Por que é 'boa notícia' que as pessoas estejam abandonando busca por felicidade:
Leia os melhores trechos da entrevista do pesquisador para a BBC News Mundo.
BBC - O sr. já disseuma palestra TEDx que é uma boa notícia que as pessoas estejam abandonando o discurso da felicidade. Por quê?
Edgar Cabanas - Um dos principais problemas com todo esse discurso da felicidade é que ele torna a ideiafelicidade plena uma obsessão. É uma busca que se torna uma espécievício, uma promessa que nos fazem os gurus, escritores e coachs,uma vida melhor, sempre feliz, mais desenvolvida. No entanto, essa é uma promessa enganosa.
A promessaque podemos ser felizes, ter uma vida boa o tempo todo seguindo uma sériereceitas e passos aparentemente muito simples que dependem única e exclusivamentenós é muito atraente.
Mas ela é fictícia, o que nos deixa constantemente insatisfeitos por não atingirmos esse estado, constantemente preocupados e obcecados com nós mesmos, com nossos pensamentos e emoções. E essa felicidade plena que é prometida nunca chega. É uma meta impossívelse cumprir, um processo que no fundo é uma armadilha para nos deixar viciadosconsumir esses produtos.
Por exemplo, uma pessoa que compra um livroautoajuda para se realizar ou ser feliz, não compra apenas um, compra outro, e depois mais outro e mais outro. Se eles realmente tivessem as chaves para a felicidade que afirmam ter, apenas ler um desses livros seria o suficiente para fazer uma pessoa feliz, certo? Mas não é. Então embarcamos nesse consumo constante. Temos que sair desse loop e é isso que eu queria enfatizar, que temos que estar cientesque é uma armadilha.
BBC - O sr. afirma que a ideiaque ser feliz está unicamentenossas mãos pode gerar sentimentosculpa e sofrimento para quem não se sente feliz. Como isso afeta nossa saúde mental?
Cabanas - Muito negativamente. Dizer que ser feliz é algo que depende apenasvocê mesmo é um discurso atraente, porque não é necessário mais nada para levar uma vida boa e se sentir bem. Mas isso não é verdade. Em nenhuma definiçãofelicidade oualegria pela filosofia ao longo da história o papel das circunstâncias foi completamente eliminado ao definir como alguém pode se sentir bem. Nessa ideia contemporâneafelicidade que nos vendem hoje, praticamente todos esses componentes externos são reduzidos àexpressão mínima, quando não são deixados completamente fora da equação.
Na verdade, uma dessas ideias enganosas que se popularizou é uma fórmula que diz que 50% da felicidade depende dos genes, 40% da vontade própria e 10% das circunstâncias. Ou seja, 90% da felicidade dependeria só do indivíduo e nãotudo o que é circunstancial na vida: o salário, a classe social, a culturaque se vive, a família, o apoio que a pessoa tem. É curioso que tudo isso seja apenas 10%.
Geralmente essa ideiaque a felicidade depende apenasvocê é perfeita para vender mais um produtoconsumo. Porque um guru não pode oferecer uma nova família, um emprego melhor, mais dinheiro, melhores relações sociais ou melhores circunstâncias na vida. Então ele vai querer vender conselhos que dependem inteiramentevocê.
Embora esta promessa seja bastante atraente, a mensagem é perversa porque faz com que a pessoa se sinta culpada quando não consegue ser plenamente feliz — o que na maioria dos casos é o resultado. Ela se sente culpada porque foi dito a ela quefelicidade era algo que dependia exclusivamente dela.
Ficamos sem alternativa porque somos os únicos responsáveis. Isso gera um sentimentofrustração,culpa pelo fracasso. Mas a princípio atrai, porque parece um discurso fortalecedor,incentivo. Mas eliminar o papel das circunstâncias e dos fatores sobre os quais não temos controle não é nem realista nem útilúltima análise, funciona contra essas pessoas quando elas tentam se sentir melhor.
