Os milagres 'extra-oficiais'Irmã Dulce, a primeira santa nascida no Brasil:
"Eu lembro bem, era como se estivesse saindoum túnel. Eu sentia uma mão enrugada me puxando e a luz voltando. Em 15 minutos, o sangramento parou, como se nada tivesse acontecido", conta Milena, cake designer (confeiteira) que aos 43 anos hoje vive com boa saúde junto a João VictorIrecê, região central da Bahia.
Oficialmente, este caso não é considerado um milagre, mas está entre os milharesrelatosgraças supostamente alcançadas com a intercessão da freira que,breve, passará a se chamar Santa Dulce dos Pobres, tornando-se assim a primeira santa (ou santo) nascida no Brasil.
Conhecida nas ruasSalvador como o Anjo Bom da Bahia, ela terá a santidade declarada pelo Papa Francisco no Vaticano, dia 13outubro,uma cerimônia marcada para as 5h (horárioBrasília).
Apenas 27 anos após amorte, trata-se da terceira canonização mais rápida da história da Igreja Católica. Os santos mais "ágeis" são o Papa João Paulo 2º (canonizado nove anos após a morte) e Madre TeresaCalcultá (19 anos).
Graças espalhadas
Para que Irmã Dulce virasse santa (o que muitos devotos já consideram faz tempo), dois milagres atribuídos a ela precisaram ser oficializados pela Igreja Católica. O primeiro foi2011, a partirum caso semelhante aoMilena. Este ano veio a revelação do segundo milagre: um homem que voltou a enxergar após 14 anoscegueira.
Antesserem objeto do processo que oficializou os milagres, estes dois casos chegaram às Obras Sociais Irmã Dulce (Osid) como osoutras tantas pessoas que, mesmo sem o carimbo do Vaticano, consideram-se beneficiadas por milagres.
O MemorialIrmã Dulce guarda mais13 mil relatos que começaram a chegar1992, ano damorte.
Nos armáriosaço que abrigam as histórias, há casostodos os Estados brasileiros e diversos países, como Argentina, Uruguai, Espanha, Itália e Filipinas. São cartas, bilhetes deixados no Memorial por visitantes, registroslivrosdepoimento também disponíveis no Memorial, recados transcritos das redes sociais e e-mails, incluindo aqui as mensagens enviadas atravésum espaço no site das Osid criado exclusivamente para este fim.
Com uma trombose cerebral, um homem dado como mortorepente se recupera. A mulher desenganada, sem explicação médica, volta ao convívio da família. A infecção generalizada da criança,uma hora pra outra, mostra-se curada. Os nódulos na tireóide, num lapso, somem.
Histórias como essas se sucedem pasta após pasta, somando-se a fotos, cópiasexames, prontuários médicos e manuscritos mais ou menos detalhados. É como percorrer um labirintosegredosvida, expostos pela certeza dos remetentesque os desfechos ali descritos só foram possíveis graças à Irmã Dulce.
"Tem pessoas que vem aqui fazer seus relatos pessoalmente. Elas sentam-se nessa sala e contam o que temmais íntimo, se abrem totalmente, porque realmente acreditam que foram agraciadas por um milagre. Eu me emociono todas as vezes", diz (já emocionada) Carla Silva, museóloga que gere o arquivorelatos das Osid.
Ela lembra que há também fatos inusitados, comopessoas que, ao longo dos anos, ficaram um tanto chateadas por seus casos não terem virado processoscomprovaçãomilagre. "Tem gente que fica zangada. Quer saber por que a graça do outro foi melhor que a graça dela!"
Fé
Milena nunca passou por tal aborrecimento. Sua mãe, Eulália, aquela que pediu a intercessãoIrmã Dulce, era voluntária das Osid e trabalhou ao lado da freira por anos. Logo, sabia que havia um caso semelhante já sendo analisado pelo Vaticano – e que terminou reconhecido como o primeiro milagre,2011.
Graças à atuação da mãe, já falecida, Milena conviveu com Irmã Dulce desde a infância e sempre a teve como referência nas orações. Mas, apósprópria experiência, a devoção só aumentou. "
Eu rezo diante da imagem dela duas vezes ao dia. E tenho imagens pela casa toda. Onde a gente olha, tem Irmã Dulce. É boneca, caneca, foto, tudo".
De Eulália, Milena herdou uma relíquiaIrmã Dulce e um costume: com a fronha usada pela então freira no leitomorte, ela passou a visitar pessoas enfermas para,oração, pedir a melhora. Um dos agraciados, afirma Milena, foi seu sogro, que se recuperou bem após uma fratura na coluna, virou devotoIrmã Dulce e hoje é quem toma conta da fronha — e segue visitando doentes.
