Nossa Senhora Aparecida: Por que mãeJesus entrou para a História com maismil nomes:
Fato é que desta gravidez nasceria Jesus, o pilar fundador do cristianismo. Mas por que a tradição católica não rende a essa mulher apenas o títuloSanta Maria, e são tantas as representações dela pelo mundo?
"Os nomes dedicados a Nossa Senhora dependem muito da forma como ela apareceu. Normalmente são dados pelo nome do lugar onde ela apareceu ou pelas condiçõesque se deram o aparecimento", esclarece o padre Arnaldo Rodrigues, assessor da Arquidiocese do RioJaneiro.
Conforme explica a cientista da religião Wilma Steagall De Tommaso, coordenadora do grupopesquisa Arte Sacra Contemporânea - Religião e História da Pontifícia Universidade CatólicaSão Paulo (PUC-SP) e membro do Conselho da Academia MarialAparecida, essas nomenclaturas acabam variando a "cada povo, cada região, cada cultura", por conta"títulos que correspondem aos eventos decorrentesinúmeras situações".
Ela lembra que muitos desses títulos são os chamados dogmáticos. Éonde vem, por exemplo, a nomenclaturaNossa Senhora da Imaculada Conceição — bula assinada pelo papa Pio IX "declara Maria imune da mancha do pecado original", ressalta a pesquisadora — ou mesmo a ideiachamá-laVirgem Maria, já que "o ConcílioLatrão,649, preconiza como verdade a virgindade perpétua", da mãeCristo.
"Há ainda as denominações decorrentes dos lugares onde houve uma manifestação que deu origem à devoção local, muitas vezes ampliada a outros povos e locais, como Aparecida, Guadalupe, Lourdes, Fátima, Loreto, Montserrat, etc.", complementa ela.
"Nomes diferentes são atribuídos à Virgem Maria pois estão ligados ao lugar onde ela apareceu", acrescenta a vaticanista Mirticeli Medeiros, pesquisadorahistória do catolicismo na Pontifícia Universidade GregorianaRoma. "Não existe algo que determine que ela precise, necessariamente, 'ser batizada' com o nome do território da visão, mas como inicialmente as aparições são uma manifestaçãoreligiosidade popular, antes mesmopassar por toda a análise canônicapraxe, é o povo que acaba difundindo, num primeiro momento, esses títulos."
"Os tantos títulos que lhe dão todos têm uma razão. É Nossa SenhoraFátima, porque apareceu lá. É Nossa Senhora do Bom-Parto porque auxilia espiritualmente as parturientes. É Nossa Senhora do Bom-Conselho porque tem sempre uma orientação a dar aos seus filhos", afirma o pesquisador José Luís Lira, fundador da Academia BrasileiraHagiologia e professor da Universidade Estadual Vale do Aracaú, do Ceará. "E todos esses títulos sãouma só mãe, porque é mãetoda a humanidade etodos os lugares, os povos a chamam e representam conforme seus costumes, suas tradições. É claro que para uma veneração pública é necessária a aprovação da Igreja."
Pedidomãe é uma ordem
A devoção a Nossa Senhora, contudo, remonta ao princípio do cristianismo. Por princípio, a ideia é que ela funcione como um canal direto ao próprio Cristo — dentro da premissa que pedidomãe ninguém nega.
Uma passagem importante do próprio evangelho reforça essa ideia. Trata-se da narração do milagre das bodasCaná, que aparece exclusivamente no textoJoão, no qual Jesus faria aquele que é considerado seu primeiro milagre.
Na festacasamento, onde ele estava junto amãe como convidado, os anfitriões notam que havia acabado a bebida. Maria chama Jesuslado e explica o drama. Ele, então, transforma águavinho e garante a continuação da celebração.
"Seria um escândalo para o casal se acabasse a bebida antesa festa terminar. Quando Maria pede a Jesus que tome uma providência, fica importante o papel dela como intercessora", analisa padre Rodrigues.
A devoção mariana também se baseiaoutro momento dos textos bíblicos. Quando Jesus está agonizando na cruz, segundo o relato, ele teria dito algumas palavras paramãe e também para seu apóstolo João. Ali, teria utilizado o seguidor como representante toda a humanidade, considerando Maria a mãe dele — e, por extensão, a mãetodos.
