Uma atleta baleada na cabeça e outras histórias do 'inferno' da insegurança no Rio às vésperas dos Jogos:
Por volta das 5h00 da manhã, Cotta estava dirigindo sozinhaum pequeno carro amarelo para ajudar na empresatransportesseu pai, que, aos 63 anos, luta contra um câncer.
Logo, ela se deparou com um grupoassaltantes armados que haviam parado o trânsito para roubar dinheiro e celularesmotoristas, uma prática frequente na cidade. Ela tentou passar. Os ladrões abriram fogo.
Seu automóvel foi alvejado seis vezes. Um dos tiros atingiu o osso frontalseu crânio. O carro seguiufrente por vários metros até bater contra um muro.
Cotta ficou ali, imóvel, sangrando e indefesa.
'Bem-vindos ao inferno'
Falta praticamente um mês para o começo dos Jogos Olímpicos Rio 2016, e os índicescriminalidade sobemforma alarmante no Estado anfitrião do evento.
Sómaio, foram denunciados 9.968 roubos nas ruas, 42,9% acima do mesmo mês do ano anterior, indica o InstitutoSegurança Pública (ISP), vinculado ao governo fluminense.
Houve 2.083 homicídios dolosos no Estado do Rio entre janeiro e maio, um aumento13,6%relação ao mesmo período2015.
Quebrado financeiramente, o governo do Rio decretoujunho "estadocalamidade pública", para receber R$ 2,9 bilhões do governo federal, destinados à areasegurança, o que inclui o pagamentosalários atrasadospoliciais.
"Bem-vindos ao inferno", diziainglês uma faixa que, nesta segunda-feira, voltou a ser exibida por um grupopoliciais no aeroporto internacional do Rio para protestar contra o atraso dos salários. "Policiais e bombeiros não estão sendo pagos, quem vier ao RioJaneiro não estará seguro."
O ato foi idêntico ao realizado uma semana antes, e, apesarbastante criticado por empresáriosturismo, está evidente a deterioração da segurança para quem vive na cidade ou acompanha as notícias locais.
Só na última semanajunho, morreu baleadoum assalto um policial que integrava a equipesegurança do prefeito do Rio, Eduardo Paes, e um cadáver mutilado apareceu nas areiasCopacabana, onde serão realizadas as disputasvôleipraia.
Além disso, uma médica que dirigia pela Linha Vermelha, na Zona Norte da cidade foi assassinada com um tiro na cabeça. A polícia investiga se foi uma execução ou um assalto com um desfecho mais triste que oCotta.
Boa pontaria
"Sempre quis competir nos Jogos. Tenteivárias modalidades, e nunca fui boanada", diz a atleta, que tem olhos negros e um sorriso generoso.
Mas, um dia, ela descobriu o tiro esportivo. Assistia às transmissõesOlimpíadas pela TV junto commãe quando "apareceu um senhoridade gordinho atirando". "Isso! Encontrei", lembra-seter dito na ocasião.
Até aquele momento, as armas nunca haviam despertado seu interesse. Quando passou a praticar o esporte,2010, começou com uma pistolaar comprimido, porque achava que seria menos perigosa do que umafogo.
Quase imediatamente, notou que tinha boa pontaria. Subiu no ranking, entrou para a Confederação BrasileiraTiro Esportivo e,maio, participou da Copa do Mundo, na Alemanha.
Queria se classificar para os Jogos, mas não conseguiu. Acredita que faltou tempo: com algumas competições e pontos a mais somados no ranking, talvez tivesse obtido a classificação.
Tempo sempre foi algo que faltou no dia a diaCotta: alémser atleta e ajudar o pai, é psicóloga da Marinha e cursa um mestradoAdministraçãoEmpresas.
Sua mãe, Jussara, uma aposentada64 anos, lembra que, na noite8junho, Cotta disse estar cansada e a surpreendeu com perguntasteor filosófico:
"Para que nascemos? Para que estudamos tanto? Para que trabalhamos?"
"Você nasceu para fazer coisas boas", respondeumãe.
Seis horas depois, a jovem levou um tiro.
Resgatecinema e 'pacificação'xeque
Alguns acontecimentos recentes no Rio ligados à violência tiveram aspectos cinematográficos.
Em 19junho, um domingo, cerca20 homens armados resgataram um narcotraficante internadoum hospital sob custódia policial, matando uma pessoa e deixando outras duas feridas.
O hospital, localizado no Centro do Rio, é uma das unidadesreferência para os 700 mil turistas esperados na cidade durante os Jogos Olímpicos e Paralímpicos.
