'Aos 17 anos, já tinha feito 4 operações para adequar minha anatomia ao meu sexo':bet nacional e bom

Crédito, Alejandra López

Legenda da foto, Candelaria descreve as operações como 'desnecessárias e evitáveis'

A produção excessivabet nacional e bomandrógenos (hormônio masculino) havia causado a "virilização dos genitais externos"; ou seja, o desenvolvimentobet nacional e bomcaracterísticas sexuais masculinas externas - ou um "clitóris superdesenvolvido" - que não contradizia a presençabet nacional e bomórgãos genitais internos femininos.

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Intersexual é o termo usado para descrever pessoas que nascem com características sexuais biológicas que não se encaixam nas categorias típicasbet nacional e bomsexo feminino ou masculino.

Crédito, Acervo pessoal

Legenda da foto, Candelaria nos braços dabet nacional e bommãe

No hospital, a equipebet nacional e bomespecialistas recomendou iniciar uma sériebet nacional e bomcirurgias: duas antesbet nacional e bomcompletar 1 ano, outra aos 13 e uma última aos 17, para fazer com que a "anatomia se encaixasse no sexo".

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Apesarbet nacional e bomque os únicos objetivosbet nacional e bomseus pais fossem obet nacional e bomprotegerbet nacional e bomrecém-nascidabet nacional e bomacordo com os padrões da medicina do início da décadabet nacional e bom1980, Candelaria descreve essas operações como "desnecessárias e evitáveis".

"Mutilaram meu clitórisbet nacional e bomnome da normalidade. Não havia nenhuma necessidade médicabet nacional e bomfazer isso, cortaram para que não parecesse um pênis", disse Schamun à BBC Mundo, o serviçobet nacional e bomespanhol da BBC.

Ao longo dos anos, a ciência confirmou que intervenções cirúrgicas que não são motivadas por urgência médica são frequentemente invasivas e irreversíveis e, portanto, não são recomendadasbet nacional e bomcrianças.

Foi só aos 27 anos, uma década após descobrirbet nacional e bomverdadeira história, que esta escritora e jornalista conseguiu começar a dar voz ao que por anos foi um segredo familiar.

Em 2023, Candelaria publicou o livro Ese que fui: Expedientebet nacional e bomuna rebelión corporal (Aquele que fui: Memorialbet nacional e bomuma rebelião corporal,bet nacional e bomtradução livre), um relato sincero que narrabet nacional e bombusca pela identidade.

Esta ébet nacional e bomhistória contadabet nacional e bomprimeira pessoa.

A pasta verde

Eu sou Candelaria, mas ao nascer os médicos acreditaram que eu era um menino e meus pais me chamarambet nacional e bomEsteban.

No diabet nacional e bomque descobri esse segredo, minha vida mudou para sempre.

Lembro-mebet nacional e bomestar no quarto da minha mãe, no primeiro andar da minha casa - uma mansão enorme do início dos anos 1900 na cidadebet nacional e bomLa Plata (Argentina) - experimentando um vestidobet nacional e bomfesta que eu usaria para sair com minhas amigas da escola.

Depoisbet nacional e bomfalar ao telefone com uma delas, quasebet nacional e bommodo involuntário, desci as escadas e fui até o escritório do meu pai, que permanecia intocado desde o diabet nacional e bomsua morte.

Na escrivaninha onde ele guardava todos os seus papéis, abri uma das gavetas e encontrei uma pasta verde que dizia: "Candelaria. Saúde".

Não sei por que tive o impulsobet nacional e bomir ao escritório do meu pai. Não tenho um porquê. Isso para mim continua sendo um mistério.

Entre os documentos, descobri a certidãobet nacional e bomnascimento, com a mesma databet nacional e bomaniversário que a minha, com o nomebet nacional e bomEsteban Schamun.

Instantaneamente, me dei contabet nacional e bomtudo: Esteban não era um irmão gêmeo falecido, mas eu mesma.

