Ford: por que Argentina reteve a montadora, mas enfrenta saídaempresas estrangeiras como Brasil:

Dezenaspessoas com máscaras contra o coronavírus, bandeiras e cartazes na rua, um delas com símbolo da Latam

Crédito, Juan MABROMATA/AFP

Legenda da foto, Funcionários da Latam Argentina fizeram protestoBuenos Aires após a companhia anunciar fimoperações domésticas no paísjulho2020

No Brasil, além da Ford, a farmacêutica Roche divulgou2019 que encerraria suas operações no país até 2024. No fim do ano passado, a Mercedes-Benz informou que sairia do país, assim como a Sony, que se desfez da fábrica na Zona FrancaManaus, onde estava há quase 50 anos.

Terceiro anocrise

O presidente da Argentina, Alberto Fernández, falapúlpito com painel azul atrás

Crédito, EPA

Legenda da foto, Desde que assumiu, o presidente Alberto Fernández aplicou medida para tentar brecar a saídadólares

Ambos os países veem hoje suas respectivas economias bastante fragilizadas, e não apenas pelo impacto da pandemiacovid-19, que fez o mundo mergulharuma recessão no início do ano passado.

A situação na Argentina começou a se deteriorar2017, quando o Brasil ensaiava uma recuperação errática da recessão que se estendeu entre 2014 e 2016.

Desde então, os argentinos têm convivido com desemprego elevado, inflação alta, aumento da pobreza e desequilíbrio das contas públicas.

Em 2018, o país assistiu à fugadólares e mergulhouuma crise cambial, o que provocou uma desvalorização recorde no peso — que o governo tenta como pode segurar com suas parcas reservas internacionais.

A economia argentina é bastante suscetível aos movimentos da moeda americana, mais do que a brasileira.

Com uma dívida externa significativa e um nívelreservasdólar pequeno (hoje pertoUS$ 40 bilhões, contra US$ 355 bilhões no Brasil), o país não consegue reagir a contento quando há uma saída massivacapital estrangeiro.

Desde que assumiu, Alberto Fernández — um político visto como da esquerda moderada dentro do peronismo — instituiu uma sériemecanismoscontrole cambial para tentar brecar a saídadólares.

Limitou a compra da moeda americana entre os argentinos, colocou restrições às importações e instituiu uma taxa35% sobre compras feitas no cartãocréditosites estrangeiros (como e-commerce e serviçosstreaming).

"Controles estritoscapitalgeral não são boas notícias para os investidores estrangeiros", diz Nikhil Sanghani, economista para América Latina da consultoria Capital Economics. "Pode significar maior dificuldade para repatriar lucros", exemplifica.

O diretor da EPyCA Consultores, Martín Kalos, acrescenta que os limites para movimentaçãodólares até o momento na Argentina se restringem às pessoas físicas, não chegaram às empresas. Mas recorda que,um passado não tão distante, o antecessorFernández, Mauricio Macri, segurou as remessaslucrosempresas estrangeiras para o exterior.

"Não está na norma hoje, mas esteve um ano atrás. Acaba sendo um risco para as empresas, gera desconfiança", pondera.

E esse é um quadro que não deve ter solução no curto prazo. Relaxar o controlecapitais pode aprofundar a desvalorização do peso. Com o dólar ainda mais caro, porvez, a dívida externa da Argentina dispararia.

"Serão necessários alguns anos para que a situação possa ser resolvida", acrescenta Sanghani.

Para Kalos, "a questão cambial é hoje a principal vulnerabilidade da Argentina".

Mais do queconsequência sobre a dívida externa, que foi renegociada no fim do ano passado —uma vitória políticaFernández —, o principal problema, emavaliação, é o impactouma desvalorização cambial adicional na inflação.

A inflação na Argentina encerrou o ano passado na faixa dos 35%,patamar bastante inferior aos 53%2019, mas ainda bastante elevado. No Brasil, para efeitocomparação, o IPCA divulgado nesta terça (12/01) registrou alta4,52% no mesmo período.

Péscrianças pertoesgoto a céu abertoLaferrere, na periferiaBuenos Aires

Crédito, REUTERS/Agustin Marcarian

Legenda da foto, Péscrianças pertoesgoto a céu abertoLaferrere, na periferiaBuenos Aires; pobreza chega a 40% da população Argentina hoje

No início2020, diante da inflação explosiva, Fernández anunciou o congelamentopreçosuma sérieprodutos, medida que tentava segurar o avanço da pobreza, que hoje atinge 40% da população argentina, mas que também contribuiu para deteriorar o ambientenegócios.

