Deus na Constituição e religião na escola: a intrincada história da separação entre Igreja e Estado no Brasil:aposta cavalo

Bandeira brasileira com santa à frente

Crédito, Getty Images

Padroado

Professor na Universidade Federal do Maranhão, o historiador Ítalo Domingos Santirocchi explica que essa relação íntima entre fé e poder, no caso brasileiro, é uma herança portuguesa. "Era o direito do padroado, que dava ao rei português o direitoaposta cavaloadministrar parte da Igreja", explica ele à BBC News Brasil.

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Segundo suas pesquisas, essa relação foi sistematizada a partiraposta cavalouma gamaaposta cavalodocumentos emitidos por coroa e Igreja Católicaaposta cavaloduas fases. Primeiramente,aposta cavalo1420 a 1551. Em seguida,aposta cavalo1486 a 1511. Santirocchi identificou que havia idas e vindas entre petições pró e contra tais direitos.

Era um momento delicado, aquele. Ao mesmo tempo que havia um contextoaposta cavaloexpansão marítima, o que resultariaaposta cavaloum imperialismo para o Estado e um potencial aumentoaposta cavaloclientela para a Igreja, a Europa vivia um cenárioaposta cavaloque diversas monarquias desafiavam a hegemonia da Igreja Católica, inclusive patrocinando a fundaçãoaposta cavaloigrejas nacionais.

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Historaidores como Santirocchi entendem, portanto, que isso acabou fazendo com que a cúpula católica visse como um bom negócio conceder poderes eclesiásticos para as coroas abertas a isso — no caso, Espanha e Portugal. Alémaposta cavalomanter esses povos dentro do catolicismo, ainda havia a possibilidadeaposta cavalochegar a novos fiéis.

Na prática, a coroa mandava e desmandava. Criava dioceses e paróquias, nomeava bispos. O papa apenas precisava ratificar. Em troca: o governo precisava construir e manter as igrejas, bancar a côngrua — o salário dos religiosos —, construir e financiar o funcionamentoaposta cavaloseminários e até mesmo investiraposta cavalotrabalhos missionários.

A Igreja Católica também contribuía justificando e legitimando o movimento expansionista, é claro. Em artigo acadêmicoaposta cavalo2010, o jurista Rulian Emmerick, atualmente professor na Universidade Federal Rural do Rioaposta cavaloJaneiro, comentou que "o projetoaposta cavalocolonização das novas terras pelo Estado português teria grandes dificuldadesaposta cavaloser implementado sem o apoio da Igreja Católica enquanto instituição legitimadora do poder e responsável pela coesão social e pela unidade nacional".

Emmerick lembra que "em boa parte da história da sociedade brasileira (...) o direito do Estado confundia-se com o direito divino, isto é, o direito ditado pela Igreja Católica".

"Desta forma, as instituições Igreja e Estado confundiam-se enquanto instituições legitimadoras do poder e normatizadoras dos corpos e das mentes. Ambas tinham pretensõesaposta cavaloregular os princípios organizadores da incipiente sociedade brasileira e conquistar a consciência dos sujeitos, bem como deter o monopólio do capital simbólico no imaginário social", pontua o jurista,aposta cavaloseu artigo.

Emmerick analisa as contrapartidas previstas pelo regime do padroado e resume que enquanto "os reisaposta cavaloPortugal detinham o direitoaposta cavalocriar cargos eclesiásticos, nomear seus titulares, arrecadar o dízimo nos cultos e autorizar a publicação das atas pontifícias", a Igreja se beneficiava porque a coroa facilitava "a difusão da religião católica nas novas terras" e se responsabilizava "pela construçãoaposta cavaloigrejas, mosteiros etc".

No Brasil Colônia essa relação foi automática, porque Brasil era parteaposta cavaloPortugal. Com a independência,aposta cavalo1822, houve uma jogada que pode ser lida até mesmo como um movimentoaposta cavalodom Pedro 1º (1798-1834), o primeiro imperador, para deixar claro que quem dava as cartas era ele - e não a Igreja.

Porque o regime que era fundamentado por documentos papais passou a constar da Constituição. O texto, publicadoaposta cavalo25aposta cavalomarçoaposta cavalo1824, já traz no início que é redigido "em nome da Santíssima Trindade".

Constituiçãoaposta cavalo1824

Crédito, Arquivo Nacional

Legenda da foto, A Constituiçãoaposta cavalo1824 já traz no início que é redigida "em nome da Santíssima Trindade"

Na carta, a religião católica é mencionada quatro vezes. O artigo 5º do primeiro título, que define a organização social do império, crava: "A religião católica apostólica romana continuará a ser a religião do império. Todas as outras religiões serão permitidas com seu culto doméstico, ou particularaposta cavalocasas para isso destinadas, sem forma alguma exterior do templo".