BBC - Em que ponto, como sociedade e como indivíduos, começamos a ter uma obsessão pela felicidade?
Cabanas - É algo relativamente recente. Nem sempre foi assim. Toda esta culturaque a felicidade depende do indivíduo — que está associada à literaturaautoajuda e a pessoas que se dizem especializadasdar conselhos para tornar as pessoas mais autênticas, para que elas descubram seu potencial e se desenvolvam ao máximo — é uma tradição que remonta aos anos 50 e 60 nos Estados Unidos.
Fora dos Estados Unidos, foi um discurso geralmente muito minoritário até mais ou menos os anos 2000, quando foi fundada a chamada psicologia positiva, que buscava compreender esse discurso todo, bastante ligado à cultura popular norte-americana.
O mercadoautoajuda também vem se expandindo globalmente. Na década2000, o consumoliteraturaautoajuda era bem menor do que é hoje e não paroucrescer.
É um mercado que também não sofreu com nenhuma crise — pelo contrário, a crise financeira2008 impulsionou o surgimento deste mercado, e conceitos como "resiliência" e "mindfulness", que foram globalizados através da literaturaautoajuda, da "ciência do bem-estar", dos coachs.
BBC - Nessa busca por tentar ser feliz, existe também um grande medo da dor ou da tristeza. Não é por isso, talvez, que sejamos obcecados por felicidade?
Cabanas - Sim. E toda vez que se tenta enfatizar que a felicidade é a coisa mais importante da vida. Ou mesmo que é a única coisa importante na vida, como se fosse nossa única meta e como se tivéssemos clareza sobre o que é a felicidade.
Podemos até debater se ela é ou não o mais importante, mas para isso temos que saber o que é a felicidade. Mas ninguém sabe realmente definir o que é felicidade. Como um guru da felicidade vai saber do que é preciso para ser feliz? E se a felicidade dele não coincide com a minha, ou se eu não conseguir entender a dele, ou ninguém consegue entender a minha.
Como podemos chegar a um consenso se é algo bastante individual? Deveríamos ao menos ser capazesdefini-la. A ciência da felicidade fala dela, mas não sabemos o que é porque essa mesma ciência não a definiu.
Por trás disso, há uma estigmatização progressiva do que tem sido chamadoemoções negativas. Tenho insistido muitas vezes que não existem emoções negativas ou positivas. Esta é uma classificação incorreta. As emoções nunca são positivas ou negativas, masnegatividade ou positividade dependem do contexto e da função que cada emoção desempenhaum determinado momento.
Por exemplo, podemos ter ansiedade e essa ansiedade pode nos causar muito sofrimento, mas existe uma certa ansiedade que é boa:competição esportiva ou antesuma prova. Nesses momentos ela é boa, ela tem um papel. Já foi dito que é ruim ficar com raiva, que é uma emoção negativa. A raiva é uma reação que pode ser muito negativa quando não justificada ou quando ela leva a atos violentos ou abusos. Mas é positiva quando, por exemplo, nos dá impulso para combater uma injustiça e nos mobiliza para mudar o que está errado no mundo. Nesse caso, a raiva é boa.
Há quem diga que ter uma visão otimista do mundo é sempre bom, mas não é. Às vezes, o otimismo nos ajuda a ter um certo nívelexpectativa e nos motiva a fazer as coisas, mas outras vezes nos dá confiança demais sobre nossas próprias habilidades e nos induz ao erro: calculamos mal, julgamos mal nossas possibilidades. Muito otimismo pode nos dar esperançaque algo vá dar certo, mas acaba levando à inação e não fazemos o que é necessário para que tudo realmente dê certo.
As emoções não devem ser estigmatizadas porque quando você as experimenta, acaba se sentindo duplamente mal, por supor que não pode ficar entediado, não pode estar com raiva ou não se pode estar triste.
