Víciocelular chega a consultórios e já preocupa médicos no Brasil:
Destaque para o Brasil
O Brasil tem 120 milhõesusuáriosinternet, o quarto maior volume do mundo, atrásEstados Unidos, Índia e China, mostra relatório da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD). Em 2016, o país foi considerado o segundo que mais usa o WhatsApp,um levantamento do Mobile Ecosystem Forum (MEF). O primeiro lugar ficou com a África do Sul.
Embora não haja indicadoresquantos,meio a esse batalhão, são considerados dependentes, estudos dão pistas sobre os riscos.
Uma pesquisa que a consultoria Deloitte divulgououtubro sobre o usocelular no dia a dia do brasileiro - com 2 mil entrevistados - mostra, por exemplo, que doiscada três pais dizem acreditar que seus filhos usam demasiadamente o smartphone. Mais da metade dos que estãoum relacionamento veem excessos por parte dos parceiros e 33% admitem ficar onlinemadrugada para ver mídias sociais.
"Temos, comparativamente a outros países, uma quantidadetempouso da tecnologia bastante expressiva e aumentando", alerta Nabuco, também autor do livro Internet addiction in Children and Adolescents (em tradução livre: O víciointernet entre crianças e adolescentes).
"Detox digital"
A preocupação vai além, no entanto, do tempo gasto. Se concentra, principalmente, na relação do usuário com esse tipoferramenta, diz Eduardo Guedes, pesquisador e membro do Instituto Delete - primeiro núcleo do Brasil especializado"desintoxicação digital" na Universidade Federal do RioJaneiro (UFRJ).
Essa relação, segundo ele, pode ser divididauso consciente, quando o virtual não atrapalha a vida real; uso abusivo, quando atividades online são priorizadasdetrimento das offline; e uso abusivo dependente, quando o virtual atrapalha o real e há perdacontrole.
O Instituto pesquisa o impacto das tecnologias desde 2008 e já ofereceu atendimento gratuito a cerca500 pessoas, nem todas com dependência diagnosticada.
Frases como "desliga o computador e vai dormir", "sai do Face e vai trabalhar", "fecha o WhatsApp e come o jantar" e "larga o celular para não bater o carro" são usadas para chamar a atenção no site que divulga os serviços.
Narcisismo?
A sensaçãoprazer despertada nos usuários é uma das possíveis explicações para a dependência. "Falarsi gera um prazer equivalente a se alimentar, ganhar dinheiro ou fazer sexo. E90% do tempo as pessoas estão falandosi nas redes sociais, com feedback instantâneo", complementa Guedes. "Em uma conversa normal,30% do tempo normalmente se fala sobre si".
Os dados sãouma pesquisa da UniversidadeHarvard segundo a qual esse comportamento gera um mecanismorecompensa no cérebro, graças à liberaçãodopamina, alémendorfina, ocitocina e serotonina, hormônios ligados ao prazer.
Mas esse prazer é temporário, observa Guedes. "E vira problema quando passa a ser a fonte exclusivaprazer, quando a pessoa passa a viver para postar a foto e deixaaproveitar o momento".
Gianna Testa, integrante da Associação BrasileiraPsiquiatria (ABP), explica que o "sistemarecompensa" do usuário é muito afetado por estímulos - ou pela ausência deles - criados pelo reconhecimento virtual nas redes sociais, como medidaaceitação e sucesso.
O efeito seria comparável ao da dependênciasubstâncias químicas no sistema nervoso central.
"Hoje é muito claroadolescentes, por exemplo, o quanto a autoestima depende do númerocurtidas, do sucesso que eles têm nas redes sociais", observa a especialista, também sócia da ASEAT, uma assessoriasegurança e educaçãoalta tecnologia,Brasília.
Como medir o vício?
Segundo Guedes, um conjuntocinco critérios são observados para avaliar se o uso da tecnologia deixouser saudável. O primeiro deles mede quão importante o celular se tornou para trazer a sensação"refúgioprazer ou segurança". Quanto maior a importância da ferramenta, mais grave a condição do usuário.
"Uma pessoa que terminou um casamento, que está com baixa autoestima, por exemplo, muitas vezes posta uma foto e isso ajuda a melhorar. É um gatilho positivo. Mas, se ela só trabalha a autoestima por meio da rede, isso pode gerar isolamento, desprezo pelas relações na vida real e até depressão", exemplifica. Em tímidos, o uso abusivo pode levar à fobia social.
Outro termômetro é a relevância da tecnologia no dia a dia. Ir ao banheiro ou para a cama, por exemplo, e levar o celular junto pode parecer inofensivo, mas,alguns casos, indica distúrbio.
Outros dois indicadores na avaliação do vício são se a pessoa tolera eventos ou ambientesque teráficar desconectada e se,caso"abstinência" no uso do celular, a experiência se torna insuportável, com efeitos físicos e psicológicos sobre o indivíduo. Pacientes com o distúrbio relatam temorficarem distantes das redes e mau humor, mãos tremendo, ansiedade, agressividade e tristeza quando a falta da tecnologia se concretiza.
"Há também quem use tanto o celular que, quando está sem, ele precisa ter algo nas mãos, para ficar mexendo", diz Guedes. Segundo ele, o efeito é semelhante ao vivido por ex-fumantes, que sentem a necessidademovimentar uma caneta entre os dedos para simular os gestos que se acostumaram a fazer quando fumavam.
O quinto critério mede o quanto a dependência causa conflitos na vida real. É o caso, por exemplo,filhos que reclamam a atenção dos pais dividida com a internet até que eles próprios começam a encontrar nas telas refúgio, gerando,consequência, novos conflitos no ambiente familiar.
É algo que Luísa viveu e vive.