"Nesta ação, João representa toda a humanidade. Maria se tornou a mãe nossa. A nova Eva, uma Eva livre do pecado, como a Igreja nos ensina. Assim, Maria Santíssima cuida da humanidade como mãe e mãe zelosa", analisa o hagiólogo Lira.
Antiguidade
Segundo estudos do padre Valdivino Guimarães, mariologista e ex-prefeitoIgreja do Santuário NacionalAparecida, os registros mais antigos dessa crença no poder da mãeCristo remontam ao século 2. "Indícios arqueológicos demonstram a veneração dos primeiros cristãos. Nas catacumbasPriscila, se vê pinturas marianas do segundo século,local onde os primeiros cristãos se reuniam", afirma ele.
"Nas catacumbas, encontramos o afresco considerado, até agora, a mais antiga imagem da Virgem Maria com o Menino Jesus", comenta De Tommaso. "Esse afresco deixa evidente que os primeiros cristãos entendiam que a vindaJesus fora prenunciada nos livros sagrados do povo hebreu. E Maria, a mulher que disse o sim e que teceseu ventre o corpo do Salvador. Há um ícone muito antigo conhecido como Maria, a tecelã."
A mais remota das aparições remontam ao ano 40 e seria um episódiobilocação, na verdade, pois Maria ainda era viva. Segundo a tradição cristã, ela teria aparecido ao apóstolo Tiago na atual cidadeZaragoza, hoje Espanha, onde ele estava pregando. Fato é que há registros da construçãouma pequena capela ali, desde os primórdios do cristianismo.
Outro relato sempre citado por pesquisadores é oNossa Senhora das Neves, uma apariçãoagosto352,Roma. Foi por conta desse episódio que foi erguida a BasílicaSanta Maria Maior.
"Maria é venerada desde os primórdios do cristianismo. Em muitos escritos, e inclusive na própria iconografia primitiva, ela recebe um lugardestaque. A mais antiga antífona mariana que se tem notícia é do século 2, que é chamada,latim,Sub tuum presidium, ou Sob tua proteção. O ConcílioÉfeso,431 d.C, analisa e aprova a tese teológicaque Maria também era mãeDeus, entre outras atribuições que ocorreram mais à frente", pontua Medeiros.
"O temaMaria está presentetodos os períodos da história do cristianismo. Há uma tradição que aponta que a primeira apariçãoMaria teria acontecido na Espanha,40 d.C, cujo vidente teria sido São Tiago, apóstoloJesus, considerado o evangelizador do território", prossegue a especialista. "O título adotado foi oNossa Senhora do Pilar, já que, segundo o relato, Maria teria mostrado ao apóstolo uma coluna, pedindo que ele construísse um santuário naquele lugar."
Ao longo dos séculos, contudo, esses relatos passariam a ser constantes. De acordo com padre Rodrigues, estima-se que hoje sejam cerca1,1 mil nomes pelos quais a santa é conhecida.
"Bom, falando do pontovista histórico, as aparições acontecemperíodos muito particulares", diz Medeiros. "Não cabe a nós, enquanto historiadores, julgarmos se elas são verídicas ou não, mas o fato está que muitas acontecemmeio a um determinado contexto político-social. É o casoFátima, cuja mensagem é muito interessante, e condiz com a postura da que a Igreja vai adotar, frente ao comunismo, nos anos posteriores. Temos o casoAparecida, por exemplo, cuja imagem é achadameio ao debatetorno da abolição da escravatura. Temos o casoGuadalupe, onde a virgem Maria, com traços indígenas, é um símbolo da luta contra a desigualdade. E por aí vai."
Mas nem sempre a Igreja aprova essas manifestações. "Nem todas as aparições que ocorrem hoje foram oficialmente reconhecidas pelo catolicismo. Há um protocolo a ser seguido. Sem contar que algumas são reconhecidas totalmente e dianteoutras, aindafaseanálise, foi permitida somente a liberdadeculto", lembra ela. "O que a suposta Virgem Maria diz, no caso, precisa condizer totalmente com os princípios da Igreja Católica e até a idoneidade moral e psicológica dos videntes é analisada."