A tristeza não é agradável, mas esse fato não significa que não seja uma reação normal sob certas circunstâncias ou que não seja uma reação saudável. Como não ficar triste quando se sofre uma perda? As perdas, grandes ou pequenas, estão associadas a uma certa tristeza e isso é normal e saudável.
O que não é saudável é sentir-se mal também por se estar triste, porque somos punidos duplamente: por um lado, somos punidos por nossa própria emoção e pelo sofrimento que ela acarreta. Pelo outro, está a ideia — típica dessa mensagem positivafelicidade ligada a uma responsabilidade pessoal — que nos faz sofrer por nos sentirmos culpados, porque somos nós os que não estão fazendo o suficiente para sair dessa tristeza ou para não senti-la. Dizer "você está triste porque não está se esforçando o suficiente" é uma punição dupla.
BBC - O sr. já disse que há pessoas que, embora se sintam bem, sentem que precisam ser ainda mais felizes, que não alcançaram o máximosua felicidade e continuam a buscá-la. Por que isso acontece?
Cabanas - Essa é uma das questões centraismuitos dos argumentos que apresentamos no livro, o que chamamos"happycondríacos", ou hipocondríacos da felicidade. Brincamos com a ideia do hipocondríaco, que é a pessoa que acredita que sempre tem alguma doença, embora nada esteja acontecendo com ela. O hipocondríaco da felicidade tem essa obsessão constante por uma ideiafelicidade como algo inalcançável.
Há pessoas que se perguntam como poderiam estar melhores do que já estão embora estejam bem. É um discursoque não estar bem é sintomaque falta alguma coisa. Essa é a parte perversa: não é que te ofereçam ficar melhor quando você está mal, mas que você sempre pode ficar melhor, mesmo estando bem, porque esse "melhor" não tem fim.
Como o hipocondríaco, a pessoa pensa que está errada porque não é feliz o suficiente, porque não é plenamente feliz. Ou seja, ela acredita que, por exemplo, não desenvolveu todo o seu potencial, que não se conhece plenamente, que sempre poderia fazer melhor usoseus pensamentos,suas emoções, que pode ser mais eficientealguma coisa.
E quando nos tornamos felizes? É algo que não nos é dito a partir deste discurso. Ninguém nos diz: "agora você é feliz, pode parar". O que nos é dito é que nunca se fica completamente feliz e que, mesmo sendo feliz, não se deve baixar a guarda, porque é preciso estar sempre alerta, para que não se perca o que foi conquistadorelação à felicidade. É semelhante aos produtosconsumo: se você comprar um software ou um telefone celular, nunca terá a melhor versão porque novas e melhores versões sempre estarão à venda.
BBC - Que espaço os "gurus da felicidade", como o sr. os chama, encontraram na sociedade para expandir suas ideias?
Cabanas - Há uma confluênciamúltiplas mudanças culturais e econômicas, como o crescente individualismo e a expansão do livre mercadotodas as áreas da vida. E, claro, o surgimento desse discurso científico, a ideiaque isso pode ser estudado cientificamente, mensurado,que é um conhecimento comprovado, objetivo, e não uma ideia subjetivaalgumas pessoas. Isso também ajuda a dar alguma credibilidade a esse tipodiscurso, um rótulo científico. Questionamos muito a ideiaque algo como a felicidade possa ser estudado cientificamente.
Além disso, passamos por várias décadasdificuldades econômicas e sociais crescentes e significativas. Quanto mais sentimos que é impossível mudar o que está ao nosso redor, quando perdemos a confiança nos políticos para nos representar e ajudar a melhorar as coisas, mais nos sentimos desamparados. Quando o bem-estar social que deveria garantir nosso bem-estar nas coisas básicas diminui, racha, há uma espécierecuodireção a si mesmo. Você começa a pensar maissi mesmo e não tanto nos outros, no que você pode fazer por si mesmo e não tanto no que pode fazer pelos outros.
