Como césio-137Goiânia pôs Brasil no mapapiores acidentes radioativos do mundo:
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Dentro, havia um cilindro que continha 19 gramascésio-137, uma substância altamente radioativa.
Os homens venderam a cápsula para um ferro-velho, propriedadeDevair Ferreira.
Um relatório publicado um ano depois pela Agência InternacionalEnergia Atômica (AIEA) registrou que,pouco tempo, Pereira e Alves começaram a sofrer com vômitos frequentes, mas atribuíram à época os sintomas a uma intoxicação alimentar.
Sofrendo diarreia, tontura e com uma mão inchada, Pereira procurou atendimento médico no dia 15setembro. Os sinais sugeriam, segundo o diagnóstico, um tiporeação alérgica causada pela ingestãoalimentosmás condições.
Três dias depois, Ferreira entrou na garagem e notou um brilho azul emanando da cápsula que havia comprado como sucata.
Achou bonito o que via e pensou que aquele pó poderia ser valioso, como uma pedra preciosa, ou mesmo algo sobrenatural.
Ele levou o cilindro para casa.
Durante os três dias seguintes, vários vizinhos, parentes e conhecidos foram convidados a ver a curiosa cápsula.
Como os brilhos do Carnaval
Um amigoFerreira o visitou e, com a ajudauma chavefenda, extraiu alguns fragmentos do material raro, do tamanhogrãosarroz, que se desintegravam facilmente e viravam pó.
Ferreira também distribuiu pedaços para a família. Houve vários casospessoas que esfregaram o pó radioativo sobre a pele, como fariam com o brilho usado na época do Carnaval.
Em 24setembro, Ivo Ferreira, irmãoDevair, levou alguns fragmentos para casa e eles foram colocados na mesa durante uma refeição. Sua filhaseis anos, Leide das Neves Ferreira, os tocou enquanto comia, assim como outros familiares.
Logo, muitas pessoas adoeceram - 12 delas foram transferidas para um dos melhores hospitaisGoiânia com os mesmos sintomas: diarreia, vômitos, febre alta e quedacabelo.
A primeira pessoa a suspeitar que a cápsula com o pó brilhante estaria por trás disso foi María Gabriela Ferreira, mulher do dono do ferro-velho.
SueliMoraes, uma vizinha que também foi contaminada, contou à BBC News Brasil o que aconteceuseguida.
"María Gabriela pôs o cilindroum saco plástico e o levou,ônibus, para um escritóriosaúde do governo local, onde ninguém sabia o que era, mas o guardaram", lembrou ela.
O físico
Já haviam se passado 15 dias desde o início da contaminação. No hospital, os médicos começaram a considerar a hipóteseenvenenamento por radiação.
Quando os pacientes foram informados sobre a cápsula, pediram ao físico Walter Mendes Ferreira que examinasse o dispositivo. Ele pediu emprestado um detectorradiaçãouma agência federalprospecçãourânio e foi ao escritóriosaúde.
"Quando estava a cerca80 metros do escritório o detector começou a agirforma estranha e pensei que estivesse com defeito", disse ele à BBC News Brasil.
Ele pediu outro detector e voltou ao escritório.
"Mais uma vez, a 80 metros, (o detector) começou a ficar saturado. Isso significava que ou estavaum lugar com um camporadiação muito alto, ou que ambos os detectores estavam defeituosos."
Mendes Ferreira conta que viu um bombeiro saindo do postosaúde carregando o cilindro a fimjogá-lo no rio.
"Eu disse: 'Pelo amorDeus, não!'. Imediatamente, evacuei o postosaúde e perguntei aos trabalhadores locaisonde vinha aquilo. Eles me disseram que uma mulherum ferro-velho o havia levado. Fui ao ferro-velho e antesentrar, detectei radiação por todos os lados", lembra ele.
