DNAfósseis do Brasil desafia teorias'descoberta' da América:

Pesquisador escavando fóssil

Crédito, Divulgação/Andre Strauss

Legenda da foto, Parte dos fósseis estudados pelos pesquisadores foram encontrados no Brasil
SítioMinas Gerais

Crédito, Divulgação/MaurícioPaiva

Legenda da foto, Dos esqueletos brasileiros, sete, com cerca9,6 mil anos, foram escavados no sítio arqueológicos Lapa do Santo, na regiãoLagoa Santa,MG

O novo trabalho poderá desvendar um mistério que intriga cientistas e pesquisadores - e até pessoas leigas - desde 1492, quando Colombo desembarcou numa ilha do Caribe e foi recebido pelos tainos, um povo amistoso - estava convencidoque havia chegado às Índias.

Desde então, persiste a indagação: como as populações encontradas pelo navegador genovês a serviço da Espanha chegaram a este novo mundo descoberto por ele, mais tarde batizadoAmérica? Teorias não faltam. Há desde aquelas que afirmam que o evento ocorreu há cerca12 mil anos até as que apostam100 mil anos ou mais.

Esqueleto encontradosítio arqueológicoMG

Crédito, Divulgação

Legenda da foto, Estudo aponta que houve duas ondas migratórias há 14 mil e 11 mil anos

As primeiras teorias

A hipótese mais antiga, e que permaneceu como a mais aceita por mais tempo, é a conhecidainglês como Clovis-first (Clóvis-primeiro). Deve seu nome a um sítio descoberto1939, no Novo México, Estados Unidos, no qual foram encontradas pontasflechas feitaspedra datadas11,4 mil anos. Segundo essa hipótese, a chegada teria ocorrido há cerca12 mil anos.

A ideia acabou caindodescrédito após novas descobertas arqueológicas, como o sítio Monte Verde, no Chile, onde foram encontrados resquícios humanos com mais12.500 anos - anteriores, portanto, à cultura Clóvis.

Uma segunda teoria foi proposta pelo bioantropólogo Walter Alves Neves e pelo geógrafo Luís Beethoven Piló, ambos da USP,seu livro O PovoLuzia - Em Busca dos Primeiros Americanos. Eles a chamamDois Componentes Biológicos Principais, porque, segundo essa tese, houve duas levas migratórias iniciais: a primeira há 14 mil anos e a segunda, há 11 mil, também vindas da Ásia pelo estreitoBering.

A mais antiga seria composta por uma população com traços que lembram os dos africanos e aborígenes australianos. É desses pioneiros que descenderia a famosa Luzia, o fóssil mais antigoque se tem registro no país, com 11.300 anos.

Seu crânio foi descoberto1974, pela arqueóloga francesa Annette Laming-Emperaire, na regiãoLagoa Santa. Durante mais20 anos, os restos desse indivíduo jovem, do sexo feminino, ficaram guardados nas gavetas do Museu Nacional do RioJaneiro - um incêndio que destruiu o museu no dia 2setembro, mas pesquisadores conseguiram encontrar, nos destroços, quase todos os pedaços do crânio.

Arqueólogos examinam fósseis

Crédito, Divulgação

Legenda da foto, Outra teoria aponta que o homem chegou à região há nada menos que 100 mil anos, vindo diretamente da África

Em 1995, Neves fez medidas antropométricas do crânio, que mostravam, segundo ele, que Luzia tinha mais a ver com os africanos que com os índios atuais. Em 1996, o antropólogo forense britânico, Richard Neave, reconstruiu a face dela. O resultado foi o rostouma mulher com traços semelhantes aos dos africanos e aborígenes australianos atuais.

Há outra teoria ainda mais controversa e polêmica, proposta pela arqueóloga Niéde Guidon, com basesuas descobertasvários sítios arqueológicos no sul do Piauí. Para ela, o homem chegou à região há nada menos que 100 mil anos, vindo diretamente da África, cruzando o Atlântico, numa épocaque o planeta estava num período glacial, com o mar 120 metros abaixoseu nível atual.

Avanço nas descobertas

O trabalho publicado agora na Cell põexeque todas as teorias anteriores. De acordo com o arqueólogo André Strauss, do MuseuArqueologia e Etnologia (MAE), da USP, um dos autores do artigo, a forma do crânio não é um marcador confiávelancestralidade ouorigem geográfica.

