De 'grave depravação' a acolhimento, como a Igreja Católica vem mudandoposição junto aos LGBT:

Papa Francisco

Crédito, Edison Veiga

"Os homossexuais têm direito a estarfamília, são filhosDeus. Não se pode expulsar uma pessoasua família ou tornar a vida impossível para ela. O que temos que fazer é uma leiconvivência civil, para serem protegidos legalmente."

Ao usar a expressão "lei convivência civil", muito possivelmente o sumo pontífice estava se referindo a modeloslegislaçãounião estável — pois na legislação da Argentina, o termo é literalmente "união convivencial". De acordo com especialistas ouvidos pela reportagem, o papa demonstrou cautelanão equiparar a união dos homossexuais a dos heterossexuais.

"Precisamos comparar o que foi divulgado ao que ele realmente quis dizer no vídeo, gravadoespanhol. Na traduçãoinglês da declaração, aparece 'civil union law', sendo que na verdade,espanhol, ele diz: 'fazer leisconvivência civil para que estas pessoas sejam cobertas legalmente'. Na legislação brasileira, por exemplo, existe essa distinção entre união civil e convivência ou união estável", afirma a vaticanista Mirticeli Medeiros, pesquisadorahistória do catolicismo na Pontifícia Universidade GregorianaRoma.

"Pode ser que ele tenha tratado do temamaneira mais abrangente, não focando propriamente no aval ao quesito união civil, como foi divulgado. Ou talvez tenha evitado usar o termo união civil, que pode ser facilmente nivelado a casamento, justamente para não correr o riscoferir os princípios da instituição que governa."

"Francisco não faz uma classificação jurídica clara", acrescenta ela. "Só pede que essas pessoas sejam protegidas e amparadas pela lei. Isso é o mais importante. A doutrina católica rejeita qualquer tentativaigualar o contrato formal entre pessoas do mesmo sexo ao casamento entre homem e mulher."

Aparecendoperfil, Papa Francisco acena sorrindo

Crédito, Reuters

Legenda da foto, 'Eles são filhosDeus e têm direito a uma família. Ninguém deve ser excluído ou forçado a ser infeliz por isso', disse o papa Francisco sobre a união civilhomossexuais

Mas entre a frase publicada por Ratzinger e a dita por Bergoglio, evidentemente, há uma mudança clara.

Conforme ressalta o vaticanista Filipe Domingues, doutor pela Pontifícia Universidade GregorianaRoma, "desde os temposArgentina", o hoje papa já defendia que a Igreja "fosse mais aberta a união civilpessoas do mesmo sexo".

"Ele falaum caminho do meio entre não reconhecer nada e entre aceitar um casamento. Entende a necessidadeque essas pessoas tenham direitos legais reconhecidos, ou seja, herança, compartilhamento do planosaúde, enfim, tudo o que está ligado a uma união estável", diz, à BBC News Brasil. "Mas o matrimônio ele segue afirmando que deve ser constituído entre um homem e uma mulher para, conforme a Igreja, o bem dos cônjuges e a geraçãofilhos, essas são as duas principais finalidades do casamento."

Outros documentos

Em outubro1986, já prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, o cardeal Ratzinger publicou uma carta com orientações aos bispos do mundo sobre o "atendimento pastoral das pessoas homossexuais". No documento, ele trata a homossexualidade — chamada por elehomossexualismo — como um "problema (…) cada vez mais objetodebate público".

"A teologia da criação, presente no livro do Gênesis, fornece o pontovista fundamental para a adequada compreensão dos problemas suscitados pelo homossexualismo. Nainfinita sabedoria eseu amor onipotente, Deus chama à existência toda a criação, como reflexo dabondade", diz o texto. "Cria o homem àimagem e semelhança, como varão e mulher. Por isto mesmo, os seres humanos são criaturasDeus chamadas a refletir, na complementariedade dos sexos, a unidade interna do Criador. Eles realizam esta função,modo singular, quando, mediante a recíproca doação esponsal, cooperam com Deus na transmissão da vida."