O texto constitucional ainda prevê o texto que deve ser lido como juramento durante a nomeaçãoaposta cavaloum novo imperador: "Juro manter a religião católica apostólica romana, a integridade, e indivisibilidade do império; observar, e fazer observar a constituição política da nação brasileira, e mais leis do império, e prover ao bem geral do Brasil, quantoaposta cavalomim couber".

Santirocchi contextualiza que "após a independência, os direitos que eram concessões papais foram estabelecidos pela constituição". E o documento instituído ainda delegava ao imperador o direitoaposta cavalo"conceder ou negar o beneplácito aos decretos dos concílios e letras apostólicas e quaisquer outras constituições eclesiásticas".

Mas o papa não se deu por vencido. Em 1827 — ok, a distância e a comunicação da época faziam com que ações e reações levassem mais tempo —, o papa Leão 12 (1760-1829) mandou publicar a bula Praeclara Portugalia, concedendo esses direitos ao rei.

"Só que [pela constituição] todo e qualquer documento papal tinhaaposta cavaloser aprovado e receber o beneplácito do imperador. E esse documento não recebeu o beneplácito", nota Santirocchi. "Mas, para a Igreja, era ela quem havia conferido esse direito ao imperador. Para o imperador, era um direito constitucional."

Mais tarde, as rusgas só aumentariam. Conforme lembra o historiador,aposta cavalo1858, "o Brasil e a Santa Sé não chegaram a um acordo para celebrarem uma concordata".

"Os bispos queriam liberdade para se comunicar com o papa, administrar e organizar as dioceses", ressalta ele, lembrando que, até a décadaaposta cavalo1870, eram somente 12 as dioceses no Brasil, com uma delas tendo o statusaposta cavaloarquidiocese, Salvador.

Na contenda, "o Estado queria controlar o aparato religioso", acrescenta Santirocchi, "como instrumento legitimador do sistema". E seguir tratando "o clero como funcionário público". "Tudo isso diminuindo cada vez mais os repasses financeiros para a Igreja".

"A partir dos anos 1870 vários grupos passaram a pressionar para a separação [entre governo e religião]", afirma o historiador. "Os republicanos, os liberais mais radicais e até mesmo alguns católicos, padres e bispos, pois acreditavam que era melhor uma igreja livre, sem apoio financeiro do Estado."

Ele recorda que esse desgaste se intensificou ainda mais depois da chamada "questão religiosa" ocorrida entre 1872 e 1875, quando dois bispos foram presos porque, entre o papa e o imperador, preferiram obedecer ao papa. "Eles decidiram punir as irmandades religiosas que tinham maçons emaposta cavalodiretoria", explica Santirocchi.

"Embora tenha ocorridoaposta cavaloforma institucionalmente abrupta, no sentido da transformação constitucional [no pós-proclamação da República], eu diria que a mudança foi sendo feitaaposta cavaloforma gradual, ainda no período da monarquia", diz à BBC News Brasil o historiador Victor Missiato, pesquisador na Universidade Estadual Paulista e professor no Colégio Presbiteriano Mackenzie Tamboré.

Missiato recorda que dom Pedro 2º (1825-1891), o segundo e último imperador do Brasil, "começou a estabelecer algumas políticas no sentidoaposta cavaloafastar o poder da Igreja, principalmente nas décadasaposta cavalo1870 e 1880".

O divórcio oficial entre Igreja e Estado

Oficialmente, o acordo que resultaria na separação entre a religião católica e o poder civil no Brasil é o decreto 119-A,aposta cavalo7aposta cavalojaneiroaposta cavalo1890. Ali, o então chefe do governo provisório da república recém-proclamada, Manoel Deodoro da Fonseca (1827-1892), proibiu "a intervenção da autoridade federal e dos Estados federadosaposta cavalomatéria religiosa", consagrou "a plena liberdadeaposta cavalocultos" e extinguiu o tal regime do padroado.

São sete artigos. A lei proibia que a autoridade federal ou dos Estados criasse "leis, regulamentos ou atos administrativos estabelecendo alguma religião" e determinava que todos os "habitantes do país" tivessem tratamento sem diferenças.

A liberdadeaposta cavaloculto também foi instituída e ficou determinada que todas as igrejas e confissões religiosas seriam reconhecidas como "personalidade jurídica".

Mas o governo federal também precisou ceder. Ficou acertado, na lei, que o Estado precisava seguir pagando a côngrua e, por um ano, subvencionaria os seminários.

