Brasileiros estudam drogas psicodélicas para tratar depressão e dependência química:
Médicos, psiquiatras, neurocientistas, psicólogos e terapeutas do país estão pesquisando os efeitos positivossubstâncias sintéticas, como LSD e MDMA, mas também algumas que têm origem na natureza, como ibogaína, psilocibina e ayahuasca.
Nas últimas semanas, a BBC New Brasil conversou com alguns deles para entender o que vem sendo estudado, qual o potencial dos psicodélicos e como eles podem ser usados por pacientes e médicos brasileiros.
MDMA e estresse pós-traumático
Um dos pesquisadores é o neurocientista Eduardo Schenberg, diretor do Instituto Phaneros. Neste ano, ele publicou um estudo sobre uso psiquiátricoMDMA (metilenodioximetanfetamina),parceria com uma entidade americana que também pesquisa essas drogas.
No mercado ilegaldrogas, o MDMA já teve dezenasapelidos, como ecstasy e molly, e é usado principalmente por jovensfestas e baladas — também é conhecido como "a droga do amor", porcapacidadegerar empatia.
No tráfico, as substâncias são produzidas sem controlequalidade: já foram apreendidas centenastipos diferentesecstasy, grande parte deles sem nenhuma moléculaMDMA.
Já o composto puro, sem acréscimoelementos que podem fazer mal à saúde, é considerado seguro e não causa grandes efeitos colaterais — no máximo, dorcabeça e no maxilar, náusea, inquietude e uma angústia temporária.
No ensaio, Schenberg utilizou a drogatrês pacientes diagnosticados com transtornoestresse pós-traumático (Tept), cujo gatilho,geral, são experiênciasviolência extrema, como abuso sexual, tiroteios, sequestros, morte repentina na família e, hoje, até a covid-19.
"O transtorno causa um medo paralisante: a pessoa tem pesadelos recorrentes, ataquespânico, palpitações, desespero, raiva. Para lidar com isso, ela reprime as emoções, pois não consegue falar sobre o trauma. Algumas vivem num estadoanestesiamento, sem propósito. Esse transtorno tem uma taxa altasuicídios", diz o neurocientista.
Os três pacientes passaram por uma terapia assistida por drogas psicodélicasquatro meses. Foram 15 consultas90 minutos cada uma, sob supervisãodois terapeutas, masapenas três delas houve usoMDMA, com quantidade escalonada. Nessas consultas, o paciente ouve música e é estimulado a ficar introspectivo,contato com seus sentimentos e memórias. Mas ele também pode dialogar com os terapeutas sobre o que está sentindo.
Dois dos participantes ficaram curados do transtorno, segundo o pesquisador. O terceiro melhorou muito, mas ainda precisa continuar se tratando. "Os resultados no Brasil foram espetaculares, muito parecidos com o que vem sendo observado no exterior. As estatísticas mostram que dois terços dos pacientes saem do tratamento curados", diz.
Nesse contexto, o MDMA surge como uma possibilidade efetivamelhorar o transtorno. Hoje, a medicação tradicional consegue tratar apenas sintomas secundários, como ansiedade, depressão e insônia. Já a terapia com MDMA propõe justamente o contrário: ela busca curar o traumasi.
Mas como ela pode fazer isso?
"O MDMA não causa visões alucinatórias, como outros psicodélicos. Muita gente nem o considera parte dessa classe. Ele funciona como uma espécieturbo neuroquímico, induzindo a produçãoserotonina e dopamina, noradrenalina. No cérebro, ele estimula os neurônios a liberar mais neurotransmissores", explica Schenberg.
"Basicamente, ele acelera o raciocínio e intensifica as emoções. Quem usa consegue enxergar com muita clareza seus problemas afetivos e suas próprias emoções. A droga tem o poderreduzir o medo que o pacienteTept sente o tempo todo, aumentando a capacidadeuma análise profunda do trauma eoutros problemas pessoais", diz.
Recentemente, os ótimos resultadospesquisas realizadas nos Estados Unidos fizeram a FDA (autoridade americanasaúde e medicamentos) a permitir uma expansão das pesquisastratamentos com ecstasy para transtornoestresse pós-traumático.
Ayahuasca para depressão
Outro psicodélicoestudo no Brasil é a famosa ayahuasca, um chá produzido com várias plantas originárias da Amazônia e historicamente utilizadarituais indígenas. No país, a substância também é conhecida por ser o elemento sacramentalalgumas religiões, como o Santo Daime e a União do Vegetal — e por causa do uso religioso, ela é não é proibida.
