TragédiaBrumadinho: os 30 minutosque lama avançou sem alerta:

Crédito, BBC News Brasil

Legenda da foto, 'Pensei: como pode, coisas que estavam lá há tantos anos, acabaramsegundos', diz o eletricista José ValérioJesus

Quando a espessa ondalama desaguou no rio Paraopeba, havia percorrido nove quilômetrosvale, soterrando centenaspessoas pelo caminho. Até a manhãsexta-feira, 8fevereiro, havia 157 mortes confirmadas e 182 pessoas seguiam desaparecidas.

Seguindo o rastro da avalanche pelos principais pontos atingidos, a BBC News Brasil refaz o trágico percurso dos quase 12 milhõesmetros cúbicoslama pelo relatosobreviventes.

Procurada, a Vale afirmou,nota, que o planoemergência foi construído com baseestudos técnicoscenários hipotéticos para o casoum rompimento. "Disse ainda que a estrutura tinha todas as declaraçõesestabilidade aplicáveis e passava por constantes auditorias externas e independentes, alémsistemavídeo-monitoramento, sistemaalerta atravéssirenes e cadastramento da população à jusante."

Segundo a empresa, foi realizado o simulado externoemergência16junho2018, sob coordenação das Defesas Civis e com o apoio da Vale, e o treinamento interno com os funcionários23outubro2018.

Área operacional eprodução da mina do corrégo do Feijão

Quando a barragem se desfez, a lama vazou a uma velocidade21,3 metros por segundo, pouco mais76 quilômetros por hora. A avalanche atingiu a área operacionalsegundos.

Ela fez uma curva e seguiudireção a onde estava o eletricista José ValérioJesus,49 anos, perto do terminalcarregamento do trem. Funcionáriouma empresa terceirizada, José estava participando da instalaçãoum equipamentocombate a incêndio.

No final da manhã, perto das 11h, pegou o ônibus da Vale que leva funcionários da área operacional para a área administrativa, onde ficava o refeitório. José almoçou e, ao meio-dia, já estavavolta ao canteiro onde trabalhava.

Crédito, Adriano Machado/Reuters

Legenda da foto, Avalanchelama percorreu 9 km até chegar ao rio Paraopeba

"De repente, ouvi um estrondo, um barulho muito esquisito, mesmo. Vi muita poeira e o pessoal da Vale saiu correndo. Eu fui atrás, seguindo eles", conta o eletricista, emcasa, maisuma semana depois da tragédia.

Ele diz que,onde trabalhava, era possível ver os alarmesemergência, mas, naquele dia, eles não soaram.

A estrada pela qual José e outros colegas sobreviventes correram não era uma rotafuga prevista pela Vale, mas o levou a um ponto alto, do qual ele assistiu o avanço da lama.

Quando chegou lácima, ela já havia soterrado toda a área administrativa, onde estavam váriosseus colegas.

"Quando tudo acabou, não conseguia reconhecer mais nada. Pensei, 'como pode, coisas que estavam lá há tantos anos, acabaramsegundos'."

"Isso (o trauma) vai levar anos para passar. Tem diasque a gente acorda bem, tem diasque não", conta ele, que está fazendo um tratamento psicológico oferecido porempresa.

Área administrativa

A lama desceu o valedireção à área administrativa, logo abaixo da operacional. Segundo os bombeiros, levou um minuto e meio para atingir o setor.

Marco Antônio Ribeiro da Silva, o Marcão, técnico da Vale, tinha acabadoalmoçar e estava sentado na frente do refeitório, mexendo no celular e cumprimentando as pessoas que entravam.

"Foiuma hora para outra. Ouvi um barulhomar, olhei para cima e vi muita água descendo pelo pé das árvores. Logo atrás vinha uma ondalamadois postes e meioaltura, misturada com tudo que estava pegando, galpão, telhas. Eu clamei, 'Jesus, misericórdia'", conta ele, que é evangélico e frequenta uma igreja batista.

Crédito, MAURO PIMENTEL/AFP/Getty

Legenda da foto, Ainda há quase duas centenasdesaparecidos na tragédia

"Corri ladeira abaixo, com a lama vindo atrásmim. Caí uma vez, caí outra vez, pensei que ali acabaria, mas levantei. Passei uns três segundos olhando para os meus amigos correndo, olhando para a lama. Vi ela carregando caminhonetes, todas vazias, porque o pessoal estava almoçando naquela hora. Deus me segurou naquele momento ali para dar tempo da caminhonete chegar."

Ele ouviu alguém gritar "caminhonete, caminhonete!". Em seguida, se agarrou à canelaalguémestava na caçamba. Até agora não sabe quem era. A picape estava lotadagente dentro e na carroceria.

"O motorista fez a rotafuga direitinho. Ele foi seguindo, passando por quebra-molas, e eu pendurado ali atrás. Já não tinha mais o risco da avalanche, estávamos mais longe, mas ninguém sabia onde aquilo (a onda) ia parar. O barulho continuava, e a gente achava que ia nos pegar. Passamos pelo viaduto, que depois caiu. E chegamos num ponto mais alto, aí o carro parou."

