Os superalimentos desprezados que poderiam ajudar a reduzir a fome no Brasil:

Homem segura cachoburiti no ombro

Crédito, Sharon Barcelos Carvalho

Legenda da foto, O botânico Valdely Kinupp segura um cachoburiti, fruto típico da Amazônia e do Cerrado.

Ainda assim, o fruto é uma das várias espécies alimentícias nativas do Brasil que têm perdido espaçolares, restaurantes e mercados ao mesmo tempoque a fome cresce e a comida encarece no país.

Muitas dessas espécies produzem frutos comestíveis. Outras são hortaliças que nascem espontaneamentecampos agrícolas e canteiros, mas são vistas como ervas "daninhas".

Em comum, muitas delas são considerados superalimentos por terem grande quantidadenutrientes - como minerais, vitaminas e antioxidantes.

Ora-pro-nóbis florida

Crédito, PrefeituraBH

Legenda da foto, Ora-pro-nóbis integra culinária típicaMinas Gerais, mas é pouco conhecidavários outros Estados.

'Matos' comestíveis

Resistentes, várias hortaliças espontâneas comestíveis toleram grandes variações climáticas e dispensam cuidados especiais. Um exemplo é o caruru, que tem folhas com propriedades semelhantes às do espinafre e sementes com 17,2%proteínas.

Outra planta é a beldroega, ricaômega-3 e nas vitamina B e C, alémter propriedades antioxidantes.

Todos os anos, porém, muitos agricultores recorrem a herbicidas para destruir grandes quantidadescaruru e beldroega antessubstituí-las por espécies exóticas. E,muitos casos, as novas espécies plantadas têm menos nutrientes que as anteriores, são mais sujeitas a pragas e são dependentesfertilizantes, cujos preços também estãoalta.

Pesquisador do ramo da Embrapa (Empresa BrasileiraPesquisa Agropecuária) dedicado a hortaliças, o agrônomo Nuno Rodrigo Madeira diz à BBC News Brasil que hortaliças como o caruru e a beldroega têm mais nutrientes que várias verduras convencionais justamente por serem mais resistentes.

"Como elas não são adubadas, elas disparam processos metabólicos para conseguir viver na adversidade e aguentar calor e seca, e isso faz com que fiquem mais nutritivas para a gente", afirma.

Beldroega

Crédito, Kew Science

Legenda da foto, Beldroega é provavelmente originária da África, mas se tornou espontâneasolostodo o Brasil.

Para Madeira, o desprezo por essas espécies se deve ao "afastamento entre a sociedade e a origem do alimento".

"Nós nos distanciamos da produção, só entendemos mercados, e o ente mercado quer que a gente gaste mais, senão o PIB reduz", afirma.

Vender nos supermercados hortaliças que crescem sozinhas como "matos", diz ele, não seria tão lucrativo quanto vender as verduras convencionais - daí a resistência do setorincorporar esses itens.

Só a lógica comercial, segundo Madeira, explica queuma cidade quente como Manaus agricultores recorram a pedrasgelo para conseguir cultivar hortaliças como a alface, enquanto tantas espécies nativas adaptadas ao calor são deixadaslado.

E isso não ocorre só no Brasil.

Caruru

Crédito, Kew Science

Legenda da foto, Caruru cresce espontaneamentejardins e canteiros agrícolastodo o Brasil.

Professor do Instituto Federal do Amazonas (Ifam)Manaus, o botânico Valdely Kinupp diz à BBC que 90% do alimento mundial hoje vem20 tiposplantas - embora se estime que até 30 mil espécies vegetais tenham partes comestíveis.

Os números soam ainda mais paradoxais no Brasil, país que abriga entre 15% e 20% das espécies vegetais do planeta, mas alimenta a maior partesua população com o mesmo cardápio limitado - e majoritariamente estrangeiro.

São estrangeiros quase todos os principais produtos agrícolas do país, como a soja (China), o milho (México), a cana-de-açúcar (Nova Guiné), o café (Etiópia), a laranja (China), o arroz (Filipinas) e a batata (Andes).

Entre as raras plantas que fizeram o caminho inverso, saindo do Brasil para ganhar outras partes do mundo, estão a mandioca, o cacau e o amendoim.

"É muito pouco", diz Kinupp. "Vivemos um imperialismo agroalimentar."

Buriti diantechapada

Crédito, Instituto Florestal

Legenda da foto, Presençaburitipaisagens costuma indicar a existênciaalgum curso d'água.

No livro "Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANC) no Brasil", que Kinupp lançou com o colega botânico Harri Lorenzi2014, são listadas 351 espécies alimentícias "subutilizadas, mal conhecidas e negligenciadas" pela população brasileira.

Muitas delas são nativas; outras, espécies exóticas já naturalizadas e aclimatadas ao país. Várias são conhecidas por uma sérienomes populares distintos (para evitar confusão, listamos no fim desta reportagem os nomes científicos das principais espécies citadas nesta reportagem).

