Presença maiorg1esportenegros na mídia tem ‘mais a ver com consumo do que representatividade', diz Nei Lopes:g1esporte
Hoje, os tempos são outros. Para Lopes, que é autorg1esporteromances, ensaios e dicionários/enciclopédias como Dicionário da Antiguidade Africana (Civilização Brasileira, 2011), Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana (Selo Negro, 4ª.ed., 2011) e Dicionário da História Social do Samba — este escritog1esporteparceria com Luiz Antônio Simas e vencedor do Prêmio Jabutig1esporteTeoria/Crítica Literária, Dicionários e Gramáticas —, "o mercado está descobrindo o potencial do povo negro" e a presença maior na mídiag1esporteartistas e intelectuais negros é "positiva, um passo para maiores conquistas, como o poder político", mesmo que isso tenha "mais a ver com consumo do que com representatividade".
Filhog1esporteum operário que nasceu três meses antes da abolição,g1esporte1888, Nei Lopes diz que "Consciência Negra", a data celebrada nesta quarta-feira, "tem que ser o ano inteiro, o dia todo".
Veja abaixo os principais trechos da entrevista:
g1esporte BBC News Brasil - g1esporte Como foi concebido o livro e como selecionou as pessoas que entrariam?
g1esporte Nei Lopes - O livro foi um convite da editora, que eu aceitei com prazer, apesarg1esporteter recebido um prazo apertado. Delimitei a pesquisa a pessoas nascidas no século 20, senão ficaria uma infinidadeg1esportenomes. O objetivo é dar visibilidade àqueles que fizeram ou fazem obras importantes.... Aqueles que têm história pessoal com a qual podemos trabalhar, que mostrem superação.
Alguns foram escolhidos porg1esporteoriginalidade. O jogadorg1esportefutebol Paulo Cézar Caju, por exemplo, sempre combateu o racismo àg1esportemoda, com muita ousadia, e foi amaldiçoado emg1esportecarreira por isso. Hoje superou as barreiras e tem uma coluna semanal (de jornal) onde fala coisas da maior pertinência sobre os problemas do futebol.
Outra trajetória que me comove é ag1esporteSeu Jorge. Ele viveu por três anos na rua. Mas o destino o levou por um caminho positivo. Mais um exemplo foi o Pretinho da Serrinha, um rapaz criado na favela, com pai e mãe com problemasg1esportemarginalidade intensos e que foi resgatado por um projetog1esporteressocialização através da música. Hoje é um baluarte, uma das pessoas mais reconhecidas nos estúdiosg1esportegravação. Fui buscando coisas desse tipog1esportetodos os segmentos.
Sabia menos sobre as pessoas mais jovens, como a Ingrid Silva, que é bailarina, alunag1esporteum projeto social na comunidade Mangueira, e hoje está no balé do Harlem. Outro dia vi uma declaração dela sobre a conjuntura política atualg1esporteque dizia que se situação na época dela estivesse como está hoje não teria realizado seu sonho.
Tem outros ícones como Muniz Sodré, um dos maiores teóricos da comunicação do Brasil. Joel Rufino dos Santos, que era da minha geração.
Tem também uma figura polêmica, o Pelé, que as pessoas lembram sempre que nunca se pronunciou sobre o racismo brasileiro. Comecei a comparar: Pelé é da minha geração, nascig1esporte1942 e ele,g1esporte1940.
Meus pais ainda eram próximos da escravidão. Meu paig1esportenasceug1esporte1888, minha mãe,g1esporte1900. Era aquela história, "isso é muito triste, mas já passou, não temos que pensar nisso". A cura pela alienação.
Na faculdadeg1esportedireito eu participava do movimento estudantil com participaçãog1esporteesquerda e também era negada essa consciência. Diziam "isso aí é um desvio ideológico, tudo vai se resolver quando o socialismo vencer", aquelas ideias que ocorriam naquela época.
g1esporte BBC News Brasil - g1esporte Como e quando surgiug1esporteconsciência racial?
g1esporte Lopes - Na adolescência, já tinha um bichinho andando na cabeça por causa da questão da representatividade. Eu não via numa revista, num jornal, negrosg1esportecondições invejáveis, só no ambiente radiofônico, mas aí, percebi que aqueles negros não tinham nome, eram apelidos — Jamelão, Chocolate, Noite Ilustrada. Isso começou a mexer comigo.
