certo, seus resultados são esperados para 2023.

Em paralelo, outros gruposcientistas procuram caminhos criativos para frear a progressão do Alzheimer. Alguns miram na proteína TAU, que aparece no cérebro nas fases mais avançadas da condição.

Outros vão além e testam terapias à baseluzes ou maneirasmodificar a microbiota intestinal, um conjuntobactérias que vive no nosso sistema digestivo e parece influenciar até na saúde do cérebro.

Num cenário sem grandes novidades e algumas polêmicas recentes, o alento é que o futuro promete trazer notícias um pouco mais animadoras.

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