Kinupp é um dos principais líderes no Brasilum movimento pela valorização das PANC, o acrônimo que batiza seu livro.

Tratorescampo agrícola

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Agriculturalarga escala costuma desprezar plantas alimentícias que surgem espontaneamente no campo.

Nos últimos anos, embalados pelo movimento, alguns mercados e feiras ampliaram a ofertaPANC, chefs as incorporaramrestaurantes, e cozinheiros criaram contas no Instagram e YouTube para compartilhar receitas.

Mas ele afirma que ainda falta muito para que essas plantas deixemser consideradas "não convencionais".

No caso das espécies silvestres presentes na lista, por exemplo, é preciso que agricultores e instituiçõespesquisa se dediquem a estudá-las - assim como fazem há milênios com plantas como o arroz e o trigo.

E quando a planta só existeambientes naturais, como o buriti, deve-se trabalhar com comunidades tradicionais e pequenos agricultores para apoiar redescoleta, beneficiamento e comercialização com preço justo.

Homem com tubérculo gigante

Crédito, Sharon Barcelos Carvalho

Legenda da foto, Valdely Kinupp mostra tubérculo gigante do cará-de-espinho, que pode ser consumido como a batata

O que é PANC

Kinupp esclarece que algumas plantas do livro são consumidaspartes do país, mas ignoradasoutras.

Uma das espécies que mais o entusiasmam é o cará-de-espinho, uma trepadeira nativa das regiões Norte, Centro-Oeste e Sudeste que produz tubérculos comestíveis que podem ultrapassar 180 kg.

"Essa planta é a solução para a agricultura no trópico úmido", afirma. Segundo o pesquisador, os tubérculos podem ficar armazenados por até 120 dias fora da geladeira sem apodrecer e podem ser consumidos como a batata (frita, cozida,purê) ou virar farinha.

Hoje, no entanto, ele afirma que a espécie só é consumidaaldeias indígenas ecomunidades rurais no Baixo Amazonas.

Outras espécies citadas no livro têm mais penetração popular ou já foram mais consumidas - caso da ora-pro-nóbis, um arbusto com frutos, flores e folhas comestíveis originário do Sul, Sudeste e Nordeste do Brasil, e que pertence à culinária típicaMinas Gerais.

Seus frutos são ricoscarotenoides e vitamina C, e as folhas, quando desconsiderada a água, têm até 35%proteína.

Coletorbabaçu dianteárvore com os cocos da espécie

Crédito, Serviço Florestal Brasileiro

Legenda da foto, Coletorbabaçu no Maranhão; atividade tem encolhido nas últimas décadas

Outro exemplo é o babaçu, palmeira nativa do Mato Grosso evários Estados do Nordeste, cuja castanha pode ser consumida cru ou torrada, alémprocessada para extraçãoleite ou transformadafarinha para pães e mingaus.

Essa castanha contém60% a 70%óleo ricoácido láurico, similar ao presente no óleococo e no azeitedendê.

Em 1984, a Embrapa identificou a existência12 a 18 milhõeshectaresbabaçuzais no Brasil. Na páginaseu livro dedicada à espécie, Lorenzi e Kinupp afirmam que o babaçu tem "grande potencial alimentício" e "deveria estar no mercado".

E houve uma épocaque o frutofato esteve nas prateleiras.

Na década1990, segundo o IBGE (Instituto BrasileiroGeografia e Estatística), cerca300 mil famílias trabalhavam com o fruto.

Em 2017, no entanto, o número havia despencado para 15 mil famílias.

Pesquisadoraagricultura familiar e desenvolvimento sustentável da Embrapa Cocais, no Maranhão, a agrônoma Guilhermina Cayres diz que hoje quase toda a extração atual é destinada à indústriacosméticos e materiaislimpeza.

Ela afirma à BBC que o Maranhão chegou a ter várias indústrias dedicadas à produçãoóleocozinhababaçu. Porém, o setor não foi capazcompetir com o óleosoja, mais barato, e tem sofrido com a expansão da pecuária sobre os babaçuzais.

Além disso, Cayres afirma que muitos trabalhadores deixaram o babaçu por associá-lo à pobreza e por considerar a atividade extenuante.

Quebradeiracoco no Maranhão

Crédito, Serviço Florestal Brasileiro

Legenda da foto, Quebradeiracoco no Maranhão, onde fruto chegou a gerar renda para 300 mil famílias

Grande parte do serviço das famílias consistequebrar artesanalmente o coco que abriga as castanhas, função desgastante e normalmente assumida por mulheres.

A pesquisadora diz esperar que o cenário mude com o desenvolvimento pela Embrapauma ferramenta que facilita a quebra do coco.

A invenção, que já está sendo fabricada por uma pequena empresa local, foi finalistaum prêmio sobre tecnologias sociais da Fundação Banco do Brasil2021.