Crédito, Acervo pessoal

Legenda da foto, "Esteban não era um irmão gêmeo morto, mas eu mesma", lembra Candelaria.

Senti pânico. Comecei a me perguntar: quem eu era, quem fui, por que fui um menino.

Depois da surpresa, veio a repugnância. Para me proteger, escondi a pasta embaixo do colchão.

Era verão, do ladobet nacional e bomfora fazia um calor infernal, mas eu estava gelada. Enroladabet nacional e bomposição fetal, comecei a chorar.

O que eu havia lido era desesperador. Em cada página,bet nacional e bomcada envelope, havia uma informação que me expunha.

Saí da cama e corri para o chuveiro. Me sentia suja.

Amaldiçoei minha mãe: "Tomara que você morra". O meu pai: "Que sorte que você está morto". Eu amaldiçoei minha própria existência: "Sou repugnante, um monstro".

A partir desse momento, minha adolescência se obscureceu. Comecei a me machucar, a beber mais álcool, a me afastar dos meus amigos, a ficar zangada com minha mãe, zangada com todos.

Passei por situaçõesbet nacional e bommuito desamparo porque não podia contar a ninguém.

Demorei muito para conseguir contar. Muito. Maisbet nacional e bomdez anos.

'Um remendo sobre outro'

Tudo começou quando, um mês após meu nascimento, minha mãe notou que, cada vez que me amamentava, eu vomitava leite. Preocupada com minha saúde, me levou ao médico.

Depoisbet nacional e bomanálises clínicas, o pediatra pediu minha internação com urgência.

Minha mãe ligou para o meu pai, pediu para que viesse o mais rápido que pudesse e decidiu me levar ao Hospital das Criançasbet nacional e bomLa Plata, um respeitado hospital públicobet nacional e bomBuenos Aires.

Mas as horas passavam e ninguém arriscava um diagnóstico. Foram dez diasbet nacional e bomangústia e desespero, até que o médico clínico solicitou a intervençãobet nacional e bomuma endocrinologista.

Foi então que chegou o diagnóstico: "hiperplasia adrenal congênita perdedorabet nacional e bomsal".

Uma alteração genética que afeta as glândulas supra-renais e, consequentemente, a capacidade do corpobet nacional e bomproduzir hormônios. Isso havia alterado a conformação dos meus órgãos genitais externos.

Fui tratada pelos melhores endocrinologistas do país, e eles concluíram que eu precisavabet nacional e bommedicação vitalícia ebet nacional e bomalgumas cirurgias programadas para melhorar a "malformação".

A Organização Mundial da Saúde (OMS) define a mutilação genital feminina como a remoção parcial ou total dos genitais externos femininos por razões não médicas.

Esta prática é reconhecida internacionalmente como uma violação dos direitos humanos das mulheres e meninas, embora no casobet nacional e bomCandelaria, os pais tivessem a intençãobet nacional e bomprotegê-la.

Maisbet nacional e bom200 milhõesbet nacional e bommulheres e meninas vivas no mundo já passaram por essas práticas,bet nacional e bomacordo com informações da OMSbet nacional e bom30 países.

Aos 3 mesesbet nacional e bomvida, fui submetida à primeira operação. Entrei no bloco cirúrgico nos braços da minha mãe, ela quem colocou a máscarabet nacional e bomanestesiabet nacional e bommim. Para adequar o tamanho do clitóris aos padrõesbet nacional e bom"normalidade médica", eles o mutilaram.

As consequências foram irreparáveis: destruíram as terminações nervosas do órgão responsável pelo prazer. Sequelas que ainda sofro até hoje.

Aos 9 meses, veio a segunda operação: uma vaginoplastia. Construíram minha vagina e um princípiobet nacional e bomabertura do canal vaginal. Cortaram, costuraram, removeram os excessos e formaram os pequenos lábios por meiobet nacional e bomuma labioplastia.