A ayahuasca é ricaDMT (dimetiltriptamina), um poderoso psicoativo. Estudosuniversidades brasileiras têm apontado efeitos positivos da substânciatratamentosdepressão crônica e dependência química.
Segundo Dráulio BarrosAraújo, professor do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, um dos focospesquisa tenta compreender os efeitos da ayahuasca no corpo, como as imagens psicodélicas são representadas no cérebro e quais são as bases neurais da introspecção e da autoanáliseemoções, processo relatado pelos usuários durante o efeito da substância.
Outro caminho é mais terapêutico. "Estamos avaliando os efeitos antidepressivos da ayahuasca fora do contexto religioso. Nosso grupo é o único no mundo a fazer ensaios clínicos com ayahuasca dentro do hospital com pacientes com depressão resistente ao tratamento", diz Araújo, que comanda uma das equipes pioneiras nos estudos do composto.
Masonde vem esse efeito antidepressivo?
Pesquisadores brasileiros avaliaram o sistema imunológicodois grupospacientes com depressão. Uma das turmas tomou ayahuasca, e outra ingeriu um placebo que simulava apenas os efeitos colaterais da droga, como vômitos.
"Hoje, já se sabe que pacientes com depressão apresentam um aumentomarcadoresinflamação, como a proteína C-reativa. Inclusive, há teorias que falam que a depressão é uma doença do sistema imunológico. Depois da sessão, percebemos que os pacientes que beberam ayahuasca diminuíram a concentração da proteína C-reativa, o que não aconteceu com quem recebeu o placebo", explica Araújo.
Mas há outro ponto importante. Pessoas com depressão normalmente apresentam alteraçãouma proteína chamada "fator neurotrófico derivado do cérebro" (BDNF, na siglainglês). Esse marcador químico está conectado à neuroplasticidade, ou seja, à capacidade do sistema neuralpromover novas sinapses.
"Vimos que pacientes que apresentavam alteração do BDNF tiveram uma melhora para níveis normais depoistomarem ayahuasca. Além disso, trabalhosbioquímica molecular no Brasil apontaram que os componentes da ayahuasca podem aumentar os processosneuroplasticidade, quepacientes com depressão tendem a se reduzir", explica Araújo.
Segundo ele, o psicodélico também tem outros resultados mais sutis, como uma tendênciaafastar pensamentos repetitivos. "Uma característica comum da depressão são os pensamentos negativos e ruminativos, ou seja, a pessoa sempre volta para eles sem conseguir sair. Aparentemente, a ayahuasca promove uma mudança desse padrão", diz.
Araújo, entretanto, não enxerga um futuro uso hospitalar da substância, principalmente por causaseus efeitos colaterais, como náuseas e vômitos. "Acredito maisum uso clínico da psilocibina, outro psicodélico que tem demonstrado potencial para tratamentodepressão grave", diz.
Psilocibina e dependência química
A psilocibina, substância alucinógena presentealguns cogumelos, é outro psicodélicoestudo, principalmente nos Estados Unidos. No Brasil, há pesquisas sobre possíveis tratamentos contra depressão e dependênciadrogas, como álcool, cigarro e crack.
Um dos estudiosos à frente desse campo é Renato Filev, pesquisador do ProgramaOrientação e Atendimento a Dependentes da Universidade FederalSão Paulo (Unifesp), que também já trabalhou com cannabis e ayahuasca.
Ele explica que, como acontece com outros psicodélicos, a terapia com psilocibina tem potencialmudar comportamentos repetitivos e problemáticos. "No exterior já há diversos estudos apontando a eficáciapsilocibina nesse tratamento, mas queremos testá-la no Brasil, pois o vício também é um fenômeno social e local", explica Filev, que estáprocessoimportação do composto para iniciarpesquisa.
Segundo ele, os psicodélicos atuam numa região do córtex relacionada a uma sériesincronizações do ritmo cerebral. Quando o composto "bate" no cérebro, ele dessincroniza esse ritmo, fazendo-o atuarmodo extraordinário.
"Essas mudanças criam condições para uma análise profunda do eu e do sentidoindividualidade. Essa experiência muda a forma como o paciente enxergapersonalidade, seus comportamentos e suas emoções. Quando você está sob esse efeito, acaba aceitando uma segunda opinião sobre você mesmo, algo que não aceitava antes", afirma.
Nesse sentido, as experiências têm mostrado que,muitos casos, pessoas que eram dependentesdrogas acabaram perdendo a vontadeusá-las novamente depoissessões terapêuticas com psilocibina. Mas Filev pondera: "Não é um milagre. Essa interrupção do uso problemático pode ocorrer, mas também pode não acontecer. Por isso as pesquisas científicas são tão importantes. Precisamos responder: 'por que isso funciona com alguns e com outros não?'"
