Nascida da remoção335 betfavelas, Vila Kennedy vive ‘déjà-vu’ após virar bairro-piloto335 betintervenção no Rio:335 bet

Família com crianças passa335 betfrente a veículo militar

Crédito, AFP

Legenda da foto, Vila Kennedy foi eleita como 'laboratório' da intervenção federal na segurança pública

Assim como boa parte dos moradores da Vila Kennedy, Ademar tem lembranças vivas do período da remoção. O conjunto habitacional construído entre a área rural335 betCampo Grande e as indústrias da região335 betBangu era parte335 betum projeto pioneiro da política335 betremoção335 betfavelas empreendida pelo então governador da Guanabara, Carlos Lacerda.

A BBC Brasil conversou com moradores antigos da Vila Kennedy para saber como enxergam políticas do Estado na comunidade, ontem e hoje.

A comunidade passou as últimas semanas nos holofotes no Rio por ter sido eleita uma espécie335 bet"laboratório" da intervenção federal na segurança pública, com a promessa335 betque o modelo335 betação desenvolvido ali será levado a outras partes da cidade.

Ademar Damasceno, morador da Vila Kennedy, no Rio

Crédito, Arquivo pessoal

Legenda da foto, Família335 betAdemar Damasceno foi a terceira a chegar à Vila Kennedy:

No início dos anos 1960, o conjunto habitacional foi uma vitrine das políticas públicas do então governador. "Era a menina dos olhos do Lacerda", diz morador e historiador da comunidade Alex Belchior, contando que, na época, o presidente do Senegal e o rei da Bélgica foram levados para conhecer a Vila Kennedy.

Hoje, soldados vêm fazendo incursões diárias no bairro como parte da intervenção federal, com rondas nas ruas e presença do amanhecer até o início da noite, enquanto mais tarde o policiamento fica a cargo da Polícia Militar.

A comunidade é dominada pelo tráfico e recebeu,335 bet2014, a última Unidade335 betPolícia Pacificadora (UPP) implantada pelo governo estadual do Rio.

Já se passaram quase dois meses desde que a intervenção federal foi decretada pelo presidente Michel Temer. As ações iniciais foram marcadas pela retirada335 betbarricadas instaladas por traficantes nas ruas e pela polêmica identificação335 betmoradores que entravam e saíam da comunidade, fotografando seus documentos para levantar se tinham fichas criminais.

Agora, os militares planejam sair da Vila Kennedy até o fim335 betabril - deixando nos primeiros habitantes levados para lá nos anos 1960 uma sensação335 betdéjà-vu com o mais recente surto335 betatenção por parte do Estado.

Os moradores ouvidos pela BBC Brasil dizem ter clareza335 betque a atenção é temporária e que a ação é política. "É para inglês ver", considera Ademar.

"Gostaríamos que o Estado entrasse aqui com ação social, respeito e dignidade ao morador. Não é com armas que se resolvem os problemas da comunidade. É com inteligência e investimentos", considera.

Aliança com Kennedy

A princípio, a Vila Kennedy não se destaca335 betoutros conjuntos habitacionais que margeiam a Avenida Brasil, um dos principais vias e acessos ao Rio.

Mas quem chega ao bairro tem335 betcara uma pista sobre335 bethistória particular. Uma réplica da Estátua da Liberdade saúda os visitantes335 betuma335 betsuas entradas, instalada bem no meio da Praça Miami. Foi um presente dos Estados Unidos - esculpida pelo francês Frédéric Auguste Bartholdi, criador da estátua original, e cercada335 betuma grade para335 betproteção.

As vilas Kennedy, Aliança e Esperança foram construídas com injeção335 betrecursos do governo americano no início dos anos 1960 para receber famílias desenraizadas335 betfavelas da zona sul e norte do Rio - como o Morro do Pasmado,335 betBotafogo; a Favela do Esqueleto, no Maracanã; e a Praia do Pinto, na Lagoa. A maioria, como a335 betAdemar Damasceno, levada contra a própria vontade.