Você pensa maismudar a si mesmovezmudar as circunstâncias, porque acredita que elas não mudarão. O sentimentopouca possibilidadegrandes mudanças no mundo também é um fator importante que pesa sobre o que eles nos oferecem: somos autossuficientes. Salve-se quem puder, mas acimatudo, salve-se sem ter que se preocupar com os outros ou esperar ajuda deles.
BBC - E nesse processo o bem comum e um projetosociedade estão ficando um poucolado?
Cabanas - Eu acho que sim. E é curioso porque a ideiabem-estar, o estadobem-estar, sempre foi uma ideiaestadobem-estar social, político, econômico. A ideiabem-estar sempre esteve associada a essa sociedade, a esses valores que garantiram certas basesjustiça, equidade e dignidade humanas. Mas hoje, quando se tratabem-estar, trata-sebem-estar pessoal, como se fosse possível ficar bem quando tudo ao redor está desmoronando: cuide-se, ninguém vai te resgatar, faça o que é melhor para você, cuide dasaúde.
São coisas falaciosas, porque vemos que a ideiasaúde individual é muito pouco importante quando comparada à saúde social. Vemos isso com o coronavírus. Você pode cuidarsi o quanto quiser, mas na realidade o que importa é que todos se vacinem, respeitem o isolamento social, tenha um nívelsaúde. Senão nem adianta se preocupar consigo mesmo.
Algo assim ocorre com a felicidade. Ou seja, a pessoa pode se preocupar consigo mesma o quanto ela quiser, mas não é possível ser feliz o tempo todo e não é possível estar bem se as coisas vão muito mal ao seu redor, porque somos seres sociais. Quer a gente queira ou não, dependemos uns dos outros. Nossa alegria depende da alegria ao nosso redor. Se não houver bem-estar social, não há bem-estar individual. Mas todo esse discurso da felicidade está substituindo a ideiaalegria (que é momentânea) compartilhada ebem-estar social pelafelicidade individual. E isso é um erro.
BBC - Faz sentido insistirbuscar a felicidade?
Cabanas - Não faz sentido, pelo menos não esse tipofelicidade prometida nesses discursos.
Há estudos interessantes que afirmam que quanto mais alguém se empenhaser feliz, mais está boicotando a própria felicidade.
É muito parecido com quando você sai para uma balada com a expectativaque vá ter uma experiência especial, e chegando lá, é um dia normal. Você acaba achando ruim só porque tinha uma expectativaque seria bem melhor do que foi.
Isso é também chamadoparadoxo hedônico e tem sido um objetoreflexão filosófica. John Stuart Mill, um dos grandes defensores da felicidade, no final da vida disse que não valia a pena fazer da felicidade o objetivo principaltoda a nossa vida, porque não sabíamos o que era a felicidade, nem onde procurá-la. E por que quanto mais tentássemos buscá-la, mais ficaríamos frustrados. A resposta é que precisamos abandonar todo esse discurso da felicidade e pararficar obcecados por ela.
BBC - Muitas pessoas fazem resoluções para o Ano Novo. O que o sr. diria a alguém que fez a resolução: "Este ano serei feliz ou me esforçarei para ser mais feliz"?
Cabanas - Fazer resoluções é algo normal, que muitas pessoas fazem, como também é não cumpri-las ou quase nenhuma, então ninguém deve se preocupar com isso. Todos esses propósitos acabam sendo feitos para não serem cumpridos, o que é curioso.
Eu diria a essa pessoa para não fazer muitas resoluções e, se quiser fazer algo relacionado à felicidade, que faça algo diferente:vez"eu vou ser mais feliz", faça "eu vou fazer alguém mais feliz ", que é diferente. Não está focadonós, mas nos outros. Ou seja, essa alegria não vai para nós, mas para os outros. Isso foge do paradoxo do hedonismo e com certeza é mais benéfico para todos, se o que procuramos é o bem estartodos. Essa seria a minha dicaresoluçãoAno Novo.
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