Ibogaína e abusodrogas
No campo do tratamentodependência, algumas clínicas no Brasil já utilizam legalmente uma substância psicodélica, a ibogaína.
Princípio ativo da raiz africana iboga, a substância não é proibida no país, ao contrário do MDMA, psilocibina e LSD — que só podem ser utilizados pela ciência. Mas seu uso também não está regulamentado. Esse limbo jurídico permite que a ibogaína seja manipulada no tratamentodependênciaoutras drogas.
Anúnciosclínicas na internet prometem curar o vício do paciente (em álcool ou drogas) com apenas uma sessãopsicoterapia com a substância, procedimento que chega a custar R$ 8 mil.
Um trabalho da Unifesp, comandado pelo cientista Dartiu Xavier da Silveira, analisou o tratamento com ibogaína75 pacientes com dependência química. Um ano depois, 72% deles tinham paradousar drogas.
Assim como outros psicodélicos, não se sabe exatamente como a ibogaína age no cérebro. Mas experimentos já mostraram que ela promove a produçãoum hormônio chamado GDNF, que porvez estimula um equilíbrioneurotransmissores.
Os efeitos visuais, bastante intensos e mais fortes que os do LSD, são semelhantes aosum sonho e por isso são chamados"onirofrênicos" — e duram12 a 15 horas.
"As pessoas normalmente têm muitas visões, lembranças, como se estivessem sonhando acordadas. E quanto maior o efeito psicodélico e místico, maior também será o efeito terapêutico", explica o psicólogo e pesquisador Bruno Ramos Gomes, que trabalha com pacientesibogaínaseu doutorado na UniversidadeCampinas (Unicamp).
Ele explica que psicodélicos causam um efeito chamadoafterglow, uma sensaçãobem-estar que persiste mesmo após as experiências visuais e físicas já terem passado. "Em algumas substâncias, como o LSD, o afterglow dura poucos dias. No caso da ibogaína, ele pode ser sentido por meses. Alguns pacientes contam que nunca mais foram os mesmos depois da sessão, e que não sentem mais aquela fissura pela droga que eram dependentes", diz Gomes.
Por outro lado, há relatosque a ingestãoaltas dosesibogaína tenha causado mortes no exterior, embora o procedimento adequado e controlado por profissionaissaúde não apresente riscos à vida, segundo cientistas. No Brasil, há informaçãoque um paciente morreu2016 depoisbeber a substância — ele teria sofrido um ataque cardíacouma clínica na cidadePaulínia, interiorSão Paulo.
Recentemente, o usoibogaína tem desagradado comunidades terapêuticas ligadas a igrejas. Essas instituições oferecem tratamentos baseados principalmenteabstinência do consumoentorpecentes, espiritualidade e isolamento. Muitas delas são financiadas pelo poder público, mantendo pacientes internados por meses e até anos.
Em agosto, após reclamaçãoinstituições religiosas, a Secretaria NacionalCuidados e Prevenção às Drogas (Senapred) publicou uma nota técnica alertando para riscos do usoibogaína, como "alteração da consciência, morte súbita e problemas cardiovasculares". Segundo a pasta do governo Jair Bolsonaro, "não há evidências científicas robustas" que comprovem a eficácia do tratamento.
Para Bruno Ramos Gomes, da Unicamp, embora estudos com a droga ainda estejamandamento, a controvérsia opõe duas visões distintas sobre cuidados com a dependência química. "Enquanto clínicasibogaína falamcura, as comunidades terapêuticas dizem que não existe cura, e que o tratamento deve ser constante", explica.
Qual o futuro dos psicodélicos no Brasil?
Enquanto as pesquisas avançam, já é possível vislumbrar possíveis usos medicinais para as drogas psicodélicas no Brasil.
Cientistas acreditam que elas podem ser administradaspsicoterapia, dentroambientes clínicos e com supervisãomédicos e outros profissionaissaúde — para isso, mais pesquisas terãofeitas para que esses procedimentos sejam aprovados pela Anvisa.
"Eles não serão remédios que o médico receita, o paciente compra na farmácia e tomacasa", explica o médico Luís Fernando Tófoli, professorPsiquiatria da Unicamp, e que já participouestudos com LSD e ayahuasca.
Dráulio BarrosAraújo, do Instituto do Cérebro, concorda. "Esse uso deve acontecer como ocorre com anestésicos potentes: dentro do contexto hospitalar e sob supervisão médica", diz.