Meu primeiro casamento foi com uma mulher negrag1esporteclasse social diferente da minha — ela era classe média, eu era filhog1esporteoperário. Os pais dela tinham essa consciência, isso na décadag1esporte1960, e foi aí que comecei a despertar.
Na casa deles eu tinha acesso a revistas norte-americanas. Comecei a ver a diferença. Havia uma imprensa negra forte nos Estados Unidos — revistas como Ebony. Mostravam os artistas do jazz, do cinema, mas também os empreendedores. As revistas tinham galeriasg1esportejovens promissores. Isso foi fazendo a nossa cabeça.
Depois veio a literatura. Tive acesso a antologiasg1esportepoetas que escreviamg1esportefrancês, inglês, espanhol. Um poeta que me marcou profundamente nesse momento foi o cubano Nicolás Guillén (1902-1989), que é um poeta da Revolução Cubana. Ele aliou suas convicções socialistas a questões relativas à comunidade negra. Fui muito tocado por isso e tenho ele aqui na estante num lugarg1esportehonra.
Outra fonte importante foi o contato que tive na escola, durante a adolescência, com meninos que moravam nas favelas e participavamg1esporteescolasg1esportesamba.
Eu já tinha gosto pelo samba, minha casa era muito musical. Mas a escolag1esportesamba era algo distante. A gente, que não morava na favela, não podia estar lá. Minha mãe dizia "eles lá, nós aqui". "Eles" eram os moradores da favela. Nós éramos pobres, mas não morávamos na favela. Nessa convivência, tinha um, cuja família era ligada ao Salgueiro, e eu me aproximei e tive uma vida lá.
g1esporte BBC News Brasil - g1esporte Como você vem pensando ag1esporteobra sobre cultura afro-brasileira?
g1esporte Lopes - Tenho feito uma tentativag1esportenominalizar os casos. Tenho uma enciclopédia brasileira da diáspora africana publicadag1esporte2004. É um trabalho que tem um montãog1esportedefeitos editoriais, mas é a base do trabalho que estou fazendo agora. Ela rendeu também um dicionário escolar afro-brasileiro. Todos os que puderem fazer isso merecem todo o apoio.
É preciso que se saiba que há uma tradição religiosa,g1esporteconhecimento,g1esportepensamento,g1esportepessoas realizadoras. O Brasil já teve pelo menos dois presidentes afrodescendentes, (mas não se falava disso) afirmar-se como afrodescendente eram um demérito até meados do século 20. As pessoas escondiamg1esporteorigem. E as políticas públicasg1esportevigência na Primeira República, até 1930, mais ou menos, incentivaram esse ocultamento.
g1esporte BBC News Brasil - g1esporte Como funcionava na prática esse ocultamento?
g1esporte Lopes - O Brasil teve uma política públicag1esporteembranquecimento, que fica evidente com o favorecimento da imigração europeia. Isso era sustentado por cientistas, que preconizavam uma hierarquiag1esporteraças. Acreditavam que a população se branquearia e que isso era bom. A própria população achava isso, que seria um país mais parecido com os outros, mais "adiantados".
As pessoas não se autodeclaravam negras porque era demérito. E havia todo um mecanismog1esportefotografias, da cor da pele ser retocada.
Elas eram retratadas nas publicações como "nascidasg1esportelar humilde", um "mestiço genial". Eram pessoas geniais, então não podiam ser descendentesg1esporteafricanos. Era assim que a banda tocava.