Ratzinger afirma que "optar por uma atividade sexual com uma pessoa do mesmo sexo equivale a anular o rico simbolismo e o significado, para não falar dos fins, do desígnio do Criador a respeito da realidade sexual". "A atividade homossexual não exprime uma união complementar, capaztransmitir a vida e, portanto, contradiz a vocação a uma existência vivida naquela formaautodoação que, segundo o Evangelho, é a essência mesma da vida cristã. Não quer dizer que as pessoas homossexuais não sejam frequentemente generosas e não se doem, mas quando se entregam a uma atividade homossexual, elas reforçam dentro delas mesmas uma inclinação sexual desordenada, caracterizadasi mesma pela autocomplacência", prossegue.

"Como acontece com qualquer outra desordem moral, a atividade homossexual impede a autorrealização e a felicidade porque contrária à sabedoria criadoraDeus. Refutando as doutrinas errôneas acerca do homossexualismo, a Igreja não limita, antes pelo contrário, defende a liberdade e a dignidade da pessoa, compreendidasum modo realista e autêntico", afirma o documento.

Foto geral do Vaticano

Crédito, Edison Veiga

Legenda da foto, 'A questão da necessidadeacolher aos homossexuais, mas mantendo o ensinamento do matrimônio entre homem e mulher já vem desde o pontificadoSão João Paulo II', diz o sociólogo Francisco Borba Ribeiro Neto

O então prefeito da Congregação orienta que os ministros da Igreja se esforcem para que os homossexuais não se "desencaminhem" sob argumentosnormalização social e critica correntes católicas que, já naquela época, procuravam acolher essas pessoas.

"Tenta-se reunir sob a égide do catolicismo pessoas homossexuais que não têm a mínima intençãoabandonar o seu comportamento homossexual", escreve ele, afirmando que "a prática do homossexualismo" estaria "ameaçando seriamente a vida e o bem-estargrande númeropessoas".

Em conversa com a BBC News Brasil, o coordenador do Núcleo Fé e Cultura da Pontifícia Universidade CatólicaSão Paulo (PUC-SP), o sociólogo Francisco Borba Ribeiro Neto atenta que "a legalização do casamento homossexualvários países, particularmente entre as décadas1990 e 2000, tornou a questão ainda mais difícil" para o Vaticano.

"A questão da necessidadeacolher aos homossexuais, mas mantendo o ensinamento do matrimônio entre homem e mulher, já vem desde o pontificadoSão João Paulo 2º", afirma. "Ele já insistia que o casamento e a constituição da família aconteciam entre um homem e uma mulher, mas que não poderia haver qualquer discriminação contra a pessoa do homossexual. Pelo contrário, deveria haver uma preocupação explícita da comunidade cristãacolher aos homossexuais."

Neste contexto, muitos bispos — entre eles o argentino Bergoglio — eram partidários ao reconhecimentouma união civil homoafetiva, desde que não fosse equiparada ao matrimônio entre homem e mulher. Ribeiro Neto, entretanto, acredita que o que estájogo não é teologia, mas sim uma questão político-cultural sobre as interpretações do matrimônio.

Na oração do Angelus9julho2000, o então papa João Paulo 2º dedicou-se brevemente ao tema. Citou o "Catecismo da Igreja Católica", destacando que os "atoshomossexualidade são contrários à lei natural". "Um número não desprezívelhomens emulheres apresenta tendências homossexuais. Eles não escolhem acondiçãohomossexuais; essa condição constitui, para a maior parte deles, uma provação. Devem ser acolhidos com respeito, compaixão e delicadeza", leu ele, recomendandoseguida para que todos evitassem discriminá-los injustamente.

Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé entre 1968 e 1981, o cardeal croata Franjo Šeper (1905-1981) publicou1975, sob o papadoPaulo 6º (1897-1978), "A Pessoa Humana: Declaração Sobre Alguns PontosÉtica Sexual". A questão dos homossexuais é abordada nos quatro capítulos do item 8 do documento.

Šeper apresenta-osdois grupos. Aqueles "cuja tendência provémuma educação falseada,uma faltaevolução sexual normal,um hábito contraído,maus exemplos ououtras causas análogas" são abordados comocomportamento transitório "ou pelo menos não incurável".

Os demais, segundo o documento, seriam os "outros homossexuais que são tais definitivamente, por forçauma espécieinstinto inato ouuma constituição patológica considerada incurável".