Cayres também aposta no desenvolvimentoprodutos com maior valor agregado à basebabaçu, como biscoitos e sorvetes.

Comida que vai para o lixo

Também são consideradas PANC espécies que são consumidas nacionalmente, mas têm partes comestíveis descartadas pela maioria.

Um exemplo é o miolo do mamoeiro, que pode ser transformadodoces e farinha. Outro, o mangará ("coração") da bananeira, que pode ser servido refogado ou como recheiopastéis.

Plantaçãomamão

Crédito, Embrapa

Legenda da foto, Além dos frutos, miolo do mamoeiro também é comestível.

Hoje, porém, quase todas as plantações comerciaismamão e banana do país desprezam os itens.

Até mesmo a polpaum fruto bastante popular, o caju, é descartada às toneladas no Nordeste por indústrias que processam a castanha da fruta, diz à BBC News Brasil o sociólogo Carlos Alberto Dória, autorvários livros sobre gastronomia.

"Os galhos (dos cajueiros) são usados como lenha, e a castanha é torrada e exportada", ele diz. "O resto, a polpa, vai para o lixoquantidade expressiva", afirma.

Um dos sócios do Lobozó, restauranteSão Paulo inspirado nas antigas culinárias caipira e caiçara do Estado, Dória diz que o movimento pela valorização das PANC tem alcance limitado.

"É uma coisaclasse média que quer experimentar novidade e que se angustia com o desprezo pela diversidade", afirma.

Diz ainda que ingredientes regionais, que só sejam produzidos ou consumidospartes do país, tendem a desaparecer das prateleiras porque a indústria privilegia produtosalcance nacional.

"A exceção talvez seja o açaí, um produto regional que virou uma commodity, mas isso é muito raro", afirma.

Agricultura urbana

Trabalhadoreshorta urbana

Crédito, FAO

Legenda da foto, Horta urbanaQuito, capital do Equador.

Que meios então haveria para não só preservar mas também ampliar o acesso a alimentos tão ricos, que exigem tão pouco e ocorremabundância no Brasil?

O pesquisador Nuno Rodrigo Madeira, da Embrapa Hortaliças, sugere três caminhos.

O primeiro seria incentivar o cultivoplantas alimentícias não convencionais, oferecendo apoio técnico aos agricultores, criando feiras para a venda desses itens e espaços para a trocaconhecimentos.

O segundo seria aprofundar o debate sobre a comida nas escolas; ensinar às crianças desde cedo a importânciaconsumir produtos frescos e nutritivos, fazê-las se questionarem sobre a origem dos alimentos e entenderem como a comida é feita.

Ele diz que o movimentotorno das PANC não é só sobre alimentação, mas também sobre aprender a observar a natureza, conseguir identificar as espécies que nos rodeiam, sentir-se parteum sistema vivo e integrado.

O terceiro caminho para diversificar e baratear a comida, segundo o pesquisador, seria reaproximar a produçãoalimentos da população - especialmente a população que vive nas cidades.

Pessoas que moremcasas com quintais poderiam se tornar quase autossuficienteshortaliças, diz ele, se cultivassem alguns pésespécies como ora-pro-nóbis, chaya ou moringa - todas elas árvores ou arbustos perenes que produzem folhas comestíveisabundância o ano todo.

Mas como nem todos têm espaçocasa para produzir, o pesquisador defende que as cidades destinem espaços para a criaçãohortas urbanas.

Ele afirma que é possível cultivar hortaliças para todos os habitantesuma cidade10%sua área - iniciativa que já vem sendo adotada com sucesso, segundo Madeira,cidades como Detroit (EUA), Havana (Cuba) ou mesmoSete Lagoas,Minas Gerais.

Horta no meiocidade

Crédito, PrefeituraSete Lagoas

Legenda da foto, Horta urbana no municípioSete Lagoas,Minas Gerais.

A escolha das espécies levariaconta as aptidõescada local, mesclando plantas convencionais e não convencionais.

Ele diz que a produçãoalimentos dentro das cidades reduziria os custos deles, pois se economizaria com o transporte dos itens até os mercados, e poderia ocupar moradoresrua e outros grupos marginalizados.

"Não faz sentido gastar um mundaréucombustível para levar cenourasum Estado para o outro, como é feito hoje no Brasil", diz.

Madeira diz que o cultivoalimentos foi justamente o que propiciou o surgimento dos primeiros núcleos urbanos da história, conforme famílias se agruparamtornoplantações.

"As cidades se formaram por causa da agricultura, e a agricultura não pode estar longe das cidades", diz.

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Principais espécies citadas na reportagem

Babaçu (Attalea speciosa)

Beldroega (Portulaca oleracea)

Buriti (Mauritia flexuosa)

Cará-de-espinho (Dioscorea chondrocarpa)

Caruru (Amaranthus deflexus)

Ora-pro-nóbis (Pereskia aculeata)

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