A 'guerra civil' na Igreja Católica que pode abalar pontificado do papa Francisco:
A carta foi divulgada enquanto o papa visitava a Irlanda, um dos países afetados. Francisco se reuniu com vítimas e pediu perdão por abusos cometidos por membros da Igreja, ritual repetidooutras viagens. Mas muitos católicos lamentam a faltamedidas concretas euma resposta rápida aos escândalos, e alguns chegaram a abandonar a Igreja.
Nesse momentovulnerabilidade, a sugestãoque o papa seria cúmplice dos abusos pode abalar seu pontificado e expôs as divisões na alta hierarquia da Igreja Católica.
"Essas acusações se tornaram parteum embate ideológico muito maior. Um dos lados vê Francisco como o papa que finalmente abriu a Igreja a um entendimento mais realista sobre sexualidade, casamento, homossexualidade", disse à BBC News Brasil o professorteologia e estudos religiosos Massimo Faggioli, da Universidade Villanova, na Pensilvânia.
"O outro lado acredita que isso significa o fim da Igreja, e está disposto a fazer qualquer coisa para impedir isso. Mesmo que seja o maior tabu, que é pressionar um papa a renunciar, o que não acontece há seis séculos", ressalta, referindo-se à renúnciaGregório 12,1415.
Oposição
Desde que foi eleito,março2013, o papa é alvooposição por parte da ala conservadora da Igreja, tanto dentro do Vaticano quanto entre acadêmicos, que rejeitam o que consideram um afastamento da doutrina e tentam impedir reformas. No ano passado, dezenasteólogos chegaram a assinar uma cartaque acusam Franciscodivulgar heresias na exortação apostólica sobre a família Amoris Laetitia,2016.
O documento, que é uma tentativaabrir novas portas para católicos divorciados e tornar a Igreja mais tolerante com questões relacionadas à família, representa um sinal clarodissidência, que reflete o descontentamento dos setores mais conservadores da instituição.
Apesarnão ter adotado mudanças concretas profundas nos ensinamentos da Igreja, o papa defende uma postura menos rígida esintonia com atitudes modernasrelação a fiéis que se afastaram da doutrina, demonstrando tolerância a homossexuais e permitindo que católicos divorciados ou casados novamente recebam a comunhão.
Francisco também deu destaque a questões sociais, incentivando os fiéis a cuidar dos pobres, acolher imigrantes e refugiados e combater mudanças climáticas, e rejeitou alguns privilégios do cargo, optando, por exemplo, por não morar no Palácio Apostólico.
Emcarta, Viganò não apenas acusa Franciscoacobertamento, mas tenta conectar as críticas que conservadores fazem ao papa, especialmente à posturaaceitaçãogays -referência a uma entrevista dada após viagem ao Brasil,2013, quando o pontífice disse "Se um gay busca Deus, quem sou eu para julgar" -, aos escândalosabusos sexuais, afirmando que "redes homossexuais" dentro da hierarquia da Igreja são cúmplices na "conspiraçãosilêncio" que permitiu que os abusos praticados por McCarrick e outros continuassem.
A sugestãoque homossexualidade e abusos estejam relacionados é amplamente rejeitada por especialistas, mas ainda persistealgumas alas da Igreja. Apesarmuitos dos abusos terem ocorrido há várias décadas, durante os pontificados dos antecessoresFrancisco, opositores ligam a crise à incapacidade do papamanter sob controle a homossexualidade entre o clero.
McCarrick, que liderou a arquidioceseWashington2001 a 2006, durante os pontificadosJoão Paulo 2º e Bento 16, renunciou ao postocardealjulho, após acusaçõesque teria assediado seminaristas adultos e abusadoum menino durante anos. Ele diz que é inocente.
McCarrick havia deixado a arquidiocese ao completar 75 anos, idadeque os bispos católicos são obrigados a apresentarrenúncia - que pode ser aceita pelo papa ou não -, mas permaneceu no Colégio dos Cardeais, que aconselha o pontífice.