Santirocchi conta que a lei resultouaposta cavalouma hábil negociação entre o jurista Rui Barbosa (1849-1923), então Ministro da Fazenda, e um dos protagonistas — do lado católico — da "questão religiosa", o bispo Antônioaposta cavaloMacedo Costa (1830-1891).

Rui Barbosa

Crédito, Arquivo Nacional

Legenda da foto, Rui Barbosa foi o artífice da separação entre Igreja e Estado

Naquele mesmo anoaposta cavalo1890, Costa se tornaria arcebispoaposta cavaloSalvador. "Ele estava cotado para se tornar o primeiro cardeal da América Latina, se não tivesse morrido meses depois".

"Com o fim do padroado, o Estado deixaaposta cavaloter o direito justificadoaposta cavalointerferir na Igreja. E também não paga mais à Igreja. A Igreja passa a teraposta cavalose virar e se autofinanciar", acrescenta Santirocchi.

E talvez a Igreja Católica estivesse muito acomodadaaposta cavalouma zonaaposta cavaloconforto, sob o sustento do governo federal. Prova disso é que a separação institucional,aposta cavalovezaposta cavaloprejudicar o catolicismo, fez com que a religião crescesse no Brasil, fora das amarras do controle governamental.

"Depois da separação a Igreja católica cresceu vertiginosamente. Muitas paróquias, dioceses e arquidioceses foram criadas, muitas ordens religiosas vieram para o Brasil", analisa Santirocchi. "O mesmo aconteceu com as religiões protestantes e evangélicas: cresceram, aumentaram a variedadeaposta cavalodenominações, nasceram as primeiras igrejas evangélicas brasileiras já no início do século 20."

Mas essa separação não foi automática. Primeiro porque era natural uma certa resistênciaaposta cavaloalguns setores da Igreja e, por outro lado, a complacênciaaposta cavaloalguns setores da administração pública. Em segundo lugar, o emaranhado entre Igreja e Estado era tão extenso que, realmente, ficava complicado identificar todos os pontosaposta cavalocontato e ingerências da noite para o dia.

Um santo com salário pago pelo Estado

Em 2017, quando estava pesquisandoaposta cavalodiversos documentos e arquivos públicosaposta cavalobuscaaposta cavaloinformações para meu livro Santo Antônio: A história do intelectual português que se chamava Fernando, quase morreu na África, pregou por toda a Itália, ganhou famaaposta cavalocasamenteiro e se tornou o santo mais querido do Brasil (Editora Planeta, 2021), deparei-me com uma história bastante inusitada envolvendo o governo brasileiro e o santo português.

Desde os tempos coloniais, Santo Antônio vinha sendo nomeado militar - com as mais diversas patentes -aposta cavalomuitas localidades do território brasileiro. Era uma cargo simbólico, obviamente, mas que previa remuneração equivalente ao salário militar compatível com o cargo - dinheiro este que era pago a algum convento ou paróquia.

Durante o períodoaposta cavaloque a corte portuguesa transferiu-seaposta cavaloLisboa para o Rioaposta cavaloJaneiro, o então príncipe regente João 6º (1767-1826) publicou um decreto fazendo do santo sargento-moraposta cavalotodo o exército luso-brasileiro.

No documento, o monarca confessou "particular devoção" ao santo e frisou que fazia isto como gratidão pela intercessão do mesmo "em prol da monarquia portuguesa, duramente hostilizada" por Napoleão Bonaparte (1769-1821).

Os procuradores do santo eram os frades franciscanos do conventoaposta cavaloSanto Antônio do Rioaposta cavaloJaneiro - ou seja, era essa a instituição que ficava com os salários do "militar". O santo acabaria sendo promovido, três anos mais tarde, a tenente-coronelaposta cavaloinfantaria.

A trajetória militaraposta cavaloSanto Antônio no Brasil chegaria ao fim com a proclamação da República.

Ao fazer um pente-fino nas contas estatais, o delegado fiscal do Tesouro Nacional, Antônioaposta cavaloPádua Mamede, impugnou a inclusão do nomeaposta cavaloSanto Antônio nas folhasaposta cavalopagamento.

O argumento era profundamente republicano. "Não é lícito que a nação continue a pagar aquele soldo (...) concorrendo-se, assim, para conservar a crendice que teve o príncipe regente ao expedir aquelas patentes, sob o fundamentoaposta cavalohaver o dito Santo Antônio influído para salvar a monarquia portuguesa da grande crise que então atravessava", considerou ele.

O processo levou cinco anos para ser aprovado. Em mais um capricho do deus das coincidências, o documento que extinguiu o salário do santo foi assinado por um ministro da fazendaaposta cavalonome Francisco Antônioaposta cavaloSales (1863-1933).