Hábito semelhante está na rotina do empresário Mauro Feitosa Filho, que tem 30 anos e viveFortaleza, onde nasceu. Ele também visita pessoas enfermas com relíquiasDulce (um véu e um pedaço do osso da freira) e até organiza missas para que devotos cheguem perto das relíquias. Mas, como essa relação começou?
Quando Mauro tinha 13 anos, exames detalhados apontaram que haviaseu cérebro um tumor do tamanhoum ovo, com todas as característicasser maligno. Para piorar, a massa tumoral estava espalhada e enraizada, o que impossibilitavainteira remoção, devido aos riscosgraves danos cerebrais.
Levado pelos pais para São Paulo e internado no Hospital Albert Einstein, Mauro teve a cirurgia marcada, mas foi atingido por escarlatina, doença infecciosa rara no Brasil, o que impediu o imediato procedimento.
Ele conta que, enquanto os médicos esperavamrecuperação para operá-lo, uma amiga dos pais enviouFortaleza uma imagemIrmã Dulce, que sequer era conhecida pela família. Sem nada a perder, todos mergulharamaproximadamente dez diasoração com pedidos à freira.
"A cirurgia foi marcadanovo e a previsão era que durasse 19 horas. Mas, quando o médico abriu minha cabeça, o tumor estava totalmente diferente do que os exames mostraram. Estava solto e encapsulado, deu pra tirar inteirinho. Depoistrês horas, a cirurgia acabou", relata Mauro, que não precisou nem mesmo fazer tratamentos como radioterapia. "Quando eu acordei da anestesia, já podia ficarpé na UTI".
Este caso chegou a ser considerado nas investigações do primeiro milagre atribuído a Irmã Dulce, mas, para o empresário, o maior milagre daquele episódio foi a transformaçãoseu pai, hoje já falecido.
Mauro Feitosa, o pai, virou embaixador das Osid no Ceará e, seguindo os passosDulce, chegou a construir um centroacolhimentopessoassituaçãoruaFortaleza. Com as relíquias hoje guardadas pelo filho, também visitava enfermos cotidianamente. "Foram muitos milagres que a gente viu com essas visitas!", assegura o filho.
Saudável, Mauro é motociclista e praticantekite surfe. Além disso, registroucartório — literalmente — o tamanho dagratidão à freira baiana. Há um ano e meio, nasceuprimeira filha, batizada Dulce.
Jazigo vazio
Entre tantos relatosgraças, o casoDanilo Guimarães chama atenção porque seus parentes, desenganados pelos médicos, chegaram a comprar seu jazigoum cemitério particularAracaju.
Em maio2011, já diagnosticado com diabetes, Danilo, então com 56 anos, contraiu uma infecção no pé direito, que precisou ser amputado. Ainda no hospital, a infecção se espalhou e toda a perna teve que ser retirada. Mesmo assim, a infecção seguia latente, os rinsDanilo já não respondiam e ele entroucoma, o que levou os médicos a darem o aviso: havia poucas horasvida.
Desolados, esposa e filhos iniciaram os trâmites necessários para a despedida, a começar pela compra do jazigo. Até que a filha Danielle, professoraarte, lembrouuma reportagem que assistira dias antes, sobre a beatificaçãoIrmã Dulce.
"Eu sou uma pessoa muito terrena. Tenho minhas crenças, mas não tenho necessariamente uma religião. Só que naquele momento eu lembrei da reportagem e reuni a família todafrente ao hospital. Rezamos juntos e pedimos à Irmã Dulce. Depois disso, mesmo com as negativas dos médicos, algo me dizia que ele ia ficar bem", recorda Danielle.
Na visita seguinte, a professora imaginava que veria o pai aindacoma, mas, parasurpresa, já encontrou Danilo conversando na UTI e perguntando o resultadoum jogo do Vasco da Gama.
"E aí, depoiscinco dias sem conversar com ninguém da família, meu pai falou: 'quem me salvou foi ela. Foi Irmã Dulce. Ela tava aqui cuidandomim no pé da cama. Eu vi'", recorda Danielle.
Danilo morreu quatro anos depois, vítimaum ataque cardíaco, mas a professora guarda com alegria as lembranças do convívio com o pai depois daquele 25maio2011, quando, ela tem certeza, Irmã Dulce intercedeu por ele.
Os milagres reconhecidos
Se os depoimentos que lotam os arquivos das Osid são milagres "extra-oficiais", existem dois sobre os quais, para o Vaticano, não cabe discussão.
O mais recente, que levou à canonização da Santa Dulce, deu novo brilho aos olhos do maestro baiano José Maurício Moreira,50 anos, que viveRecife.
