'Os Lusíadas': a obra que 'fundou' a língua portuguesa há 450 anos:como apostar no kto

Pintura da naucomo apostar no ktoVasco da Gama, feita no século 19 por Ernesto Casanova

Crédito, Domínio Público

Legenda da foto, Pintura da naucomo apostar no ktoVasco da Gama, feita no século 19 por Ernesto Casanova

Mas a grandezacomo apostar no ktoOs Lusíadas não se resume ao engenhoso e esmerado formato adotado por Camões, nem pelo grande númerocomo apostar no ktoversos, tampouco pelas próprias históriascomo apostar no ktoheroísmo ali narradas.

Os Lusíadas se tornou um marco pelo uso da língua portuguesa — na época chamada apenascomo apostar no kto"linguagem", quase comocomo apostar no ktomodo pejorativo quando comparada ao jeito cultocomo apostar no ktose expressar por escrito, ou seja, o latim.

E, protagonista e frutocomo apostar no ktoum momento históricocomo apostar no ktovalorizaçãocomo apostar no ktotais identidades, a obra é reconhecida como uma espéciecomo apostar no ktoliteratura fundadora do idioma hoje oficialmente praticadocomo apostar no ktoPortugal ecomo apostar no ktooutros oito países, inclusive o Brasil.

Doutorcomo apostar no ktoestudos literários pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e criador do canal no YouTube Elite da Língua, o professor Emerson Calil Rossetti situa Os Lusíadas como "a maioridade e a identidade poética da língua portuguesa".

"Constituemcomo apostar no ktofato uma referência para e sobre a língua portuguesa. Não somente por ser uma obra-prima, o que é hoje consensual, mas por ser a primeira produção do idioma que alcança prestígio para além das fronteirascomo apostar no ktoPortugal ou dos países lusófonos", argumenta ele.

Primeira ediçãocomo apostar no kto'Os Lusíadas'. Foto: Domínio público
Legenda da foto, Primeira ediçãocomo apostar no kto'Os Lusíadas'. Foto: Domínio público

Poeta fundador

"Camões captou com precisão o espírito da Renascença, tomando como base as epopeias antigas e construindo seu longo poema com soluções estéticas típicas da perfeição formal da época mas a partir das possibilidades expressivas da nossa língua, como jamais se havia visto", analisa Rossetti.

"É o caso, por exemplo, do ritmo bem marcado e regular dos decassílabos heroicos e, num universo repletocomo apostar no ktoalusões históricas, mitológicas e cristãs, as combinaçõescomo apostar no ktorimas que caracterizarão, igualmente, as 1102 estrofes da epopeia."

Professora livre-docente da Universidadecomo apostar no ktoSão Paulo (USP), onde é pesquisadora do Departamentocomo apostar no ktoLetras Clássicas e Vernáculas, a linguista Marcia Mariacomo apostar no ktoArruda Franco contextualiza a obra como partecomo apostar no ktoum momentocomo apostar no kto"dignificação da língua portuguesa como línguacomo apostar no ktocultura".

"Até o século 16, era muito raro que um autorcomo apostar no ktoPortugal escrevessecomo apostar no ktoportuguês. E mesmo ao longo do século 16, as línguascomo apostar no ktocultura preferidas dos letrados, tanto os humanistas puros que usavam o latim, como os impuros que usavam as línguas vulgares, era o castelhano ou o latimcomo apostar no ktovez do português", esclarece ela.

Franco lembra que esse movimento vinha sendo experimentado por alguns escritores, como é o casocomo apostar no ktoSácomo apostar no ktoMiranda (nascido provavelmentecomo apostar no kto1487 e mortocomo apostar no kto1558), "que ousavam essa aventuracomo apostar no ktodescobrir o valor letrado da língua portuguesa,como apostar no ktotrabalhar sobrecomo apostar no ktoelocução,como apostar no ktoescrevercomo apostar no ktoportuguês".

"Ao longo do século 16, vários vão levar a cabo essa tarefacomo apostar no ktoescolher a língua portuguesa como línguacomo apostar no ktocultura. Não só no discurso poético, mas também no discurso histórico. [O idioma está presente] nos cronistas que escrevem sobre as grandes descobertas, quando a língua portuguesa é a preferida", conta ela.

Vale ressaltar que já desde o reinadocomo apostar no ktoManuel I (1469-1521), médicos portugueses eram obrigados a efetuar suas prescriçõescomo apostar no ktolíngua portuguesa. "Em 'linguagem', como eles diziam. Naquela língua falada, que todo mundo entendia", comenta a professora.

Era um períodocomo apostar no ktoebulição acadêmica, na qual os linguistas se propunham a entender e explicar a organização daquilo que se falava. "Começa a surgir a filologia portuguesa, uma sériecomo apostar no ktogramáticascomo apostar no ktodefesa da língua portuguesa como línguacomo apostar no ktocultura, e não mais apenas como 'linguagem'", contextualiza Franco. "'Os Lusíadas' culminam esse processo, fazem com que esse processo se consolide."