As mortes pelas mãospoliciais também têm aumentado neste ano: apenasmaio, foram 84todo o Estado, 90,9% acima do mesmo mês do ano passado, segundo dados do ISP, que inquietam defensoresdireitos humanos. Porvez, seis policiais morreramserviço naquele mês, um a mais tendo como base a mesma comparação.
Nos últimos dias, a polícia realizou uma sérieoperações para capturar criminososfavelas da cidade, gerando cenaspânico.
No Complexo da Maré, conjuntofavelas localizado entre o aeroporto internacional e o Centro do Rio, um tiroteio entre policiais e traficantes obrigou 150 alunos e profissionaisuma ONG a se jogar ao chão das salasaulas e a permanecerem assim por três horas para se protegerem na última quarta-feira.
As quadrilhas armadas e os enfrentamentos a tiros voltaram a ser registradosvárias favelas do Rio que haviam recebido unidades policiaisanos recentes. Segundo especialistas, a outrora aplaudida política"pacificação" da cidade agora estáxeque.
As autoridades atribuem tudo isso à crise financeira do Estado, mas afirmam que a segurança melhorará com o dinheiro enviado pelo governo federal e com as dezenasmilharespoliciais e militares que chegarão ao Rio para os Jogos.
O Comitê Rio 2016 destaca que o Brasil tem uma "grande experiência com segurançamegaeventos". No entanto, no Rio, já ocorreram alguns crimes relacionados com a Olimpíada.
A atleta paralímpica australiana Liesl Tesch denunciou ter sido roubada a mão armada no dia 19, quando estava com seu fisioterapeuta na turística Zona Sul da cidade. Em maio, três membros da equipe espanholavela passaram pelo mesmo.
Na semana passada, um caminhão que levava para o Parque Olímpico equipamentosduas emissorasTV alemãs, avaliadosmaisUS$ 400 mil (R$ 1,31 bilhão), foi sequestrado e roubado por um grupoassaltantes. A carga apareceu depoisum galpão abandonado na região metropolitana no Rio.
Mas, para muitos na cidade, a pergunta não é tanto sobre o que acontecerá durante a maior festa do esporte mundial, mas sobre o "depois", quando a atenção do mundo não estiver mais voltada para o Rio.
Recuperação e esperança
O assaltojunho foi a segunda vez que o carroCotta foi baleado durante uma tentativaroubo.
A primeira foi há alguns anos, quando dirigia acompanhada por seu irmão, Marco, um engenheiro naval31 anos. Ele assumiu o volante e jogou o automóvel para cima do assaltante enquanto ela acelerava. Os dois saíram ilesos, ainda que três balas tenham atingido a carroceria.
Talvez Cotta tenha tentado repetir a manobra, desta vez sozinha, e não tenha conseguido. Até agora, tem evitado contar o que aconteceu exatamente, inclusive para familiares. "Sobre o tiro, não tenho nada a dizer", diz à BBC Mundo. "Lembroalgumas coisas, mas não falo disso."
Sua mãe acredita que ela virou a cabeça justamente enquanto disparavam, e, assim, a bala, que perdeu força ao atingir o carro, fraturou seu crânio sem penetrá-lo.
Ela foi socorrida pelos outros motoristas que haviam acabadoser assaltados pela mesma gangue. No hospital, foi operadaestado grave.
Cotta ficoucoma induzido,uma unidadetratamento intensivo, até começar a dar sinaismelhora. Seguiu internada por mais uma dezenadias e recebeu alta.
Sua mãe repete aliviada que ela não terá sequelas, segundo os médicos, e nem sequer ficarão marcas visíveis do tiro, graças a uma cirurgia plástica.
Também comenta que estão pensandocomprar um carro blindado parafilha e processar o Estado do Rio pelo que ocorreu: "A polícia não está fazendo nada".
Na delagaciaInhaúma, ao ladoonde se deu o crime, um policial se esforça para se lembrar do episódio ao ser abordado pela reportagem.
Mas um oficial garante que o chefe está nas ruas, fazendo diligências sobre o caso. "Talvez consiga capturar alguém e haja novidades amanhã", diz o inspetor Nelson.
Nos últimos dias, Cotta tem sofrido com dorescabeça. Acredita que se devem aos pontos debaixo das ataduras. Também sente enjôos. Na casaseus pais, só recebe visitasseu namorado, familiares e amigas íntimas.
Espera voltar gradualmente às suas atividades e mantém o sonhocompetiruma Olimpíada. "Algum dia chegarei lá", diz. Mas, para os Jogos do Rio, não comprou nem ingressos para acompanhar tudo como espectadora, embora talvez ainda o faça.
"A cidade é perigosa, mas me acostumei. Quem sabe não consigo viver fora daqui no futuro", reflete. "No entanto, esta é minha vida agora."