Vitimado por um glaucoma aos 23 anos, Maurício teve os nervos óticos gradativamente deteriorados. Enquanto isso, preparou-se para o breu, fazendo cursosbraile,mobilidade etarefas domésticas sem a visão. Até que,2000, ela foi completamente embora.
Durante 14 anos, o maestro nada viu. Não conhecia nem mesmo as feições da esposa Marise, a quem foi apresentado após a cegueira se instalar completamente.
Então, na madrugada11dezembro2014, a dor causada por uma conjuntivite viral lhe fez rogar para Irmã Dulce, cuja devoção herdara dos pais e avós, que eram admiradores e chegaram a fazer doações para os trabalhoscaridade da freira.
"Eu tenho na cabeceira uma imagemIrmã Dulce, que eraminha mãe. Eu peguei essa imagem e botei no olho, porque eu estava com muita dor. Meu olho estava uma bolhasangue. Eu não pedi para enxergar, porque sabia que era impossível. Eu só pedi pra ela aliviar aquela dor da conjuntivite."
Na manhã seguinte, Marise saiu e deixou Maurício com compressasgelo nos olhos. De repente, conta ele, seus dedos começaram a aparecer ante a visão. "Eu fiquei assustado. Era como se a nuvem que eu enxerguei por anos estivesse se dissipando", lembra o maestro,meio a um pranto emocionado.
E quando Marise voltou pra casa? "Eu abracei ela, cheguei bem perto do rosto e falei: 'nega, mas tu é linda viu!'. E ela sem entender nada".
Detalhe: exames recentes mostram que os nervos óticosMaurício continuam destruídos, como confirma o médico-cirurgião Sandro Barral, integrante da comissão científica que analisou o caso para o Vaticano. "O impressionante é que qualquer médico que olhar os exames vai afirmar que ele não pode enxergar. As lesões são muito extensas. Mas ele enxerga", diz o médico.
Para ser validado pelo Vaticano, este caso passou por três etapasavaliação: análiseperitos médicos (que deram o parecer científico),teólogos e, finalmente, a aprovação final do colégiocardeais, tendoautenticidade reconhecidaforma unânimetodos os estágios.
Uma graça só é considerada milagre se contemplar quatro características: a instantaneidade, que assegura que a graça foi alcançada logo após o apelo; a perfeição, que garante o atendimento completo do pedido; a durabilidade e permanência do benefício e seu caráter preternatural (não explicado pela ciência).
"Minha ficha ainda não caiu. Minha mãe dizia que tinha certeza que Irmã Dulce viraria santa. É pena que ela não esteja aqui pra ver que isso está acontecendo e que o filho dela é o miraculado", diz José Maurício, que estará no Vaticano para a cerimôniacanonização.
Claudia Cristina dos Santos não estará no Vaticano, mas também é personagem central no roteiro que levou à canonizaçãoSanta Dulce. Foi ela a primeira pessoa oficialmente curada com intercessão da baiana — e seu caso passou por idêntico processoverificação.
MoradoraMalhador, no interiorSergipe, Claudia teve seu segundo filho, Gabriel,2001. Logo após o parto, na Maternidade São José,Itabaiana, a servidora pública começou a sofrer com uma forte hemorragia, que durou mais15 horas.
Numa sucessãoprocedimentos médicos, Claudia passou por três cirurgias, inclusive a retirada do útero. Nada adiantava.
O padre José Almí foi chamado para fazer a unção da enferma. Mas,vez disso, o padre, portando um santinhoIrmã Dulce, optou por reunir os familiares e amigosClaudia numa oração porvida, com pedidosintercessão da freira. De uma hora pra outra, o sangramento parou.
"Se hoje estou viva, é graças a Deus e à intercessão dela", diz Claudia.
"Irmã Dulce viveu para ajudar as pessoas e mesmo após a morte, ela segue ajudando. Eu fico feliz e muito emocionada por fazer parte dessa história. Eu estou aqui por um milagre dela. E tenho certeza que muitas outras pessoas já passaram por isso", conclui.
A trajetória da primeira santa brasileira
Maria RitaSouza Brito Lopes Pontes,breve Santa Dulce dos Pobres, nasceu26maio1914,Salvador. Filhauma famíliaclasse média, perdeu a mãe aos 7 anos, tendo sido criada pelo pai junto com quatro irmãos e irmãs.
Desde cedo, já demonstrava aptidão para a caridade e, ainda na adolescência, dava comida e fazia curativospessoassituaçãorua na portacasa,Nazaré, no Centro da capital baiana.