"A genética, por outro lado, é a técnica que se presta por excelência a esse tipoinferência", explica. "No nosso estudo, são apresentados os primeiros resultados positivos para a extraçãoDNA dos esqueletosLagoa Santa."

Isso só foi possível graças a avanços metodológicos desenvolvidos pelo Instituto Max Planck. "Antes, a extração do DNA fóssil era quase impossívelser realizada", diz Strauss. "Afragmentação extrema e a alta incidênciacontaminação fizeram com que durante quase duas décadas diferentes grupospesquisas tentassem sem sucesso extrair o material genético dos ossosLagoa Santa. Agora, os novos métodos tornaram isso possível."

Reconstituição digital da face do PovoLuzia

Crédito, Divulgação

Legenda da foto, Foi feita uma nova reconstituição da faceLuzia

Além da análise do DNA fóssil, também foi feita uma nova reconstituição da face do PovoLuzia. A tarefa coube à especialistareconstrução forense Caroline Wilkinson, da Liverpool John Moores University, na Inglaterra, discípulaNeave e responsável pela reconstrução facial do rei britânico1483 a 1485, Ricardo III.

O trabalho atual foi feito a partir do modelo digitalum crânio do sítio arqueológico da Lapa do Santo. "Por mais acostumados que estejamos com a tradicional reconstrução facialLuzia, com traços fortemente africanos, essa nova imagem refleteforma muito mais precisa a fisionomia dos primeiros habitantes do Brasil, apresentando traços generalizados e indistintos a partir dos quais, ao longo dos milharesanos, a grande diversidade ameríndia se estabeleceu", explica Strauss.

Disso se infere que o povo que chegou à América há 20 mil anos saiu da Ásia antes dele e seus parentes que lá ficaram terem adquirido os traços físicos que os caracterizam hoje, assim como os indígenas atuais. Embora tênue, é um pontocomum com a hipóteseNeves, que também propôs que a primeira levamigrantes teria saído da Ásia antes da evolução que levou os asiáticos a terem os traços que os distinguem atualmente.

Resta explicar como aquela população e os ameríndios atuais, que deveriam ter, há 20 mil anos, os traços genéricos apresentados pela reconstrução facial do PovoLuzia feita por Caroline, evoluíram paralelamente, separados por milharesquilômetros e um oceano e sem troca genética, para a morfologia semelhante que apresentam hoje.

Arqueólogos que estudaram fósseis no Brasil

Crédito, Divulgação/MaurícioPaiva

Legenda da foto, Luzia é o fóssil mais antigoque se tem registro no país, com 11.300 anos

O que a análise do DNA fóssil realizada pela equipe internacional deixa claro é que o grupo humano que chegou à América há 20 mil anos compartilha dois terçossua ancestralidade com as populações atuais do leste asiático e um terço com europeus. "Não existe nenhuma ancestralidade entre os índios americanos - do passado ou do presente - com populações da África ou da Austrália", garantes Strauss.

De acordo com ele, há 16 mil anos essa população primária se dispersou rapidamente por todo o continente americano, tendo alcançado até mesmo o sul do Chile há cerca14 mil anos. "Em algumas regiões do continente, como no sul do Brasil, esses grupos originários permaneceram majoritariamente inalterados até o contato europeu - caracterizando uma impressionante continuidade demográfica", diz.

Em outras regiões da América do Sul, no entanto, especialmente Lagoa Santa, a história foi bem diferente. "Os dados genéticos do nosso trabalho mostram que essas populações apresentam uma surpreendente conexão com a famosa cultura Clóvis", explica Strauss.

"Uma das maiores descobertas do nosso estudo foi determinar que esses grupos Clóvis migraram para o sul, deixando descendentes por diversas regiões da América do Sul, algo inimaginável até então."

Surpreendentemente, o PovoLuzia, que imaginava-se ter ancestralidade não-ameríndia, revelou-se como uma dessas populações descendentesClóvis.

"Essa população, entretanto, por razões desconhecidas, não perdurou por muito tempo", informa Strauss. "A partircercanove mil anos atrás ela desapareceu, sendo substituída pelos ancestrais diretos dos grupos indígenas que habitavam o Brasil durante o período colonial."

Quanto à teoriaNiéde, Strauss diz que, se seres humanos pisaram ou viveram nas Américas antes20 mil anos, não deixaram rastros nem traços genéticos nos ameríndios do passado ou nos atuais.

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