"Porque 'Os Lusíadas' são escritoscomo apostar no ktogênero épico, sublime. Relaciona-se às épicas da cultura clássica ocidental, da cultura antiga, que era modelizada pelos renascentistas. 'Os Lusíadas' estãocomo apostar no ktolinha direta com outras épicas,como apostar no ktoHomero [da Grécia Antiga] ecomo apostar no ktoVirgilio [da Roma Antiga]", diz a linguista.

Para o escritor Ênio César Moraes, professorcomo apostar no ktolíngua portuguesa e assessor pedagógico do Colégio Presbiteriano Mackenzie Brasília, a importânciacomo apostar no ktoOs Lusíadas pode ser dividida entre os aspectos literário e histórico.

No primeiro quesito, o mérito recai sobre "o fatocomo apostar no ktose tratarcomo apostar no ktouma epopeia, obra épica que, no plano artístico-literária, põe Portugal ao ladocomo apostar no ktonações como Grécia e Roma". Moraes observa que, não à toa, o próprio narrador do poema "afirma, altaneiro": "Cessa tudo o que a Musa antiga canta/ Que outro valor mais alto se alevanta". "[Está] enaltecendo a temática da obra,como apostar no ktocomparação às produções grega e romana", interpreta.

Já o segundo ponto está no fatocomo apostar no ktoque o textocomo apostar no ktoCamões é a "narrativacomo apostar no ktograndes feitos do povo português, na pessoacomo apostar no ktoVasco da Gama, à época das grandes navegações".

"Virgílio [o poeta romano] é o grande interlocutorcomo apostar no ktoCamões. E com esse trabalho ['Os Lusíadas'], ele engrandeceu o português e o consolidou como línguacomo apostar no ktocultura. Fez isso graças ao seu trabalhocomo apostar no ktoescrever com tropos, figuras, imagens, um todo. Realizou um trabalho sobre a prosódia dos versos, escolhendo os decassílabos, a oitava para urdir o seu poema,como apostar no ktoépica… Trabalhou a elocução da língua portuguesa", complementa Franco.

Camõescomo apostar no ktopintura anônimacomo apostar no kto1556. Foto: domínio público
Legenda da foto, Camõescomo apostar no ktopintura anônimacomo apostar no kto1556. Foto: domínio público

Shakespeare, Alighieri…

A obra garantiu a Camões o mesmo lugar na língua portuguesa ocupado por William Shakespeare (1564-1616) no inglês, Dante Alighieri (1265-1321) no italiano, François Rabelais (1494-1553) no francês, e France Prešeren (1800-1849) no esloveno. Em suma, cada língua considerada moderna tem no trabalhocomo apostar no ktoum grande escritor a consolidaçãocomo apostar no ktosuas bases e a matrizcomo apostar no ktosuas normas.

"Camões representou esse movimentocomo apostar no ktodefesa e ilustração das línguas ditas vulgares, faladas no dia a dia. Que foi geral na Europa, quando todas as línguas nacionais dos reinos passaram a ser utilizadas também na línguacomo apostar no ktocultura,como apostar no ktodetrimento do latim", diz a linguista Franco.

"Em Portugal, havia a opção entre duas línguas vulgares: o castelhano e o português. Mas cada vez mais os letrados preferiram escrevercomo apostar no ktoportuguês", acrescenta ela.

Camões mesmo já havia escrito poemascomo apostar no ktoespanhol. Decidiu utilizar o português para Os Lusíadas e, logocomo apostar no ktoseguida,como apostar no ktoobra também foi traduzida — ainda no século 16, ganhou três traduções para o castelhano e pelo menos uma publicaçãocomo apostar no ktolatim, conforme pesquisascomo apostar no ktoFranco.

"Do pontocomo apostar no ktovista da história da evolução da língua, o português atinge seu estágio moderno exatamente no século 16", ensina Rossetti. "É quando o idioma se uniformiza e adquire as características básicas que ainda hoje se reconhecem nas nossas gramáticas."

"A obracomo apostar no ktoCamões assimila essa nova feição e legitima as potencialidades da nossa língua como expressão poéticacomo apostar no ktotemas universais e aspectos atemporais acerca da condição humana. Por meio dos recursos fônicos, morfológicos e sintáticos, o escritor confirma o potencial também inventivo: a natureza literária do idioma. Nesse sentido, a língua portuguesa torna-se, pelacomo apostar no ktopena, uma herança cultural, modelocomo apostar no ktopossibilidadescomo apostar no ktoexploração criativa", diz ainda o professor. "Por isso, Camões é patrimônio, como também Shakespeare e Dante."

Rossetti lembra que a partir das letrascomo apostar no ktoCamões abriu-se um "espaço para outros gênios do pensamento ocidental"como apostar no ktolíngua portuguesa. "É um novelocomo apostar no ktomuita linha, e a primeira ponta desse fio se chama Camões", resume.

Professor Moraes ressalta que a épocacomo apostar no ktoque o poeta viveu, o Renascimento, foi marcada por efervescência científica e artístico-cultural. Assim, com Os Lusíadas, ele "deu visibilidade ao povo português, ao ressaltar feitos grandiosos do presente, as grandes navegações" e também garantiu "importante referência para os estudos filológicos e linguísticos promovidos nos séculos seguintes".