"Minhas filhas já não reclamam tantomim. Agora, eu é que reclamo delas. Mas isso quando não estamos todos mergulhados no celular, eu, meu marido e minhas duas filhas, cada um no seu mundo. Essa cena é comum na nossa casa,restaurantes... Às vezes tento botar ordem na casa, pegar os celulares, mas não dura muito. Não tem atrapalhado estudos, carreiras, mas, sem dúvida, nossa vida familiar. Eu, por exemplo, frequentemente, deixo o celular embaixo do travesseiro e volto a ele assim que meu marido dorme. Sinto faltaar, um certo nó na garganta quando estou longe do meu aparelho", conta.
Jogos online
Não são só os dependentescelular que estão sujeitos a esses sintomas. "Muito estresse, faltaconcentração e uma ansiedade terrível" pegavamcheio o estudante Antônio*,25 anos, quando tentava se livrar sozinho da vontade descontroladajogar.
O jogo virou parte davida quando tinha 4 anosidade. Movido por um espíritocompetitividade "muito grande", acabava fisgado por computador, celular, videogame e o que mais permitisse entrar na disputa. Ficou dependente.
"Não almoçava, não estudava e preferia ficarcasa", diz. Para Antônio, o problema ficou evidente apenas quando pessoas próximas passaram a observar que "a convivência estava difícil" e o assunto virou "motivoestresse". E tambémseparação. "Eu jogava escondido da minha esposa, tinha dificuldadeconversar e nosso relacionamento acabou terminando". O casal chegou a fazer terapia e reatou. Há um ano, teve o primeiro filho. Ele está na terceira tentativaparar.
"80% dos indivíduos que são dependentesvideogame,internet, apresentam depressão", diz Nabuco.
Segundo o especialista, um grupoestudiosos defende que a dependência tecnológica seria um sintoma secundárioum indivíduo que já tem depressão, transtorno bipolarhumor e fobia social.
Outros acadêmicos argumentam que embora haja a coexistênciaoutro transtorno psiquiátrico, estamos lidando, certamente, com uma nova "classificação diagnóstica". Seria possível, portanto, que a tecnologia cause e não apenas agrave um problema.
Jovens e crianças: público mais vulnerável
Jovens e crianças são mais vulneráveis, diz Cristiano NabucoAbreu, porque só atingem a maturação total do cérebro a partir dos 21 anos e, com isso, demoram mais a desenvolver funções como o "freio comportamental" - por meio do qual seria possível evitar situaçõesrisco ou atos por impulso.
Uma das preocupações dos especialistas é o acesso precoce aos gadgets. "Muitos pais entregam o celular ou o tablet ao filho, usam os dispositivos como babá eletrônica, e acham bonito. Mas quanto mais precoce esse contato, mais chancesatraso no desenvolvimento da criança".
O caso mais chocante que Nabuco atendeu foi ouma mãe descrevendo que o filho não almoçava e não dormia, por exemplo, sem estar com o celular. "O problema maior era quando eles iam ao shopping, o menino largava a mão dela e corria para balconistas nas lojas para pedir colo e então acessar o teclado dos computadores que ali estavam. Sabe quantos anos ele tinha? 2 anos e 4 meses".
A dependência mais comum entre os meninos é o usojogos eletrônicos. Nas meninas, principalmente adolescentes, a dependênciaredes sociais é mais comum.
São Paulo e Rio oferecem tratamento gratuito
Em São Paulo e no RioJaneiro há atendimento gratuito para a população, no Hospital das Clínicas da USP e no Instituto Delete.
"O grande objetivo não é fazer com que as pessoas se livrem da tecnologia. O que a gente quer é que elas retomem o controle desse uso", diz Nabuco, do Hospital das Clínicas.
Oitocada dez pacientes, segundo ele, chegam ao final do tratamento sem sintomas. Os demais, muitas vezes reiniciam a terapia.
O tratamento envolve reuniõesgrupo para conversas com psicólogos e psiquiatras e, se for preciso, o usomedicamentos para combater transtornos associados à dependência.
No Instituto Delete, o método usado envolve desde a identificação das raízes do problema até a adoçãotécnicasrespiração e "ressensibilização". "O foco não é proibir o uso, mas criar estratégias para a pessoa ter prazeratividades na vida real", complementa Eduardo Guedes.
A busca por mais equilíbrio envolve tratamento e também uma consciência maior do problema. Mariana* iniciou terapia para "desintoxicar". Faz sessõesgrupo por uma hora e meia, uma vez por semana. "Considero que percorri uns 40% desse caminho,um processo lento e com recaídas", calcula.
Um pesquisador do tema disse à BBC Brasil ter sido procurado por operadorastelefonia celular que estariam preocupadas com o uso abusivo dos aparelhos ebuscapossíveis soluções.
Procuradas pela BBC Brasil, Claro, Oi, Vivo e TIM - as principais operadorastelefonia no país - não confirmaram se planejam medidas como enviar mensagens a clientes para alertar sobre possíveis riscos do uso abusivo, assim como ocorre na indústriacigarros e bebidas. Por meio do SindiTelebrasil, sindicato que representa o setor, afirmaram, no entanto, que "sempre defenderam o uso consciente desses serviços, respeitando a liberdadeescolha, as necessidades, convicções, crenças e hábitoscada indivíduo".
O Ministério da Saúde informou que o Sistema ÚnicoSaúde (SUS) oferece tratamento integral e gratuito para todos os tipostranstorno mental, incluindo depressão e víciosálcool e outras drogas, mas que não tem dados específicos sobre os problemas ligados à tecnologia.
*Os nomes reais dos pacientes entrevistados foram trocados para protegerprivacidade.