Pânico
O físico fez alertas às autoridades e instâncias públicas como a Comissão BrasileiraEnergia Nuclear (CNEN). Sua intenção era deter a contaminação e, ao mesmo tempo, evitar o pânico. Mas os temores sobre um vazamentoradiação se espalharam pelo Brasil.
Mendes Ferreira conta que eles usaram ônibus da polícia, com o interior forrado por chapasplástico, para levar os possíveis contaminados para um estádiofutebol vazio, onde ficarambarracasacampamento.
Milharespessoas foram examinadas no localbuscavestígiosradiação. Muitos receberam alta após tomarem banho com água e vinagre. Mas outros foram enviados para um abrigo temporário ou um hospital local.
Os casos mais graves foram levados para um hospital militar no RioJaneiro.
De acordo com relatório da AIEA, "a comunidade médicaGoiânia se mostrou relutanteajudar" e o medo da contaminação se estendeu pelo estadoGoiás.
No total, mais110 mil pessoas foram examinadas.
Verificou-se que 249 delas tinham níveis significativosmaterial radioativoseus corpos.
Centenaspessoas com níveis levescontaminação tiverampermanecerabrigos especiais. SueliMoraes, que hoje é presidente da associaçãovítimas, passou três mesesum deles.
Ela lembra que era preciso tomar banho com água, vinagre e sabãococo, alémtrocarroupa a cada meia hora.
"Tomamos comprimidos para ajudar na descontaminação interna. Também tínhamos que esfregar nossos pés, que eram as partes mais contaminadas. Não nos permitiam sair ou receber visitas. Não podíamos assistir à TV, eles não queriam que soubéssemos o que estava acontecendo lá fora", recorda.
O ferro-velho e dezenascasas foram demolidos. Centenasobjetos,refrigeradores a sofás, o pavimentoruas inteiras, veículos, e até mesmo árvores e animais foram destruídos e descartados como lixo nuclear.
O desastreGoiânia produziu cerca6.000 toneladasresíduos, recolhidos e enterradosum centro especialmente preparado, a 20 quilômetros da cidade.
As vítimas fatais
A primeira pessoa a morrer foi Leide das Neves Ferreira, a meninaseis anos que brincou com o pó brilhante e até engoliu um pouco do material. Tanto ela quantotia María Gabriela Ferreira morreramsepticemia e sepse - infecções generalizadas - um mês após a exposição ao césio.
Seu enterroGoiânia ficou longeser um pacífico assuntofamília. A vizinha SueliMoraes diz que, quando os caixões chegaram ao cemitério, as pessoas começaram a atirar pedras e tijolos, tentando impedir o sepultamento.
"Os corpos foram descontaminados e eles decidiram enterrá-lospesados caixõeschumbo como uma precaução adicional para tranquilizar as pessoas. Mas o que aconteceu foi o oposto. As pessoas entrarampânico", diz De Moraes.
"MuitosGoiânia acreditavam que os corpos iriam contaminar o cemitério. E muitos no Brasil acreditavam que toda a cidade estava contaminada, que os produtos agrícolas do estadoGoiás estavam contaminados. Isso não era verdade, havia muita desinformação que ajudava a espalhar o pânico", diz ela.
As outras duas vítimas fatais foram homens que trabalhavam no ferro-velho.
Incrivelmente, os catadoreslixo Wagner Pereira e Roberto Alves sobreviveram, assim como o proprietário do ferro-velho Devair Ferreira.
Muitas outras vítimas foram salvas pelo tratamento que receberam no hospital.
Em 1996, cinco pessoas ligadas à clínica onde havia sido abandonada a máquinaradioterapia foram condenadas a três anos e dois mesesprisão por homicídio. A pena foi reduzida depois a serviços comunitários.
O governo passou a pagar pensões vitalícias para cerca250 vítimas. Posteriormente, outras 2.000 pessoas, incluindo bombeiros, motoristas e policiais que trabalharam nas unidadesemergência, também tiveram direito a esses pagamentos.