Gloria Perez: 'No Brasil, quanto mais violentos são os crimes, mais benevolentes são as leis':
Leia a seguir os principais trechos da entrevista concedida por e-mail à BBC News Brasil:
BBC News Brasil - No documentário 'Pacto Brutal, o assassinatoDaniella Perez', a senhora diz que sempre quis contar essa história. Como foi revisitar detalhadamente o crime dafilha e tanto tempo depois? Qual é seu sentimento?
Gloria Perez - É uma dor, um vazio que sempre estará ali, não importa quanto tempo passe.
BBC News Brasil - Há documentos que só serão revelados no documentário? O que eles dizem além do que ficou conhecido? No documentário, a senhora diz que só existe uma verdade e várias versões. Qual seria a maior verdade?
Gloria Perez - O documentário tem como foco os autos do processo. É isso que ele traznovo. O que ficou conhecido são as muitas versões sensacionalistas com que os assassinos alimentaram a imprensa durante os anosespera para o julgamento. É através dos autos que você pode entender porque nenhuma dessas versões restoupé e por que os dois — GuilhermePádua e Paula Peixoto — foram condenados por homicídio duplamente qualificado, com motivo torpe e recurso que impossibilitou a defesa da vítima.
BBC News Brasil - No documentário, a senhora diz que 'tudo parecia lindo', 'uma estrada linda, aberta', 'com coisas boas no horizonte', naquele momento da vidavocês (ae da 'Dany'), mas que, 'de repente tudo explodiu, foi sugado'. Como é lidar com o fatoos assassinos estarem livres?
Gloria Perez - Dói muito para quem perdeu filhosassassinatos brutais se confrontar com a realidade do quanto a vida humana é barata entre nós. Os dois assassinos, mesmo condenados por homicídio duplamente qualificado, ficaram presos pouquíssimo tempo, cercadostodas as mordomias que o dinheiro compra. E estão aí, nas redes sociais, exibindoimpunidade.
BBC News Brasil - A lei Maria da Penha, as leis atuais no Brasil que envolvem os direitos e defesa das mulheres são suficientes? No portal da Daniella Perez, a senhora escreveu que a então liberdadeGuilhermePádua, 48 horas depois do crime, revelou, navisão, que 'matar não dava cadeia'. A situação mudou desde então ou a legislação segue insuficiente diante da brutalidade?
Gloria Perez - Não era a minha visão: estava na lei. O homicídio qualificado não tinha sido incluído na lista dos crimes considerados hediondos, aquelesque a pena era mais dura e se exigia mais tempocumprimento antesqualquer benefício. O que a emenda popular que nós conquistamos fez foi introduzir o homicídio qualificado nessa lei dos crimes hediondos, que já não tem o rigor daquela época e a cada dia se torna mais branda.
BBC News Brasil - A senhora diz que a lei mudou, mas continua branda para a atualidade? Nova emenda popular seria necessária? A que a senhora fez na época teve 1 milhãoassinaturas e apoiolíderes religiosos.
Gloria Perez - 1.300.000. Essa emenda tem a importância tambémter indicado um caminho,ter alertado a sociedadeque ela pode propor e fazer passar uma lei. Outras vieram depois.
BBC News Brasil - Quando Daniella morreu, não se usava a palavra feminicídio. Como foi a luta dela por Justiça na época?
Gloria Perez - O assassinatoDaniella não se enquadra no que chamamos hojefeminicídio, foi um crime por ganância pelo sucesso, praticado por um casalpsicopatasmodo absolutamente ritualístico.
BBC News Brasil - Ainda hoje o feminicídio tem estatísticas epidêmicas e o noticiário está cheiocasosviolência contra a mulher, como o caso do anestesista estuprador durante o parto. A senhora acha que o Brasil tem aprendido alguma coisa com crimes trágicos como o da Daniela?