Apaixonada por futebol e torcedora do Esporte Clube Ypiranga — time da classe popular eenorme sucesso na Bahia no início do século XX —, Maria Rita formou-se para o magistériodezembro1932.
Dois meses depois, realiza seu grande sonho naquele momento: entra para a Congregação das Irmãs Missionárias da Imaculada Conceição da MãeDeus, no ConventoNossa Senhora do Carmo,São Cristóvão (Sergipe). Consagrada freiraagosto1933, adota o nomeIrmã Dulce,homenagem àmãe. Dali, retorna à cidade natal, onde constróitrajetóriadedicação aos mais pobres.
Em 1935, Irmã Dulce dá início a seu trabalho assistencialcomunidades carentes, sobretudo nos Alagados, conjuntopalafitas que havia na BaíaTodos os Santos, no bairroItapagipe,perfil operário.
Após criar um posto médico para moradores da região, funda1936 a União Operária São Francisco — a primeira organização operária católica do Estado, que deu origem ao Círculo Operário da Bahia.
A partirentão, a freira passa a recolher doentes pelas ruasSalvador, especialmente na região da Cidade Baixa. Durante maisuma década, ela ocupa diversos espaços da cidade com estes enfermos, tendo que sair após sucessivas expulsões.
Até que,1949, sem ter onde alojar 70 doentes, Irmã Dulce consegue autorização dasuperiora e ocupa um galinheiro ao lado do Convento Santo Antônio, do qual era integrante. Dali não mais saiu.
Sem vergonha para pedir doações por todo canto da capital baiana, Irmã Dulce foi expandindoocupação a partir do galinheiro e,1959, inaugurou no mesmo local a Associação Obras Sociais Irmã Dulce (Osid). No ano seguinte, já estava erguido o Albergue Santo Antônio, que anos depois daria lugar ao hospitalmesmo nome.
Franzina, mas cheiaenergia, a freira batiatodas as portas — do pequeno comerciante ao grande empresário. Assim, criou relações nos mais diversos espectros sociais e políticos. "Não entro na área política, não tenho tempo para me inteirar das implicações partidárias. Meu partido é a pobreza", dissecerta ocasião.
Assim, conseguia manter entre os doadores das Osid nomes como o do empresário Mamede Paes Mendonça, do banqueiro Ângelo Calmon e dos ex-governadores da Bahia Lomanto Júnior, Juracy Magalhães e Antônio Carlos Magalhães. O ex-presidente José Sarney também era seu fiel doador e,1988, chegou a indicar Irmã Dulce para o Prêmio Nobel da Paz.
A freira baiana — agora santa — morreu no dia 13março1992, aos 77 anos, no mesmo quarto do Convento Santo Antônioque dormiu por maiscinco décadas.
Hoje, a entidade criada por ela é um dos maiores organismossaúde do Brasil e oferece atendimento 100% gratuito, mantendo-se atravésrepasses do Sistema ÚnicoSaúde (SUS), convênios estatais, vendaprodutos e doaçõesempresas e pessoas físicas.
Há, no entanto, um déficit entre a receita que chega pelos repasses do SUS e as despesas geradas pelos atendimentos. Por isso, somente2018, o balanço das Osid foi fechado com um prejuízoaproximadamente R$ 11 milhões.
"O ano passado foi bem difícil. As doações são o que nos socorrem e amenizam um pouco a situação", diz Sérgio Lopes, assessor corporativo da entidade. Segundo ele, as doações correspondem a 5% da receita.
De janeiro a agosto deste ano, apontam os relatórios das Osid, o prejuízo da operação ficouR$ 5,2 milhões, com estimativachegar pertoR$ 8 milhões até dezembro.
"Nossa expectativa é ir diminuindo gradativamente esse prejuízo com o aumentorepasses e doações, especialmente com a canonização. Já percebemos esse movimento após o anúncio do Vaticano. Tem gente que não pode doar dinheiro, mas oferece trabalho voluntário, prestaçãoserviços. Dizemos sempre que o maior milagreIrmã Dulce é este complexo, que só fez crescer mesmo apósmorte".
Anualmente, as Osid realizam cerca3,5 milhõesatendimentos ambulatoriais na Bahia, somando o complexoSalvador e unidades públicassaúde geridas pela organização no interior do Estado.
No local onde havia o antigo galinheiro, hoje fica uma praçaconvivência do Hospital Santo Antônio, que realiza mais2 mil atendimentos por dia e 12 mil cirurgias anuais. Ali, as estruturas erguidas por Irmã Dulce seguem ativas ao ladounidades recentes, como aAlta ComplexidadeOncologia.
Neste mesmo complexo, trabalham 3 mil pessoas, incluindo 300 médicos, alémcerca300 voluntários.
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