Ali, Marcão ligou para a família, contou que estava bem e orou. "Agradeci a Deus e pedi a ele discernimento para ajudar as pessoas." Passou a colaborar com os bombeiros no transportesobreviventes e materiais. Do alto, viu o curso da lama e comentou com um colega, "está acabando uma região". Naquela noite, não dormiu. "Eu ficava vendo aquelas mesmas imagens [da lama chegando] sem parar."

Pousada

A Pousada Nova Estância Inn ficava mais abaixo no vale, perto do complexo mineiro. Foi a próxima grande estrutura a ser varrida pela lama. O charmoso hotel costumava hospedar turistas que vinham a Brumadinho para conhecer Inhotim, o famoso museu a céu abertoarte contemporânea que fica na região.

A onda que desceu da barragem foi tão violenta que a pousada se deslocoulugar, segundo o CorpoBombeiros. O planoemergência da Vale previa que a lama chegaria aliquatro minutos.

Jefferson Firmiano,21 anos, diz que trabalhava no jardim. Ele conta que tinha acabadoalmoçar, numa casinha logo abaixo da estrutura principal da pousada. "Eu tinha o costumealmoçar do ladofora, na varanda. Se estivesse lá dentro, a lama teria me carregado", diz ele.

Crédito, BBC News Brasil

Legenda da foto, Área próxima à localização da Nova Estância Inn: pousada foi varrida pela lama

"Olhei para cima, vi água descendo e gritei para o meu colega, 'rompeu a barragem!' Saí correndo morro acima e só parei quando vi que a lama estava longe. Lá no alto encontrei o pessoal da Vale que tinha sobrevivido", conta Jefferson.

Eles ficaram no alto da encosta, esperando socorro, até anoitecer. Nos dias seguintes, Jeferson voltou ao lugar onde ficava a pousada. Encontrou apenas a pontaum alicerce da casa principal.

A maior parte dos funcionários e hóspedes estão mortos ou desaparecidos, como cinco membros da mesma família, entre eles Luiz Taliberti Ribeiro enoiva, Fernanda DamianAlmeida, que está grávida. Eles moram na Austrália e haviam acabadochegar para conhecer o Inhotim.

Parque da Cachoeira

A lama continuou descendo, rumo ao rio Paraopeba, passando por propriedades rurais e áreasmata densa. O último lugar com muitas potenciais vítimas a ser atingido antes que a lama desaguasse no rio foi o bairroParque da Cachoeira. Os bombeiros estimam que a avalanchedetritos tenha chegado ao localmenosmeia hora.

Localizado na zona ruralBrumadinho, fica a cercadois quilômetros do centro e cercanove quilômetros da barragem, nas imediações do rio.

Há alarmesemergência do bairro, mas eles não soaram, dizem moradores. Depoister encontrando tantos obstáculos pelo caminho - como árvores e edificações -, ali a lama corria mais lentamente do quepontos anteriores, o que evitou uma tragédia maior ainda, explica o tenente Pedro Aihara, porta-voz do CorpoBombeiros.

No bairro, a onda atingiu dezenascasas e plantações. Segundo moradores, muitas pessoas têm sítios ali, que frequentam nos finssemana.

Crédito, CorpoBombeirosMinas / Divulgação

Legenda da foto, A área atingida pelos rejeitos,imagem feita pelo CorpoBombeirosMinas Gerais

Um deles pertence a Mauro Tadeu Soares. Na sexta-feira do "crime", como Mauro descreve o rompimento da barragem, ele estavaUbatuba,São Paulo, com a mulher e os filhos. Ele conta à BBC News Brasil o que lhe relataramirmã, o marido dela emãe,85 anos, que estavam na casa.

A mãe depois contou ao filho que estava almoçando na mesa da piscina naquele momento. O cunhado viu uma árvore grande cair e disse, "deve ser o trem (da Vale, que passa perto) que virou".

No domingo anterior, a vizinha tinha dito à mãeMauro que a Vale pretendia fazer um treinamentoevacuação. Elas comentaram que, se a barragem estourasse, tudo ficaria soterrado. Quando viu a árvore caindo, a mãe entendeu o que estava acontecendo e falou, "não, foi a barragem que virou. Vamos embora."

"Meus parentes depois me contaram que a cena parecia um tsunami. Árvores se quebravam como se fossem galhos. Eles ouviam um barulhoágua correndo", conta Mauro.

A mãe pegou a bengala e foi indodireção ao portão, com a ajuda do cunhado. Ele voltou para buscar a mulher e o cachorro. Nesse meio tempo, a vizinha, que estava fugindocarro, viu a mãeMauro no portão, voltou e a buscou.

Quando entroucasa novamente, dias depois, a família viu que a lama subiu no muro e parou. "Foi a mãoDeus que parou a lama", disse a mãeMauro.

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