Aos 12 anos, pela terceira vez, entrei no bloco cirúrgico. O chamado "abocamento" desta vez foi mais profundo, para conectar o exterior com o interior. Nessa ocasião, descobriram que eu tinha ovários, útero e trompasbet nacional e bomFalópio.

Mas a imperícia dessa operação me levou a um quadrobet nacional e bomincontinência urinária. Durante cinco anos, eu tossia e urinava.

Finalmente, aos 17 anos, veio a quarta e última operação. Esta intervenção visava separar a vagina da uretra e reparar os danos da cirurgia anterior.

Meu corpo tem um remendo sobre outro.

Nenhuma das cirurgias trouxe benefício médico. Não havia nada para curar. Todas foram intervenções estéticas, feitas para satisfazer o olhar do outro, para dizer que "esta pessoa é Candelaria e possui uma vulva e uma vaginabet nacional e bomacordo com o que uma mulher deve ter".

Além da incontinência urinária, essas cirurgias resultarambet nacional e bomoutros problemas: perdabet nacional e bomprazer, traumas e choque pós-traumático.

Meus pais seguiram rigorosamente o que os melhores especialistas diziam. Jamais quiseram me prejudicar. Naquela época, os médicos diziam que era o melhor para mim.

É incrível o que um corpo tem que suportar para se encaixar na sociedade.

O segredo familiar

Enquanto a vida familiar giravabet nacional e bomtorno da minha saúde, meus pais juraram guardar o segredo e prometeram nunca me contar nada.

Ao mesmo tempo, nos meus primeiros mesesbet nacional e bomvida, eles iniciaram um processo judicial para solicitar a mudançabet nacional e bomnome e sexo na certidãobet nacional e bomnascimento. Não queriam apenas uma correção na certidão existente, mas sim um novo documento, para nunca precisarem dar explicações a ninguém.

Um ano depois, meus pais receberam a notíciabet nacional e bomque um juiz havia assinado a sentença anulando a certidãobet nacional e bomnascimentobet nacional e bomEsteban Schamun e ordenando uma nova certidãobet nacional e bomnomebet nacional e bomMaría Candelaria Schamun. O documentobet nacional e bomEsteban ainda existe e está arquivado no processo com seu nome.

Meus pais comemoraram a decisão judicial como um novo nascimento.

A fé religiosa deles, especialmente abet nacional e bommeu pai - um homem que aos 12 anos sonhavabet nacional e bomser padre - tornava quase impossível discutir questões consideradas desconfortáveis na família.

Crédito, Acervo Pessoal

Legenda da foto, Candelaria demorou dez anos para começar a contarbet nacional e bomhistória

O silêncio me causou muito dano, mas agora sei que tudo o que buscavam era me proteger.

Apenas aos 17 anos descobri a verdade. E, paradoxalmente, apenas me unibet nacional e bomsilêncio ao segredo dos meus pais.

Durante anos, não contei a ninguém.

Mas à medida que os anos passavam, o segredo se transformavabet nacional e bomescuridão.

Tive uma briga com minha mãe - meu pai já havia falecido -, a relação se tornou insuportável e saíbet nacional e bomcasa aos 18 anos.

Foi apenas uma década depois que consegui falar sobre isso pela primeira vez com uma psicóloga.

O assunto me envergonhava. Tinha medobet nacional e bomque deixassembet nacional e bomme amar oubet nacional e bomque me fizessem perguntas que eu não podia responder.

"É compreensível. A mutilação genital é considerada tortura. Você foi torturada. Você está passando por um choque pós-traumático, que pode ser comparado ao choque que os soldados sofrem ao retornar da guerra", me disse a terapeuta.

Aos 30 anos, consegui confrontar minha mãe. Ela me escreveu uma carta confessando que nunca quiseram me criar como uma criança doente. Queriam que eu fosse livre. E conseguiram.

"Fizemos tudo o que os médicos nos mandaram. Se precisássemos ir à China, íamos à China, corríamosbet nacional e bomum lado para o outro", diz um dos trechos da carta.

