Coronavírus: o que significa o alerta da OMS sobre transmissão aérea da covid-19?:
"A maioria das organizaçõessaúde pública, incluindo Organização Mundial da Saúde, não reconhecem a transmissão pelo ar, exceto para procedimentos geradoresaerossóis realizadosestabelecimentossaúde", disseram os pesquisadores.
Segundo eles, estudos vêm demonstrando "alémqualquer dúvida razoável" que o coronavírus está presente não apenas nas gotículas, mas também nestas micropartículas e que isso representa um risco potencialuma pessoa ser infectada ao aspirá-las.
Isso pode ocorrer, dizem os cientistas, mesmo quando são seguidas as regrashigiene, como lavar frequentemente as mãos, oudistanciamento social, ao se manter o afastamento mínimo1 ou 2 metrosoutra pessoa.
Os cientistas reconhecem que as evidências deste tipotransmissão são "incompletas", mas ressaltam que também são incompletas as evidências sobre outras formastransmissão, como por meiogotículas ou ao entrarcontato com objetos e superfícies contaminados.
O infectologista Estevão Portela, vice-diretorserviços clínicos do Instituto NacionalInfectologia Evandro Chagas, diz à BBC News Brasil que essas evidências ainda não permitem afirmar com 100%certeza que a transmissão por aerossol ocorre, mas ele diz que isso indica, neste momento, que o melhor é tomar as medidas necessárias para prevenir esse tipocontágio.
"Ainda há uma margemdúvida, mas, neste momento, essa dúvida deve ser usadafavor da prevenção", afirma Portela.
Onde é mais perigoso?
Portela aponta que há relatospequenos surtosque "dificilmente há outra possibilidadecontágio que não seja o aerossol".
Ele cita, por exemplo, o casoum jantar24janeiroum restaurante na cidade portuáriaGuangzhou, na China, quando dez pessoas se infectaram a partirum único indivíduo que já tinha o vírus.
Essas pessoas estavam distribuídastrês mesas, e estudos realizados por autoridades chinesas concluíram que os diferentes grupos não tiveram contato entre si ou com superfícies contaminadas.
O paciente já contaminado teria liberado o vírusmicropartículas no ar por meio da respiração e da fala. Essas micropartículas teriam se espalhado pelo ambiente por causa do sistemaar-condicionado do local,acordo com as pesquisas.
O médico Abraar Karan, pesquisadorsaúde pública da EscolaMedicina da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, explicou à BBC que situações como essa podem ser consideradas "eventos superpropagadores" do coronavírus, assim como outras reuniõeslocais fechados e com ventilação inadequada.
Em casos assim, o númerocontágios é desproporcionalmente maiorcomparação com os padrõestransmissão geral na população.
Estima-se que,condições normais, uma pessoa com o coronavírus possa infectar outras três,média. Mas,ambientes fechados, lotados e nos quais as pessoas não estejam usando equipamentosproteção individual, como máscaras, "uma pessoa pode infectar 10, 15 ou 20 pessoas", disse Karan.
De acordo com o médico, os primeiros resultadospesquisas sobre o tema indicam que a disseminação do coronavírus é causada principalmente por esses eventos superpropagadores. "Diferentes modelos analisaram o assunto e até agora sugerem que 20% das pessoas representam 80% da propagação."
Qual é o risco?
Um estudo publicadomaio estima que uma pessoa infectada com o Sars-CoV-2 pode liberarum minutofala mil micropartículas no ar. Seus autores concluem que "existe uma probabilidade substancialque a fala normal cause transmissãovírusambientes fechados".
Outra pesquisa, que ainda não foi revisada por outros cientistas (um estágio que atesta a confiabilidade dos seus resultados), aponta que pessoas infectadas exalam1 mil a 100 mil cópias por minuto do genoma do coronavírus. Como os voluntários do estudo estavam simplesmente respirando, é provável que o vírus seja transportado por aerossóis e não por gotículas.
A títulocomparação, um estudo aponta que uma tossida pode gerar cerca3 mil gotículas com um vírus, assim como uma fala5 minutos, e um espirro pode liberar até 40 mil gotículas.