Viganò alega que vários membros do Vaticano sabiam da conduta imprópria do cardeal havia anos. Segundo a carta, depois que McCarrick deixou a arquidioceseWashington, Bento 16 havia proibido que ele, que ainda era cardeal, oficiasse missas e vivesseum seminário, entre outras restrições. Mas Francisco, apesarsaber das acusações, teria levantado essas restrições e até permitido que o cardeal ajudasse na escolhabispos americanos
Os católicos americanos ainda tentam digerir as revelações divulgadas no inícioagostoum relatório da Suprema Corte do Estado na Pensilvânia. O documento acusa pelo menos 300 padresterem abusadomaismil crianças ao longo70 anos e líderes da Igrejaterem acobertado os crimes.
Reações
Apoiadores do papa e alguns sobreviventesabusos questionam a credibilidade das alegações, apresentadas sem evidências, e acusam Viganòusar o sofrimento das vítimas para avançaragenda política e uma vingança pessoal contra Francisco.
Alguns observam que McCarrick apareceuvários eventos, inclusive ao ladoBento, no períodoque supostamente estaria sob sanções, e lembram que foi Francisco, ao contrárioseus antecessores, que forçou o cardeal a renunciar.
Também ressaltam o fatoos principais nomes criticados na carta serem liberais e aliados do papa, o que levantaria suspeitasque as acusações têm motivação ideológica.
"Esse documento não tem o objetivoproteger crianças, e sim atacar o papa e qualquer um associado a ele", disse à BBC News Brasil o pesquisadorestudos católicos Michael Sean Winters, colunista do jornal National Catholic Reporter.
Mas alguns bispos conservadores defenderam o ex-núncio como um homemprincípios. Um deles, Joseph Strickland,Tyler, no Texas, orientou padressua diocese a ler durante a missa do último domingo uma declaraçãoque afirma acreditar nas alegações.
Um dos principais opositores do papa, o cardeal americano Raymond Burke, ex-arcebispoSt. Louis, disseentrevista à imprensa italiana que, caso as alegações sejam comprovadas, "sanções apropriadas" devem ser aplicadas.
Históricopolêmicas
Viganò tem um históricopolêmicas. O italiano77 anos trabalhoumissões do Vaticano no Iraque e no Reino Unido, foi núncio apostólico na Nigéria e ocupou altos cargos na Cúria Romana, mas nunca foi promovido a cardeal.
Ele próprio já foi acusadotentar acabar com uma investigação sobre a conduta sexualum ex-arcebispo2014, segundo documentos relacionados à arquidioceseSt. Paul-Minneapolis. Também foi personagem no escândalo "Vatileaks",2012,que documentos do Vaticano foram vazados, entre ele cartasque Viganò sugeria quetransferência para Washington,2011, estaria relacionada aos seus esforços contra a corrupção na Santa Sé.
Em 2015, durante a visitaFrancisco aos Estados Unidos, Viganò organizou um encontro surpresa entre o papa e uma funcionária pública que havia se recusado a emitir licençascasamento para casais do mesmo sexo alegando motivos religiosos. O encontro foi visto como um desafio à mensageminclusão do papa e obrigou o Vaticano a divulgar uma declaração se distanciando da funcionária. Pouco tempo depois, Francisco substituiu Viganò.
EmtemporadaWashington, Viganò cultivou relações com setores católicos conservadores críticos do papa, um grupo que Winters descreve omo "pequeno, mas muito bem organizado e muito bem financiado".
Segundo Faggioli, desde o início do pontificadoFrancisco, círculos conservadores do catolicismo americano deixaram claro que não gostavam do papa esuas tentativasreforma. Ele observa ainda que poucos bispos nos Estados Unidos defenderam o papa após a publicação da carta. "A maioria dos bispos está esperando (paraposicionar)", acredita.
Por enquanto, o papa tem mantido silêncio sobre as acusaçõesViganò, limitando-se a dizer que o documento "fala por si próprio". Segundo analistas, o papa não quer dar mais visibilidade a seus críticos.
Mas no avião ao voltar da Irlanda, ao responder a uma pergunta sobre o que pais deveriam dizer a um filho ou filha que revela ser gay, o papa disse: "Não condene. Dialogue, entenda."
Faggioli diz acreditar que a cartaViganò tem inconsistências e "buracos", mas mesmo assim considera fundamental que o papa e outros líderes católicos respondam a algumas questões, especialmente sobre McCarrick.
"Os católicos americanos, tanto liberais quanto conservadores, querem saber como foi possível que essa pessoa se tornasse um dos mais importantes líderes da Igreja enquanto outros sabiam (dos abusos). Como isso pode acontecer?"