Gloria Perez - Quanto mais violentos são os crimes, mais benevolentes são as nossas leis penais. Na matemática da justiça brasileira, a pena aplicada aos réus, por mais alta que seja, é só para impressionar. Na prática, ela se dissolvequase nada. A revolta é da sociedade, como você está vendo no caso do médico. Não do Legislativo, responsável por fazer as leis que a justiça aplica.
BBC News Brasil - A senhora chegou a ter contato com os assassinos da Daniella nestes anos quase 30 anos?
Gloria Perez - Nunca, Deus me poupouencontrá-los e só espero que continue poupando.
BBC News Brasil - GuilhermePádua hoje é pastoruma igreja evangélicaMinas Gerais. E a Paula Thomaz, que era esposa dele na época, mudounome. Qual évisão sobre estes fatos?
Gloria Perez - Sim, estão vivendo e exibindo a boa vida nas redes sociais. Nenhum indícioculpa ouremorso. Não impressiona: psicopatas não têm mesmo culpa nem remorso. O que me impressiona é que ainda exista, nesse momentoque se busca uma revisão críticacomportamentos, que ainda exista quem dê palco a esses egos e lastime, que a exposição do processo que os condenou tire a história desse crime do terreno ficcional das versões.
Essa foi a razão que me levou a abrir meu arquivo para Tatiana Issa/Guto Barra e a HBOMax: a propostacontar essa história fugindotodo e qualquer apelo sensacionalista. A maneira sensacionalista com que o caso foi explorado durante o processo está lá, registrada. O que cabe agora é mostrar a verdade dos fatos, o porquêtodas essas versões não terem se sustentado. Os dois assassinos foram condenados a pena que, naquela época, equivalia à pena máxima: 19 anos e meses.
Havia, então, um recurso que já não temos mais: o protesto por novo júri. Apesaro Código Penal estabelecer 30 anos como a pena máxima, se a pena chegasse a 20 anos o réu tinha direito a ser julgadonovo. Por isso, mesmo quando os crimes mereciam os 30, os juízes se detinham19 anos e alguns meses. Foi o que aconteceu no caso dos dois psicopatas que mataram Dany.
BBC News Brasil - A senhora tem alguma esperançaque este caso seja reaberto?
Gloria Perez - O caso está encerrado, já foi julgado e transitadojulgado. Não há mais nada a acrescentar nem a polemizar.
BBC News Brasil - Como Daniella veria o Brasil hoje? Quando ela foi assassinada,1992, tinha 22 anos e o Brasil engatinhava como democracia, após 21 anosditadura.
Gloria Perez - Durante esses 30 anos, eu me pergunto como ela veria, como viveria cada coisa que acontece no mundo, como seriam seus filhos, que viagens ela teria feito, que livros teria lido... que músicas estaria dançando...
BBC News Brasil - O Brasil realiza eleições presidenciais neste ano. A campanha já tem registrado fatos violentos, como o que ocorreuFozIguaçu, na semana passada, quando um seguidorBolsonaro matou um petista numa festa familiar. A situação atual do Brasil a preocupa?
Gloria Perez - A agressividade explícita nas redes sociais preocupa e entristece todos nós.
BBC News Brasil - Como a senhora fez para continuar sendo produtiva, escrevendo novelas, e defendendo mudanças na legislação brasileira, apesar da dor?
Gloria Perez - Foi uma questãosobrevivência. Janete Clair e Manoel Carlos perderam filhos também durante uma novela e conseguiram sobreviver da mesma maneira: se agarrando ao trabalho.
BBC News Brasil - Pelo que li, anova novela 'Travessia', que estreia depois'Pantanal', abordará a questão da tecnologia na atualidade. As redes sociais como protagonistas?
Gloria Perez - Não só as redes. Mais uma vez falo do impacto dos avanços tecnológicos sobre a vida cotidiana.
- Texto originalmente publicadohttp://vesser.net/brasil-62232088
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