'Placar da vida' do governo estimula negacionismo por omitir realidade trágica da covid-19, dizem cientistas:
"No jornal da manhã é caixão, corpo; na hora do almoço, é caixão novamente. No jornal da noite é caixão, corpo e númeromortos. Eu pergunto a todos: como é que você acha que uma senhoraidade, uma pessoa humilde ou que sofreoutra enfermidade se sente com essa maciça divulgação desses fatos negativos. Não está ajudando", disse.
Entretanto, para especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, a exaltaçãodados sobre brasileiros recuperados neste momento é uma formareforçar o negacionismorelação ao Sars-Cov-2, nome oficial do novo coronavírus. Isso porque afirmam que destacar somente aspectos positivosmeio ao crescimento exponencialcasos e mortes no Brasil é uma formatransmitir a falsa ideiaque as coisas estão melhorando.
Professor da faculdadeMedicina da UniversidadeSão Paulo, Marcos Boulos critica duramente a exaltação dos númerosrecuperados neste momento.
"É um vírus que mata, normalmente, menos5% das pessoas que foram infectadas e tiveram sintomas. Então é óbvio que mais95% vão se recuperar. Enfatizar os númerosrecuperados não muda nada neste momento. É preciso ser realista. Não é correto tentar minimizar a gravidade da doença", diz à BBC News Brasil.
Nas redes sociais, as publicações do "Placar da Vida" causaram repercussão. Enquanto algumas pessoas comemoraram o númerorecuperados, outras criticaram o fatoas tabelas não citarem o aumento das mortes por covid-19 no país.
Nas publicações que mostram as imagens com os númerosrecuperados nas redes do Ministério da Saúde, há discretos links para todos os dados sobre a covid-19 no Brasil, inclusive sobre os númerosmortos. No entanto, estudiosos apontam que as tabelas podem ser compartilhadas massivamente por outros perfis eaplicativosmensagens sem a devida contextualizaçãoóbitos, que não são mencionados no "Placar da Vida".
Reforço ao negacionismo
Os dados sobre recuperados costumam ser utilizados como argumentos por pessoas que negam os riscos do novo coronavírus para justificar que medidasprevenção, como o isolamento social, são desnecessárias.
Professor da Universidade EstadualCampinas (Unicamp) e pesquisador no ramo da divulgação científica, Leandro Tessler classifica o destaque aos dadosrecuperados como uma estratégiamarketing desrespeitosa.
"Tentar dar um ar otimista eque estamos nos saindo bem no enfrentamento ao coronavírus é perigoso, porque os dados sobre infectados e mortos não paramaumentar. Pegam um ângulo que favorece o governo, mas sem nenhum rigor", declara.
"É muito bom comemorar os recuperados. Mas é errado citar isso como se fosse um dado positivo e que mostra a realidade do país. É falacioso passar a ideiaque estamos tendo controle da doença, enquanto as mortes aumentam cada vez mais", acrescenta Tessler.
O filósofo Pablo Ortellado, professor da USP, explica que o atomencionar apenas os dadospacientes recuperados faz parte do discurso negacionista, pois tenta minimizar a gravidade do Sars-Cov-2. "Eles tentam mudar a leitura do cenário do coronavírus no Brasil. É uma estratégia do governo Bolsonaro dizer que o coronavírus é um problema superdimensionado", diz o estudioso.
"É uma estratégia que faz parteuma campanhadesinformações. Essa campanha dos bolsonaristas também costuma argumentar que os governadores estão aumentando númerosmortos, que os hospitais estão vazios e que a cloroquina é eficaz (mesmo sem comprovação científica)", completa Ortellado.
Um dos objetivos da estratégia negacionista sobre o novo coronavírus é a reaberturaestabelecimentos no Brasil,meio à pandemia — medida que não é recomendada por cientistas e pela Organização MundialSaúde (OMS)países que enfrentam explosãocasoscovid-19.
Para o infectologista Marcos Boulos, nenhum tipodivulgação sobre números do novo coronavírus deve citar somente os dadoscurados. "Como a mortalidade do vírus é consideravelmente baixa, é lógico que a maioria estará recuperada. O que pesa mesmo é o númeromortes, porque está aumentando cada vez mais no Brasil."
"Somente poderemos avaliar questões positivas quando o númeromorte einfectados começar a cair no país. Na faseagravamento, como a que estamos atualmente, não tem cabimento ressaltar casos recuperados. Estão tentando dizer que as coisas estão melhores, quando não estão", assevera Boulos.
Em breve resposta à BBC News Brasil, o Ministério da Saúde afirma que todas as informações referentes ao novo coronavírus estão sendo divulgadasseus diversos canaiscomunicação. A pasta não respondeu se considera que a exaltaçãopessoas recuperadas neste momento, como no caso do "Placar da Vida", pode passar a falsa impressãoque a situação do vírus está controlada no país.
Consequências do negacionismo
Médicos e pesquisadores apontam que o negacionismorelação ao novo coronavírus é um dos grandes problemas do enfrentamento à covid-19. A ideiaque o vírus não é tão perigoso e que o isolamento social é desnecessário costuma ser reforçada por fake news, como aque há caixões enterrados vazios para inflar os dadosmortos.
De acordo com os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, o "Placar da Vida" vai ao encontrodeclarações do presidente Jair Bolsonaro, que adota um discurso que tenta reduzir a gravidade do novo coronavírus, enquanto o Brasil sobe na listapaíses mais atingidos pelo Sars-Cov-2.
O pesquisador Leandro Tessler pontua que um dos maiores erros do presidente no combate ao Sars-Cov-2 é ignorar a ciência.
"Hoje, a ciência diz que ainda não temos nada para oferecer contra o novo coronavírus, a não ser os cuidados paliativos. Por isso, a melhor alternativa é o isolamento social. O mais prudente é fazer como muitos governos no mundo e ouvir os cientistas. Já no Brasil, após a saídadois ministros da Saúde, o recado é claro: quando a ciência não diz o que eu quero, demito."
Um levantamento do Monitor do Debate Político no Meio Digital apontou que os eleitoresBolsonaro são os que menos seguem o isolamento social. O distanciamento social passou a ser menoráreas com mais seguidoresBolsonaro desde 24março, quando ele fez um discurso defendendo o relaxamento da medida, sem qualquer respaldo científico.
O negacionismo pode trazer consequências graves no enfrentamento ao Sars-Cov-2. "Embora seja difícil quantificar, dá para dizer com segurança que essa campanhanegação da gravidade do vírus tira vidas. É complicado quantificar, mas há gente morrendo por essas campanhas negacionistas", declara o filósofo Pablo Ortellado.
Marcos Boulos afirma que um dos motivos que fizeram do Brasil um dos países com mais casosSars-Cov-2 no mundo é o fatoque muitas pessoas optaram por não seguir o isolamento social, por não acreditar nos riscos trazidos pelo vírus.
"Essas pessoas arriscam suas próprias vidas e as dos outros. Quando alguém leva uma vida normal nesse período, pode ajudar a aumentar a transmissão e fazer com que ainda mais pessoas morram", declara Boulos.
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