Para este grupo, o cardeal afirma que "alguns concluem que atendência étal maneira natural que deve ser considerada como justificante, para eles, das relações homossexuais numa sincera comunhãovida eamor análoga ao matrimônio, na medida que eles se sintam incapazessuportar uma vida solitária".

O cardeal pede acolhimento pastoral aos homossexuais e que"culpabilidade" seja julgada "com prudência". Mas, encerra o capítulo com a condenação católica, lembrando que nada lhes pode "conceder uma justificativa moral".

"Segundo a ordem moral objetiva, as relações homossexuais são atos destituídos daregra essencial e indispensável. Elas são condenadas na Sagrada Escritura como graves depravações e apresentadas aí também como uma consequência tristeuma rejeiçãoDeus", pontua.

"Este juízo exarado na Escritura Sagrada não permite, porém, concluir que todos aqueles que sofremtal anomalia são por isso pessoalmente responsáveis; mas atesta que os atoshomossexualidade são intrinsecamente desordenados e que eles não podem,hipótese nenhuma, receber qualquer aprovação."

Outro documento a abordar a questão foi o "Família, Matrimônio e 'UniõesFato'", assinado pelo então presidente do Conselho Pontifício para a Família, o cardeal colombiano Alfonso López Trujillo (1935-2008),julho2000.

Logo na introdução, o texto critica as "certas teorias"ideologiagênero. "Deste modo, qualquer atitude sexual resultaria como justificável, inclusive a homossexualidade, e a sociedade é que deveria mudar para incluir, junto ao masculino e ao feminino, outros gêneros, no modoconfigurar a vida social", pondera Trujillo.

Diversos clérigos vestidosbranco enfileiradoscerimônia no pátio da BasílicaSão Pedro

Crédito, AFP

Legenda da foto, O corpo doutrinário do Vaticano, a Congregação para a Doutrina da Fé, já afirmou que 'o respeito pelas pessoas homossexuais não pode levarforma alguma à aprovação do comportamento homossexual ou ao reconhecimento legal das uniões homossexuais'

O texto critica os movimentos jurídicos ao redor do mundoequiparação das uniões estáveis ao matrimônio e frisa que, no caso primeiro, havia inclusive o reconhecimento às uniões homossexuais. "É preciso recordar aos parlamentares agrave responsabilidadeopor-se a isto, posto que os legisladores, eespecial os parlamentares católicos, não poderiam cooperar com o seu voto para este tipolegislação, porque contrária ao bem comum e à verdade do homem, e, portanto, verdadeiramente iníqua", ressalta.

Um item do documento é chamado"Maior gravidade da equiparação do matrimônio às relações homossexuais". "A verdade sobre o amor conjugal permite compreender também as graves consequências sociais da institucionalização da relação homossexual: torna-se patente quão incongruente é a pretensãoatribuir uma realidade conjugal à união entre pessoas do mesmo sexo. Opõe-se a isto, antesmais nada, a impossibilidade objetivafazer frutificar o matrimônio mediante a transmissão da vida, segundo o projeto inscrito por Deus na própria estrutura do ser humano", defende.

"Igualmente, se opõe a isto a ausência dos pressupostos para a complementaridade interpessoal querida pelo Criador, tanto no plano físico biológico como no eminentemente psicológico entre o homem e a mulher. O matrimônio não pode ser reduzido a uma condição semelhante auma relação homossexual; isto é contrário ao sentido comum."

"No caso das relações homossexuais que reivindicam ser consideradas uniãofato, as consequências morais e jurídicas alcançam uma especial relevância", escreve. "As uniõesfato entre homossexuais além disso constituem uma deplorável distorção do que deveria ser a comunhãoamor e vida entre um homem com uma mulher, que se empenham ao dom recíprocosi e se abrem à geração da vida. Todavia é muito mais grave a pretensãoequiparar tais uniões ao 'matrimônio legal', como promovem algumas iniciativas recentes. E se isto ainda não bastasse pretende-se tornar legal a adoçãocrianças no contexto das relações homossexuais aliando-se a tudo um elementogrande periculosidade."