Mas as gotículas são pesadas e caem no chão geralmente depoispercorrem cercadois metros. Já as micropartículas são menores e mais leves. Por isso, podem ficar suspensas no ambiente e percorrer distâncias maiores ao serem levadas pelas correntesar.
Fernando Spilki, presidente da Sociedade BrasileiraVirologia, explica que,ambientes sem uma boa ventilação, as micropartículas com o coronavírus podem ficar suspensas no ar por até 2h30 antesse degradarem ou se depositaremalguma superfície.
Mas o virologista ressalta que não basta o vírus estar presente no ar para que haja o riscoalguém ser contaminado. Isso também depende da quantidadevírus que existe ali. E, quanto mais amplo for o ambiente, menor seria a chance, porque essas partículas podem se dispersar pelo local.
"É preciso ter uma quantidade suficientepartículas concentradas para haver uma infecção. Ao mesmo tempo, é necessário que várias partículas virais atuem sobre uma mesma célula para conseguir infectá-la. E tem que haver a infecçãovárias células diferentes para que o contágio do organismofato ocorra, porque, se apenas algumas células forem infectadas, a resposta imunológica do corpo pode ser suficiente para combater isso", diz Spilki.
Benjamin Cowling, da EscolaSaúde Pública da UniversidadeHong Kong, foi um dos cientistas que assinou a carta publicada na última segunda-feira. O epidemiologista afirma que, se esse tipotransmissãofato acontece, é preciso haver uma exposição prolongada às micropartículas.
"Então, entraruma loja pode não ser muito arriscado. Talvez seja necessário pensarcomo proteger os funcionários dessa loja. Não vimos muitas transmissõeslojas, mas vimosbares, restaurantes, onde as pessoas ficam por mais tempo e onde há mais pessoas reunidas. Se a ventilação não for boa, o risco é maior, e é nisso que precisamos prestar atenção", disse Cowling à BBC.
Ele diz que o riscocontágio não é significativoespaços abertos e faz uma comparação para explicar por quê: "Ao ar livre, você não sabe se alguém está fumando ao seu redor. É só quando você estáum lugar mal ventilado que isso incomoda. A mesma lógica pode ser aplicada aqui".
O que fazer para se proteger?
A OMS afirmou que publicará nas próximas semanas um relatório com todas as informações à disposição sobre este assunto e que, por enquanto, não emitirá novas recomendações para evitar o contágio.
De acordo com a organização, as medidas anunciadas anteriormente estão mantidas. Isso significa evitar reuniõeslocais fechados, a participaçãoeventos com muitas pessoas e manter os ambientes bem ventilados.
"Nos lugares onde houve pequenos surtos, não se infectaram as pessoas que ficaram por pouco tempoum restaurante ou que só tiveram contato com quem tinha o vírus ao pegar o mesmo elevador. Então, o ideal é não passar muito tempo, meia hora ou mais,um local fechado", diz Estevão Portela.
O infectologista avalia que uma das repercussões no cotidiano diz respeito ao uso do transporte público, onde muitas vezes as pessoas permanecemambientes com pouca circulaçãoar por longos períodos.
"Uma coisa que terá que ser avaliada, diante dessa possibilidade, é que as empresas tenham horários flexíveis, para que os funcionários não usem o transporte público no horáriopico, deem prioridade ao retorno ao escritório para quem mora perto ou não usa esse meiotransporte ou mantenham o home office."
A OMS também reforçou a importânciamanter o distanciamento social, que impede que as gotículas caiam sobre outra pessoa, assim como o usomáscaras serve como uma barreira física para elas que sequer sejam lançadas no ar.
Fernando Spilki explica, no entanto, que as máscaraspano e cirúrgicas provavelmente não impedem que as micropartículas sejam aspiradas, porque o vírus é muito menor do que os poros dos tecidos usados nelas.
Além disso, esse tipomáscara não veda completamente a boca e o nariz. Então, as micropartículas ainda poderiam passar pelas frestas entre o tecido e a pele.
"Teoricamente, essas máscaras não conseguem reter o aerossol, mas a gente considera que muitos vírus podem ficar presos nelas. Além disso, elas conseguem reter as gotículas", diz o virologista.