Já Renato Filev, da Unifesp, acredita que as terapias deveriam ocorrerambientes acolhedores. "O indivíduo deve ficar confortável, deitado,um local que não seja estéril como os hospitais", afirma.
Para Tófoli, "Eles não dão muito retorno financeiro para as empresas, porque são usados poucas vezes durante um tratamento. Não acho que a grande indústria vá financiar esse setor, mas também não enxergo nenhum movimento para impedi-lo", diz.
"Também acredito que esses tratamentos não serão massificados, porque usar psicodélico não é uma coisa fácil nem é indicado para todas as pessoas. E também não é todo mundo que está disposto a passar por essa experiência", explica o psiquiatra.
Repressão da ditadura
A história das pesquisas científicas com psicodélicos no Brasil não começou agora. Os primeiros experimentos são dos anos 1950, e seguiram uma tendência mundial.
Os efeitos do ácido lisérgico foram descobertos1943 pelo químico suíço Albert Hofmann, que trabalhava na empresa farmacêutica Sandoz. A companhia, interessada nas possíveis utilidades do composto, enviava dosesLSD a praticamente qualquer pesquisador que quisesse se aventurar.
"O LSD chegou ao Brasil pela via medicinal. É difícil dizer exatamente quando isso ocorreu, mas há referências a estudos feitos já nos anos 50", explica o jornalista e historiador Júlio Delmanto, autor do livro História Social do LSD no Brasil (Editora Elefante). A obra relata as primeiras pesquisas com o ácido lisérgico no país, seu uso pioneiro por artistas e por adeptos da contracultura, além do início da repressão policial, a partir da década1970.
"Os médicos brasileiros leram pesquisas do exterior, se interessaram pela substância e conseguiram lotes da Sandoz para testar aqui. Eles inicialmente usavamsi mesmos e, depois, fizeram experimentos com outras pessoas, principalmente artistas", diz Delmanto.
Segundo ele, as primeiras pesquisas com LSD foram feitas por profissionaisdiferentes correntes ideológicas. "Na época, não havia esse estigma contra a substância. Ela atraiu médicos ligados à esquerda, mas também pesquisadoresdireita, alguns deles ligados à ditadura militar e a instituições manicomiais", diz Delmanto.
Mas o LSD e outros psicodélicos foram proibidos no paísmeio ao endurecimento da ditadura militar e também ao aumento da repressão às drogas por parte do governo dos Estados Unidos, que associou negativamente o LSD e outros entorpecentes aos movimentos contrários ao presidente Richard Nixon e à guerra do Vietnã.
Os alucinógenos foram importantes para a contracultura e para os hippies, que viam neles uma formaexpandir a consciência, a criatividade e o bem-estar. A proibição, alémcriminalizar usuários, traficantes e cientistas, interrompeu as pesquisas por mais50 anos.
Curiosamente, um novo decreto sobre drogas no Brasil foi assinado 13 dias depois da promulgação do AI-5,dezembro1968. A nova lei punia com prisão o uso ou a vendaqualquer substância que causasse "dependência química e psíquica", mas não deixava claro quais drogas se enquadravam neste conceito — ou seja,tese, beber álcool e fumar cigarro poderia dar prisão na ditadura, embora isso não acontecesse na prática.
Essa controvérsia norteou o primeiro processo criminal por tráficoLSD no Brasil,1970, que foi analisado por Júlio Delmantoseu livro. A defesa dos acusados — um grupo formado por artistas e estudantes — argumentou que a lei não citava o LSD como causadordependência (e,fato, não há provas científicasque isso ocorra).
Mesmo assim, o juiz Geraldo Gomes condenou os réus, principalmente com basepreceitos morais. "Na sentença, ele criticou mulheres que frequentavam festas à noite e até um dos rapazes do grupo que 'não morava com os pais'. O juiz estava imbuídomostrar quais eram os valores morais da sociedade, dando um recadoclasse, raça e geração".
Anos antes da proibição,1962, ninguém era preso por usar LSD. O escritor Paulo Mendes Campos foi um dos primeiros brasileiros a participarexperimentos com a droga. Em uma entrevista posterior ao jornal O Pasquim, ele relatou como foram suas viagens lisérgicas:
"Minha experiência foi esplêndida. [...] um cursomadurezaautoanálise, me conheci muito melhor. Durante uns dois ou três anos eu me senti com uma segurança muito maior, e vi profundidades minhas horrendas que me levaram a me conhecer melhor. Isso alterou muito a minha vida."
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