Foto histórica da Vila Kennedy
Legenda da foto, Crianças ao lado da réplica da Estátua da Liberdade presenteada pelo governo americano na Vila Kennedy,335 bet1964 | Foto: Arquivo Público do Estado do Rio335 betJaneiro

Os recursos vieram da chamada Aliança para o Progresso, programa do então presidente norte-americano John F. Kennedy para ajudar a erradicar a pobreza na América Latina - mas que na verdade buscava exercer influência para conter a expansão do comunismo após a revolução cubana, explica o historiador Mario Brum, professor da Faculdade335 betEducação da Baixada Fluminense da UERJ.

A Vila Kennedy se chamaria Progresso - mas acabou sendo batizada335 bethomenagem ao presidente americano após seu assassinato,335 bet1963.

O Rio acabara335 betperder o status335 betcapital federal e Lacerda procurava uma nova vocação para fazer da Guanabara um modelo para o Brasil. O plano era industrializar a Guanabara, construir rodovias e criar polos335 bettrabalho nas periferias, gerando emprego para os moradores que estavam sendo removidos das áreas mais nobres e centrais da cidade.

E os conjuntos habitacionais eram vendidos como uma chance para que os favelados, estigmatizados, mudassem335 betvida, diz Brum.

"A visão da favela era marcada por preconceito. O ambiente era considerado sujo, pernicioso, e o favelado visto como vagabundo, promíscuo, marginal", lembra o historiador, especialista na história das remoções335 betfavelas no Rio.

"O discurso335 betLacerda era que se tirasse as pessoas da favela, poderiam se desenvolver335 betum ambiente melhor e mudar335 betvida, e que teriam uma promoção social ao se tornar proprietários335 betuma casa."

O historiador Alex Belchior

Crédito, Julia Dias Carneiro/BBC

Legenda da foto, Alex Belchior335 betfrente a réplica da Estátua da Liberdade: segundo o historiador, Vila Kennedy se tornou 'menina dos olhos' do ex-governador da Guanabara Carlos Lacerda

Em entrevista ao jornal O Globo na época, Sandra Cavalcanti, que coordenava a Secretaria335 betServiços Sociais335 betLacerda e delineou335 betpolítica335 betremoções, definiu a transferência dos moradores para a Vila Kennedy como "a primeira revolução social" no Brasil. Afirmou que os "antigos favelados" receberiam ali "escolas, serviço social e condições335 bethigiene, passando verdadeiramente335 betum século para o outro335 betquestão335 betcondições335 betvida."

A remoção se concretizou; as benfeitorias prometidas à época, não. "O Estado nunca esteve presente. Tudo que conseguimos aqui foi com muita luta", resume Ademar.

A chegada

Ademar lembra que335 betimpressão ao chegar à Vila Kennedy naquele dia 18335 betjaneiro335 bet1964 foi "a pior possível" - mesma data, aliás,335 betque os comentários335 betSandra Cavalcanti louvando a "revolução social" foram publicados no Globo, e apenas dois dias antes335 beta comunidade ser inaugurada por Lacerda.

A casa era335 betalvenaria, ao contrário do barraco335 betmadeira onde335 betfamília vivia, no Parque Proletário da Gávea, numa área que até pouco tempo atrás era parte do estacionamento da PUC-Rio e que hoje é a estação335 betmetrô que aguarda recursos para ser finalizada na Gávea.

Afora a vantagem das paredes sólidas, a casa não tinha luz, nem água encanada, nem porta, nem janela. E não havia, sobretudo, uma comunidade a seu redor.

"Não tinha um comércio para comprar comida. Passamos muita fome no início. Trataram a gente pior do que animal", diz Ademar. Para ele, Carlos Lacerda foi um "representante dos ricos, da alta sociedade", cuidando335 betpromover a valorização imobiliária das regiões mais abastadas do Rio.

Soldado335 betfrente a muro pichado na Vila Kennedy

Crédito, AFP

Legenda da foto, Como parte da intervenção federal na segurança, soldados fazem incursões diárias na Vila Kennedy

"Foi o golpe da elite. Tiraram a gente da Gávea sem nos pagar indenização nenhuma e nos botaram na Vila Kennedy para pagarmos prestações. Hoje a Vila Kennedy evoluiu, o povo foi se aprimorando. Mas foi na base da sobrevivência. Foi com muito sacrifício."