A padroeira do Brasil
Autora do livro 21 Nossas Senhoras que inspiram o Brasil, a jornalista Bell Kranz conta que a devoção mariana foi trazida ao Brasil já pelas esquadrasPedro Álvares Cabral —um dos barcos foi trazida uma imagem da santa. "[A tradição] chegou essencialmente pelos portugueses, pelos colonizadores", explica. "O ToméSousa [primeiro governador-geral do Brasil] chegou à Bahia já com uma imagem da santa na bagagem… Nossa Senhora da Conceição! E logo erigiu uma capelinhaSalvador, que hoje é a grande catedral Conceição da Praia [Basílica Nossa Senhora da Conceição da Praia]."
"Eu diria que o Brasil foi escolhido por Nossa Senhora, não é fanatismo dizer isso", comenta Lira. Para ele, há uma "predileção especialNossa Senhora para com esta terra".
"Nossa Senhora da Conceição, Nossa Senhora das Dores, Nossa Senhora das Candeias (a mesma da Candelária e da Purificação), Nossa Senhora Aparecida (que é a mesma Conceição), penso que são as mais importantes para o Brasil pela veneração que o povo lhes atribui", acrescenta o hagiólogo.
"É claro que cada Estado brasileiro temdevoção. Por exemplo, na Bahia há uma forte devoção à Nossa Senhora da Boa-Morte. Em Minas Gerais, Nossa Senhora da Piedade que é a mesma Nossa Senhora das Dores e por aí vai. No Pará,Belém, temos a linda manifestação à Nossa SenhoraNazaré que anualmente leva milhões ao CírioNazaré. Aqui no Ceará é interessantíssima a devoção a Nossa Senhora das Dores,Juazeiro do Norte, por exemplo. E qual a razão? Não dá para explicar concretamente. É algo meio que filial mesmo. Amorfilho àmãe e uma mãe que é mãetodas as mães, pais e filhos."
Kranz atenta para o fatoque, dada a religiosidade católica inerente à própria construção da nação brasileira, "desde a colonização, Nossa Senhora está presentetodos os momentosnossa história".
E a ligação brasileira com a santa é umbilical. Isto porque, como bem lembra a jornalista,1646 o então rei português dom João 4º"consagrou todo o reino, incluindo aí as colônias, a Nossa Senhora". "Aí, 217 anos depois do descobrimento do Brasil, ela apareceu lá para os pescadores [Nossa Senhora Aparecida]", acrescenta Kranz.
Nossa Senhora
Maria se tornou "Nossa Senhora", assim chamada, somente no fim do período medieval. Mas, historicamente, a Igreja já a reconhecia como "MãeDeus" muito antes — mais precisamente a partir do século 5, depois do ConcílioÉfeso,431. "[É quando] Maria recebe o títuloThotòkos, a MãeDeus, dogma que define explicitamente a maternidade divinaMaria. Daídiante, ela passa a ocupar, por exemplo, o posto principal, o conteúdo da imagem do presépio se amplia e praticamente esse ícone resume a história da salvação", esclarece De Tommaso.
De acordo com o mariologista Guimarães, Maria "ganha destaque sociológico, cultural e religioso" no período medieval. É quando ela adquire "caráterpoder", tornando-se "aquela que destrói o mal". Assume características fortes, "ganha rostorainha". Assim, passa a ser invocada como "guerreira", "a mulher que combate o mal e, com poder militar, destrói as heresias".
"Maria passa da dimensão cultural para a política", compara ele. "No período feudal, diante da opressão, Maria se torna a padroeira para os que nela buscam auxílio, etrocaproteção, o fiel a louva com oração e atoscaridade."
A santa passa a ser invocada "como a mãe que protege diante da iraDeus, por algum pecado cometido, não sóforma individual mas também comunitária".
"Com o surgimento das ordens mendicantes, Maria se aproxima das pessoas, ela é tirada do tronorealeza, onde fora colocada pela teologia monástica, e se faz irmã, pobre e vizinha das pessoas", diz Guimarães.
Ao fim do período medieval, Maria já era um ícone consolidado dentro do catolicismo, tema constante das pregações e protagonistatradições como medalhinhas, procissões, novenas e outras manifestações.