Portela ressalta ainda que as máscaras têm um papel importante para evitar que uma pessoa que está infectada e ainda não sabe (porque ainda não tem sintomas) passe o vírus para outras pessoas.
"Mesmo antester sintomas, a pessoa já pode estar espalhando o vírus. Mais do que uma proteção individual, a máscara é importante para proteger os outros."
Existe um tipomáscara que é capazprevenir a transmissão aérea do vírus. Conhecida como N95, ela é feita com um material com uma porosidade menor, que retém a maioria das partículas, alémvedar o nariz e a boca.
Mas Portela e Spilki explicam que elas não devem ser usadas pela populaçãogeral e, sim, por profissionaissaúde que circulamambientes onde as micropartículas estão presentesgrande quantidade.
"As pessoas não devem sair correndo para comprar uma N95 porque o que existe disponível no mercado deve ser reservado a essas pessoas que trabalhamlocais onde o riscocontágio é maior, como hospitais e laresidosos", diz Spilki.
Portela explica que, com esse modelomáscara, a respiração fica mais desconfortável do que com os tipos comuns. "A pessoa pode acabar mexendo na máscara e colocando a mão no rosto o tempo todo e, com isso, as gotículas que estavam na máscara podem passar para a mão. A pessoa depois coça o olho e se contamina."
Por que a OMS reconheceu que existe este risco?
Esta não é a primeira vez que a OMS mudaposição ou sinaliza que pode fazer issorespeito ao que se sabe sobre o coronavírus.
No início da pandemia, a organização não recomendava o uso amplomáscaras e as indicava só para quem estivesse doente ou para quem cuida destas pessoas.
No entanto, a OMS passou depois a indicar seu uso por todos e se justificou dizendo que novas informações apontavam que elas poderiam ser uma barreira importante para as gotículas expelidas pela tosse e por espirros.
A organização também se viumeio uma polêmica quando umasuas especialistas disse que a transmissão da doença por pessoas assintomáticas é "muito rara".
Isso gerou espanto entre especialistas, por contrariar a noção prevalente até entãoque os assintomáticos tinham um papel relevante na propagação do coronavírus.
Com a controvérsia instaurada, a OMS veio a público para esclarecer que, ao afirmar que essetransmissão é rara, quis dizer que ainda não se sabe qual a proporção exata dos contágios que se dá desta forma. Há evidências que sugerem que pessoas sintomáticas são mais infecciosas, mas a doença pode ser transmitida antesos sintomas começarem a desenvolver.
Estevão Portela diz que, desta vez, a OMS tem demonstrado certa resistênciareconhecer a transmissão área do coronavírus e que a organização reagiuresposta ao debate crescentetorno dessa possibilidade, o que gerou uma pressão sobre ela.
"A OMS sempre foi um pouco conservadora e, como neste caso não há uma prova inequívoca, preferiu se resguardar. Acredito que ela também tem sido refratária por causa da preocupação que isso pode causar e o custo envolvido para prevenir esse tipotransmissão, sem que isso tenha necessariamente um impacto significativo na propagação do vírus", afirma o infectologista.
Fernando Spilki diz que o principal papel da OMS é gerenciar uma crise como uma pandemia e que a organização precisa levarconta a capacidade financeira e logística dos seus países-membrosimplementar determinadas medidas.
"O mesmo ocorreu com as máscaras. No início da pandemia, vendo a dificuldade dos paísesconseguir máscaras para todo mundo, a recomendação da OMS buscava reservar esses equipamentos para proteger quem pode estar mais exposto", diz o virologista.
Benjamin Cowling destaca que, se a transmissão por aerossol for uma realidade, isso significa que os profissionaissaúde devem usar os melhores equipamentosproteção disponível, inclusive máscaras N95.
"Um dos motivos pelos quais a OMS disse que não estava disposta a falar sobre a transmissão aérea é que não há máscaras N95 suficientesmuitas partes do mundo e não seria possível recomendar seu uso mais amplo. Em termos comunitários, teríamos que pensar tambémcomo evitar os eventos superpropagadores", diz o epidemiologista.
"Mas, cientificamente, se existe esse risco, temos que falar sobre isso e pensar formasevitar que isso aconteça."
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