Os irmãos passaram a se lembrar com saudade das idas para a praia do Leblon e "do pouco335 betcomida que sobrava das madames", que vira e mexe a mãe conseguia levar para casa quando moravam na Gávea. Na Vila Kennedy, passaram a conviver menos com a mãe, que tinha que dormir no serviço na zona sul. Ademar logo teve que começar a trabalhar para ajudar335 betcasa, ganhando trocados como engraxate ou vendendo balas no trem.

Quando seus pais tiveram a nona criança, já não havia dinheiro para alimentar todos. "A minha mãe teve que doar dois filhos, porque não dava para criar. A miséria era muito forte". A caçula da família foi adotada pela senhora para quem a mãe trabalhava assim que largou o peito. "Essa senhora era doida para ser mãe, mas não conseguia", conta Ademar.

Unidos pela remoção

As fileiras335 betcasas foram sendo ocupadas aos poucos, com a chegada335 betfamílias removidas335 betfavelas distantes umas das outras. A esposa335 betAdemar, por exemplo, veio da favela que ficava na Praia335 betRamos, na zona norte. Em breve chegaram moradores das favelas do Esqueleto, no Maracanã, e do Morro do Pasmado,335 betBotafogo, entre outras comunidades.

O Esqueleto, no local ocupado hoje pela UERJ (Universidade do Estado do Rio335 betJaneiro), tinha esse nome por ter sido a estrutura335 betum hospital que nunca foi concluído, e cujo arcabouço, com quatro andares, abrigou mais335 betduas mil famílias.

Uma delas era a335 betAssis Braga,335 bet78 anos, funcionário público aposentado e morador da Vila Kennedy há 53 anos.

Ele fala com saudade da adolescência passada logo ao lado do estádio do Maracanã, "novinho", inaugurado para a Copa do Mundo335 bet1950.

"Era uma comunidade muito bem formada. Ninguém veio para cá satisfeito, mas não tinha outra saída. Carlos Lacerda tirou todos os moradores335 betlá", diz Assis, que foi removido aos 25 anos, já casado e pai335 betquatro crianças.

Militar ao lado335 bethomem335 betbar na Vila Kennedy

Crédito, AFP

Legenda da foto, Vila Kennedy surgiu como bairro 'modelo' sob o governo335 betCarlos Lacerda e hoje é 'laboratório' para intervenção federal na segurança do Rio

Assis continuaria a expandir a família na Vila Kennedy, contando hoje 11 filhos, 26 netos, 18 bisnetos e um tataraneto. Foi um dos fundadores da Unidos da Vila Kennedy, escola335 betsamba da comunidade, no final dos anos 60.

Apesar das realizações que teve no âmbito pessoal, considera a Vila Kennedy uma das grandes vítimas do abandono do Rio - um símbolo335 betpromessas não cumpridas e335 betpolíticas desiguais para uma cidade desigual.

"Iam fazer fábricas aqui para poder empregar a comunidade, mas nunca aconteceu. Os governos nunca olharam para a Vila Kennedy como deveriam olhar. O Lacerda só olhou pela zona sul. Tirou as favelas335 betlá mandou os moradores para os subúrbios. Fez aquilo para construir prédios para os que têm dinheiro, tirando a pobreza que estava enfeando", considera. "Tirou os pobres para botar os ricos."

Assis reclama335 betquem chama o local335 bet"favela". "Nós pagamos todos os tributos que o Estado e o município cobram. Temos coleta335 betlixo, água, pagamos IPTU. A Vila Kennedy não é favela." No ano passado, a Vila Kennedy foi designada como bairro pelo prefeito Marcelo Crivella - até então, era um sub-bairro335 betBangu.