"Como sabemos, a língua é um dos principais elementoscomo apostar no ktoidentidade nacional, e o excelso caráter nacionalista dacomo apostar no ktonarrativa exalta, para além do conteúdo, a língua portuguesa. Não é à toa que, até hoje, o poeta português figura como um dos maiores nomes da literatura lusófona", pontua ele.

Litografiacomo apostar no ktoAntónio Ramalho, do século 19, representa Camões lendo Os Lusíadas ao rei português. Foto: domínio público
Legenda da foto, Litografiacomo apostar no ktoAntónio Ramalho, do século 19, representa Camões lendo Os Lusíadas ao rei português. Foto: domínio público

Apenas no vestibular?

Quatrocentos e cinquenta anos depois, por que vale a pena ler Os Lusíadas ainda hoje? Para os especialistas, não se trata apenascomo apostar no ktouma obra "para o vestibular" — o livro pode e deve ser lido como cultura geral, principalmente por pessoas lusófonas.

"[Seus versos] são uma aulacomo apostar no ktoretórica. Quem quiser aprender retórica que leia 'Os Lusíadas', entenda toda aquela estrutura persuasiva", defende Franco.

"Sua estrutura persuasiva, ele [o poeta-narrador] quer convencer o rei [português]como apostar no ktoalguma coisa, convencê-lo a continuar essa aventura, essa luta dos portugueses para manter seu império", explica a linguista.

"Bem, os clássicos são os clássicos. E isso responderia à questão [sobre as razões para se ler Camões hoje]como apostar no ktoforma simplista mas eficiente", acrescenta Rossetti. "Para ser, então, mais exato e pontual, diria que obras como 'Os Lusíadas' têm a ver com a nossa história: a cultura, as crenças, as reflexões, os valores, a memória."

Para o professor, "não se pode construir um projeto futuro sem o conhecimento e a devida compreensão do passado, sobretudo quando ele ainda faz tanto sentido nos diascomo apostar no ktohoje". "Afinal, continuamos seres desbravadores, vibramos com as conquistas que ampliam os limites da geografia e do conhecimento, sentimos emoção diante das históriascomo apostar no ktoamor ainda que com cores trágicas", analisa.

Além disso, ele ressalta a questão da lusofonia. "Principalmente, falamos a mesma língua e precisamos, provavelmente mais que no século 16,como apostar no ktoexemplos inteligentes, admiráveis e sensíveis: necessitamos semprecomo apostar no ktoboa poesia,como apostar no ktoqualquer período, visto que os clássicos não envelhecem", conclui.

Moraes defende que "ter contato com os clássicos" é fundamental para a "construção do repertório artístico-cultural do indivíduo". "Nenhuma obra se torna um clássico por mero trabalhocomo apostar no ktomarketing", argumenta.

"No caso das epopeias, ainda mais", compara. "Como se não bastasse a magnitude da forma, tem-se a maravilha do conteúdo, que nos conduz 'por mares nunca dantes navegados'. Ademais, propicia o estudo do passado histórico, sob a perspectiva poética. Inclusive, pode proporcionar um interessante trabalho comparativo entre os ofícios do historiador e do escritor-artista."

Problematizações contemporâneas também são possíveis, é claro. E, se compreendidas dentrocomo apostar no ktocada contexto histórico, podem gerar reflexões sem caircomo apostar no ktoanacronismos. Franco frisa que não se pode esquecer que,como apostar no ktoseu conteúdo, Os Lusíadas "sublinham essa coisa que a gente considera horrível: a ideologia imperialista, cruzadista".

"É um monumento ao poder e não deixacomo apostar no ktoser um pouco chocante para nossos ouvidos, por exemplo, o modo preconceituoso como os mouros são apresentados na obra", exemplifica. "Isso não é do poeta. É do gênero [épico] e é da época. Por isso que a crítica contemporânea brasileira apresenta uma leituracomo apostar no kto'Os Lusíadas' que salientacomo apostar no ktocontradição, justamente o elogio e o questionamento da posição invicta e hegemônica portuguesa."

Por outro lado, também é importante ressaltar que a obra é um retrato daquilo que pode ser considerada a primeira globalização. "Essas 'descobertas' dos navegadores se tornaram importantes como a primeira ligação planetária da Terra, a primeira vez que todas as culturas entramcomo apostar no ktocontato e se tem essa visão do globo. Isso vai ser sempre importante", diz Franco.

"Podemos dizer que são questionáveis, já que no encontrocomo apostar no ktoculturas a diversidade acabou esquecida e apagada, reprimida pelo eurocentrismo que doutrina o mundo… Mas 'Os Lusíadas' vão sempre ter a importânciacomo apostar no ktorelatar esse primeiro contato entre culturas, ainda quecomo apostar no ktoconfrontocomo apostar no ktopoder entre o europeu hegemônico e os outros povos subjugados."

Línea

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