"Não pode constituir uma verdadeira família o vínculo entre dois homens ou entre duas mulheres, e muito menos se pode atribuir a essa união o direitoadotar crianças sem família", sentencia o documento. "Recordar a transcendência social da verdade sobre o amor conjugal e, por conseguinte, o grave erro que seria o reconhecimento ou inclusive a equiparação do matrimônio às relações homossexuais não supõe discriminarmodo algum estas pessoas. É o próprio bem comum da sociedade a exigir que as leis reconheçam, favoreçam e protejam a união matrimonial com base na família que se viria deste modo prejudicada."

No Sínodo dos Bispos realizadooutubro2005, já no papadoBento 16, o cardeal Trujillo manifestou-se preocupado com uma "coerência eucarística dos políticos e legisladores". Em um dos trechos, disse que eram "bem conhecidas as posições ambíguaslegisladores acerca do divórcio, das uniõesfato, as quais ao menos implicitamente constituiriam uma alternativa ao matrimônio, embora tais uniões sejam simplesmente uma 'ficção jurídica', 'moeda falsa postacirculação'". E prosseguiu: "pior ainda quando se trata'casais' do mesmo sexo [aspas da transcrição oficial do Vaticano]".

E Francisco?

Não foram poucas as vezesque papa Francisco demonstrou no mínimo uma empatia ao se referir aos LGBT. Na voltasua primeira viagem internacional como sumo pontífice, respondendo a jornalistas no voo do Brasil à Itália, ele disse que "se uma pessoa é gay e procura Jesus, e tem boa vontade, quem sou eu para julgá-la?". "O catecismo diz que não se deve marginalizar essas pessoas, devem ser integradas à sociedade. Devemos ser irmãos", acrescentou.

Papa Francisco caminhando

Crédito, Edison Veiga

Legenda da foto, Não foram poucas as vezesque papa Francisco demonstrou no mínimo uma empatia ao se referir aos LGBT. Mas ele é enfático ao defender que o matrimônio, como sacramento, só pode ser contraído por heterossexuais

"Está clara apreocupação com os homossexuais, desde o início do pontificado. Francisco quer promover a dignidade dessas pessoas pois. De acordo comvisão religiosa, eles 'são filhosDeus' e merecem o devido respeito, como qualquer outra pessoa", afirma a vaticanista Mirticeli Medeiros, pesquisadorahistória do catolicismo na Pontifícia Universidade GregorianaRoma.

Mas Francisco é enfático ao defender que o matrimônio, como sacramento, só pode ser contraído por heterossexuais. "Casamento só existe entre homem e mulher", afirmou o papa,entrevista concedida2017 ao sociólogo francês Dominique Wolton. Na exortação apostólica "Amoris Laetitia", documento publicado2015, o papa enfatizou que "não existe fundamento algum para assimilar ou estabelecer analogias, nem sequer remotas, entre as uniões homossexuais e o desígnioDeus sobre o matrimônio e a família".

Em 2018, a sigla LGBT foi usada pela primeira vezum documento oficial da Igreja — no caso, o "Instrumentum Laboris" que serviu para nortear as discussões da Assembleia do Sínodo dos Bispos ocorrida naquele ano. Uma mudança e tanto para uma instituição que sempre se dirigiu a tais populações como "pessoas com tendências homossexuais".

Medeiros acredita que a fraseFrancisco no documentário deve ser vista como mais um avanço. "O pontífice tocaum tema que é tabu para a Igreja, isso não se pode negar", comenta ela. "O foco do papa é o ser humano, a promoçãosua dignidade. Ele pede claramente que essas pessoas tenham acesso às garantias, aos benefícios sociais previstoslei, como qualquer cidadão."

Para o vaticanista Domingues, a novidade do posicionamentoFrancisco está na menção à família. "Ele coloca o 'fazer parteuma família'. Não fala'formar família', mas fala'fazer parteuma família'. Isso é novo. Nunca esta questão tinha sido falada dessa forma por um papa antes", analisa.

"Comparando com os últimos papas, o que se vê é uma mudançalinguagem a respeito da questão dos homossexuais. Hoje há uma abordagem mais pastoral e não se fala sobre a homossexualidade como algo intrinsecamente ruim", complementa Domingues. "Francisco muda a abordagem, muda o olhar. Não muda o ensinamentosi nem o conteúdo, mas muda a ênfase. Ele olha para a realidade e se propõe a ir ao encontro das pessoas."

Línea

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