Os economistas preveem nova altapreços2021, só não se sabe aindaqual intensidade.

Por que então a Ford escolheu a Argentina?

A Ford anunciou a expansão da fábrica na Argentinadezembro — um investimento previstoUS$ 580 milhões.

A montadora americana dividiaprodução entre Brasil e Argentina conforme o porte dos veículos produzidos. Enquanto a operação brasileira fabricava veículos leves, a argentina estava encarregadaautomóveis pesados, como a Ranger.

Nos últimos anos, entretanto, o ambiente competitivo no setor automotivo vem passando por transformações profundas, diz Flavio Padovan, ex-CEO da Jaguar Land Rover e ex-diretoroperações da Ford no Brasil e na América do Sul.

"Há grandes movimentos na busca por sustentabilidade,um lado, e sobrevivência,outro", avalia ele, que hoje é sócio da MRD Consulting.

Há cada vez mais empresastecnologia engajadasproduzir soluções sustentáveis para o mercado automotivo — a exemplo dos projetosautomóveis do Google e da Amazon — e uma mudança significativa na forma como o consumidor enxerga o carro próprio, especialmente os mais jovens.

"Não existe mais aquele sentimentoposse. Hoje as montadoras vendem cada vez mais para empresas (como locadorasautomóveis) do que para indivíduos."

Nesse cenário, a Ford optou por focarum nicho, o das picapes,vez apostar no volume,uma presença massiva no mercado. Como a Argentina já era referência na fabricação desses veículos, "foi natural" que ela mantivesse a operação, acrescenta Padovan.

Além da Ford, anunciaram recentemente novos investimentos na Argentina as montadoras japonesas Nissan (US$ 130 milhões) e a Toyota (US$ 50 milhões) — o que, para o economista argentino Martín Kalos, da EPyCA Consultores, reforça que o país não vive uma fugaempresas estrangeiras, apesarter hoje um ambientenegócios que,maneira geral, desestimula o investimento produtivo.

Vale lembrar que Brasil e Argentina têm um acordo para o comércioveículos e peças pelo qual para cada US$ 1,5 exportado do Brasil para a Argentina, os argentinos podem enviar US$ 1 aos brasileiros.

Em 2019, os dois países assinaram um acordo que prevê o livre-comércioveículos e autopeças1ºjulho2029.

Desde a criação do Mercosul,1990, o setor automotivo era um dos poucos que ficavamfora do bloco e sempre teve um comércio administrado.

Dezenashomens e mulheresmáscaras e braços cruzados durante protesto, com logo da Ford na frente destas pessoas

Crédito, REUTERS/Carla Carniel

Legenda da foto, Funcionários da fábrica da FordTaubaté (SP) se reuniramfrente à unidade após empresa americana anunciar fechamento desta e outras duas fábricas no Brasil

No Brasil, a montadora americana fecha três fábricas,Taubaté (SP), Camaçari (BA) e Horizonte (CE), que empregam diretamente cerca5 mil pessoas. O impacto indireto, contudo, deve ser maior, já que empresasautopeças e outros fornecedores também terãoajustar suas operações à saída da multinacional.

Em entrevista à BBC News Brasil, o prefeitoCamaçari, Elinaldo Araujo, afirmou que a cidade deve perder cerca12 mil empregos com a decisão da montadora americanaencerrar as atividades no local. Entrariam na conta os empregos diretos — os funcionários que trabalham para Ford — e vagasempresas que prestam serviços para a montadora ou fornecem insumos para a produçãoautomóveis.

Apesarque a ideiadeixar o país estivesse sendo amadurecida "há anos", segundo Padovan — a fábricaCamaçari, disse ele, era uma espécie"projetosalvação" para tentar manter a operação —, o anúncio pegou os brasileirossurpresa nesta segunda (11/01).

A estratégiacomunicação, para o consultor, "não foi a melhor", e se assemelhou à utilizada2019 também pela Ford por ocasião do encerramento das operações da fábricacaminhõesSão Bernardo, quando nem os funcionários tinham ideiaque seriam demitidos.

Línea

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