Houve a proliferaçãog1esporteideias falsamente científicas, a eugenia, da construçãog1esporteuma raça mais forte. Isso tudo foi sendo derrubado. Sabemos que teve outros objetivos, era para atender a interesses específicos.
g1esporte BBC News Brasil - g1esporte O livro tem uma maioriag1esportehomens.
g1esporte Lopes - Isso é quase natural porque a emergência da figura feminina é muito recente. As mulheres que se notabilizaram até as décadasg1esporte1930, por aí, não apareceram — suas histórias só foram resgatadas bem depois. Esse desvendamento só começa com o movimento negro na décadag1esporte1970. Quem sabe se num volume dois tenhamos mais equilíbrio.
g1esporte BBC News Brasil - g1esporte Esse ocultamento segue no ensino escolar? Como vê o ensinog1esportehistória africana e afro-brasileira nas escolas?
g1esporte Lopes - Não sou professor, mas minha ideia é que deveríamos começar a contar a história da África antes do momento da chegada dos europeus, do encontro com a era dos grandes descobrimentos, a partir do século 15.
A África tinha um pesog1esporterealizações que não era menor do que na Europa. Veja o Egito. Na parte oriental do Egito floresceu a Núbia, que rivalizou com o Egito faraônico, e emergiu uma dinastiag1esportefaraós indubitavelmente pretos. Só depois disso que se chega à escravidão comercial.
g1esporte BBC News Brasil - g1esporte E a imprensa? Você disse que quando era garoto te chamava a atenção a maneira como a imprensa retratava a população negra. Você acha que isso mudou? Como vê a cobertura sobre raça na imprensa?
g1esporte Lopes - A grande movimentação que artistas e intelectuais negros vêm tendo ultimamente vem se refletindo na mídia. Mas isso, na minha avaliação, tem mais a ver com consumo do que com representatividade. O mercado está descobrindo o potencial do povo negro. E isso é positivo, pois é um passo para maiores conquistas, como o poder político, sobretudo.
g1esporte BBC News Brasil - A ideia do novembrismo — falar da questão racial só, ou muito mais, no mêsg1esportenovembro — é muito criticada. Qual ag1esporteopinião sobre isso?
g1esporte Lopes - É sempre uma questãog1esporteconsumo,g1esporteaproveitar as datas. Da mesma forma que samba no Carnaval; que dar presente no Natal;g1esportechurrascaria no Dia das Mães. Consciência Negra tem que ser o ano inteiro, o dia todo.
g1esporte BBC News Brasil - g1esporte Como passa o Dia da Consciência Negra?
g1esporte Lopes - Passo trabalhando, esclarecendo.
g1esporte BBC News Brasil - g1esporte Mudando o assunto para a música, pode explicar o conceitog1esporte'desafricanização' do samba?
g1esporte Lopes - O samba tem o seu DNA na África, foi gerado na Bahia e ganhou a forma urbana no Rio. Mas com essa "urbanização", foi perdendo muitosg1esporteseus componentes africanos até ganhar a forma "bossa nova", que ganhou o mundo. E só ganhou porque perdeu a polirritmia que o caracterizava e que o mercado internacional achou que dificultava a execução (interpretação dos músicos) e a compreensão pelo público. Para mim, esse fenômeno foig1esporte"desafricanização", sim.
g1esporte BBC News Brasil - g1esporte Como vê a música popular e o samba hoje?
g1esporte Lopes - O mercado exige tudo mais simples, mais fácil e mais igual. Inclusive isso hoje é uma exigência das novas formasg1esportedistribuiçãog1esporteconteúdos musicais, no ambiente virtual. Se a música não for "facilzinha", o eventual consumidor sai do canalg1esportebuscag1esporteoutra.
g1esporte BBC News Brasil - g1esporte Quais são seus próximos projetos?
g1esporte Lopes - Tenho mais um romance encaminhado. E, como sempre, com protagonistas negros, pois este é o meu foco. Foi assim que meu O Preto que Falava Iídiche foi incluído entre os 5 brasileiros finalistas do Prêmio Oceanos, a ser decididog1esporte5g1esportedezembro. E certamente ainda vão aparecer muitas coisas interessante para eu realizar.
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