Tráfico e violência

De acordo com o coronel Carlos Cinelli, porta-voz do Comando Militar Leste e do comando conjunto das operações da intervenção, a atuação dos militares na comunidade tem o objetivo335 betestabilizar a área, tirar a liberdade335 betcirculação335 betorganizações criminosas e permitir a entrada335 betserviços municipais e estaduais - como o mutirão335 betação social realizado no fim335 betmarço, com mais335 bet13 mil atendimentos (de emissão335 betdocumentos a vacinação e atendimento odontológico).

Maria das Dores e Assis Braga, moradores da Vila Kennedy

Crédito, Valdeci Santos

Legenda da foto, Maria das Dores e Assis Braga foram removidos da Favela do Esqueleto e passaram a viver na Vila Kennedy

A presença dos militares também possibilita que policiais sejam deslocados para fazer módulos335 betreciclagem, ressalta Cinelli, como parte do esforço para incrementar a capacidade operacional das polícias.

Com a saída335 betcena dos militares no fim do mês, porém, Cinelli admite que há risco335 betque as organizações criminosas voltem para as ruas. Ele diz que caberá à Polícia Militar conter esse recrudescimento, mas que as Forças Armadas estarão a postos para voltar se necessário.

"A Vila Kennedy não será abandonada pelas forças335 betsegurança. Vamos somente colocar no papel335 betpolícia aqueles vocacionados para isso", diz.

'A Vila Kennedy era para ser um exemplo'

Maria das Dores Arruda,335 bet76 anos, conhecida por todos da Vila Kennedy como Dona Fia, também veio da Favela do Esqueleto. Mineira335 betBarbacena, havia ido morar na favela quando se casou com um carioca. Para ela, a mudança foi bem-vinda. A família morava do lado335 betum valão, e os filhos, miúdos, desenvolveram bronquite asmática. "Os médicos diziam que eles só ficariam bem quando saíssem335 betlá, porque a sujeira, a umidade, o ambiente abafado tão perto do esgoto ocasionava o problema", lembra.

A esperança se realizou na saúde dos filhos, que melhorou. "Mas achávamos que teríamos uma vida melhor335 bettudo. Quando os Estados Unidos deram dinheiro para fazer isso aqui, era para promover um outro tipo335 betvida. E se não veio, não foi por culpa da comunidade, foi por culpa335 betquem nos trouxe prometendo uma coisa e não cumpriu", diz Dona Fia.

"Hoje335 betdia a Vila Kennedy era para ser um exemplo! E é o que está aí agora", lamenta. "Os políticos só vêm aqui pedir voto. Mas graças a Deus eu não voto mais."

A falta335 betinfraestrutura urbana e335 betempregos na região trouxeram dificuldades e são um problema ainda hoje. E, ao longo do tempo, a violência e o domínio do tráfico se somaram aos problemas estruturais.

De acordo com o aplicativo Fogo Cruzado, nos primeiros cem dias335 bet2018, a Vila Kennedy teve a terceira maior ocorrência335 bettiroteios na região metropolitana no Rio, com 63 ocasiões335 bettrocas335 bettiros ou disparos335 betarmas335 betfogo. Ao longo do mês335 betmarço, mesmo sendo "laboratório" da intervenção federal, houve 22 tiroteios - o quarto maior número entre comunidades com UPPs.

"A presença do Estado está sempre chegando na favela", diz o historiador Mario Brum, com ênfase no gerúndio.

"A situação se repete historicamente. O Estado 'chega à favela' com Lacerda. Depois com (Leonel) Brizola. Depois com Favela-Bairro (programa335 beturbanização do Cesar Maia). Depois com as UPPs. E agora com a intervenção militar", afirma.

"Os moradores são muito descrentes disso. Já viram esse filme várias vezes. Anuncia-se uma política com muito alarde e pirotecnia. Mas passa-se um tempo e na prática nada muda. É mais um mito", considera o historiador.

Na entrada da Vila Kennedy, Assis comenta sobre os soldados fazendo o patrulhamento335 betrotina. "Sabemos que isso é temporário. Eles não vão ficar eternamente." Para ele, a comunidade precisa do que sempre precisou: saúde, educação, cultura, creches, serviços médicos.

"Se tivéssemos metade do que os bairros da zona sul têm, seria muito bom para nós. Seria muito bom para toda a cidade", diz Assis.