"Fizemos o impossível para que você tivesse uma infância feliz e normal como as outras crianças dabet nacional e bomidade".

Depoisbet nacional e bomconversar com minha mãe, consegui transformar a raiva acumulada ao longo dos anosbet nacional e bomempatia.

Naquele momento, ainda não entendia completamente a magnitudebet nacional e bomcolocarbet nacional e bompalavras minha história,bet nacional e bomcomo contar o que estava acontecendo comigo poderia libertar muitas pessoas, alémbet nacional e bomme libertar.

Nova etapa

Em 2019, no Encontro Nacionalbet nacional e bomMulheres da Argentina, durante a primeira oficina sobre intersexualidade realizada no evento, decidi amplificar minha voz.

Foi a primeira vez que contei minha história diantebet nacional e bomum grupobet nacional e bompessoas desconhecidas.

Estava muito ansiosa, queria compartilhar, mas a situação me aterrorizava.

Fui a primeira a levantar a mão e comecei a falar. Falei tanto que mal conseguia respirar. Não conseguia parar, eram anosbet nacional e bomsilêncio.

Quando terminei, fui aplaudida e abraçada. Recebi muito amor. Foi só então que entendi que não era um monstro e que minha história poderia ajudar outros.

Não precisava mais me esconder. Aos poucos, tudo começou a fazer sentido.

Crédito, Alejandra López

Legenda da foto, Candelaria nasceu com uma alteração genética que afetou o desenvolvimento do seu corpo

Começaram a se aproximar pessoas intersexuais que, pela primeira vez, ouviambet nacional e bomprópria história na vozbet nacional e bomoutra pessoa, que por anos pensaram que seus casos eram únicos.

Nos criaram acreditando que não havia ninguém que pudesse ter algumas características semelhantes. Foram anosbet nacional e bommuita solidão.

Então, me animei a escrever minha história,bet nacional e bomprimeira pessoa. Queria contar o dano irreparável e irreversível que a medicina causou no meu corpo.

Escrever este livro, colocarbet nacional e bompalavras "Ese que fui", aliviou minha vida e abet nacional e bomtoda minha família. Gostaria que fosse publicadobet nacional e bomoutros países,bet nacional e bomoutros idiomas, pois pode ajudar muitas pessoas.

A mutilação genitalbet nacional e bomcrianças que nascem com traços intersexuais já não é a norma.

Apesarbet nacional e boma ciência recomendar que o melhor é deixar que a pessoa decida sobre seu próprio corpo, ainda são realizadas outras cirurgias genitais, irreversíveis, dolorosas e traumáticas, para normalizar corposbet nacional e bombebês, crianças e adolescentes.

Crédito, Sudamericana

Legenda da foto, Capa do livrobet nacional e bomCandelaria

Há organizaçõesbet nacional e bompessoas intersexuaisbet nacional e bomtodo o mundo que estão lutando pelos nossos direitos, para que não continuem intervindobet nacional e bomcorposbet nacional e bomcrianças e bebês intersexuais apenas por questões estéticas.

Se você acredita que é intersexual, aproxime-se dessas organizações, você encontrará apoio e acolhimento.

Eu passei por um processo cirúrgico desnecessário, apenas com o objetivobet nacional e bommodificar meu corpo e, assim, eliminar todas as características que poderiam gerar ambiguidade ou rejeição da sociedade.

É necessário repensar muito a visão que temos sobre os corpos, até que ponto estamos dispostos a permitir que uma pessoa sofra para se encaixar aos olhos dos outros.

Conto minha história para que, entre outras razões, parembet nacional e bommutilar crianças intersexuais e para que se garanta o direito à integridade corporal e à verdade.

Hoje, sinto orgulho do que meus pais fizeram; este livro,bet nacional e bomparte, é uma formabet nacional e bomagradecê-los. E sinto orgulhobet nacional e bomser Candelaria, embora também haja uma partebet nacional e bommim que ainda é Esteban.

Olho para trás e sinto alegria por ser quem sou.