O ato foi registrado na folha 21 do livro 486 da então diretoriaaposta cavalocontabilidade da guerra.

Mesmo sem salário, contudo, ainda não havia sido publicado nenhum ato que extinguisse as patentes do santo. Seguia, portanto, o incansável Antônio um eterno integrante do Exército Brasileiro.

Até que,aposta cavalo1924, o presidente Artur Bernardes (1875-1955) cobrouaposta cavaloseu ministro da guerra, Fernando Setembrinoaposta cavaloCarvalho (1861-1947) que resolvesse a questão.

"O coronel Antônioaposta cavaloPádua vai quaseaposta cavalotrês séculosaposta cavaloserviço. Nomeie-o general e ponha-o na reserva", escreveu Bernardes. Solucionado o caso. Santo Antônio que desfrute do descanso merecido.

Depois da separação

No dia a dia da população, a separação entre Igreja e Estado resultouaposta cavaloalgumas mudanças. De um lado, a liberdadeaposta cavaloculto, inclusiveaposta cavaloespaços públicos - com exceção para os espíritas e osaposta cavaloreligiões africanas, "que ainda terãoaposta cavalolutar", conforme lembra Santirocchi.

De outro, uma questãoaposta cavaloordem burocrática. Antes monopólio das paróquias, os registrosaposta cavalonascimento, casamento e óbitos passaram a ser incumbência do estado. Inclusive com a instituição do casamento civil. E a seguinte criaçãoaposta cavalocemitérios públicos.

Mas, conforme recorda o historiador Victor Missiato, nem sóaposta cavalocrucifixosaposta cavalorepartições públicas sobrevive a religiosidade dentro do aparato estatal. "É um processo gradual e relativo", pondera ele.

Um exemplo está na educação. Em 1931, emaposta cavaloprimeira passagem pela presidência do país, Getúlio Vargas (1882-1954) promoveu a volta do ensino religioso nas escolas - tornando "facultativo" o que havia sido abolido; na prática, reativando-o.

Ensino religioso que, no dia a dia daquele contexto, beneficiava exclusivamente a Igreja Católica.

"Nos anos 1920, a Igreja Católica se reaproximou dois políticos. Essa reconciliação ficou mais evidente depois da Revoluçãoaposta cavalo1930, quando Getúlio Vargas chegou ao poder e, alguns meses depois, publicou o decreto que tornava o ensino religioso facultativa nas escolas públicas", afirmou o historiador Angelo Antonio Greco, emaposta cavaloteseaposta cavalodoutorado defendidaaposta cavalo2017 na Universidadeaposta cavaloSão Paulo.

Segundo Greco, o ensino religioso "foi instrumentoaposta cavalofortalecimento católico, reconquistando espaços perdidos na República Velha".

"O decretoaposta cavaloVargas foi feito claramenteaposta cavalobenefício dos católicos e, anos depois, foi incorporado na Constituiçãoaposta cavalo1934", afirma o pesquisador.

Desde o governoaposta cavaloGetúlio, nos anos 1930, ensino religioso passou a ser facultativo

Crédito, Arquivo Nacional

Legenda da foto, Foto mostra salaaposta cavaloaulaaposta cavaloescola pública no Rioaposta cavaloJaneiro na décadaaposta cavalo1950. Desde o governoaposta cavaloGetúlio, nos anos 1930, ensino religioso passou a ser facultativo

"O ensino religioso era considerado como obra principal pelos católicos e houve grande organização na arquidioceseaposta cavaloSão Paulo, com fiscais e delegadas fazendo relatórios do seu andamento nas escolas", relata o historiador, destacando que "houve a inserção do ensino católico num ambiente laico",aposta cavaloescolas públicas, "com alunosaposta cavalooutras confissões religiosas".

E Deus está mesmo nos detalhes. Victor Missiato lembra que mesmo a Constituição atual,aposta cavalo1988, parece não se esquecer das relações intrincadas entre religião e Estado. O preâmbulo do texto diz que o mesmo está sendo publicado "sob a proteçãoaposta cavaloDeus".

"A laicidade brasileira é uma laicidade republicana, mas ela tem aspectos morais que, na longa duração, a gente pode dizer que estão ligados a uma visão cristãaposta cavalosociedade. No Brasil, essa separação entre Igreja e Estado não ocorreaposta cavaloforma nitidamente delimitada", diz.

Ele recorda que diversas legislações civis demoraram a perder o lastro religioso, como no caso da lei do divórcio — instituída apenasaposta cavalo1977. Outro exemplo é o casamento homoafetivo, reconhecido no Brasil apenasaposta cavalo2013.

"Não é uma linha reta. A cultura republicana vai sendo instituída com o tempo,aposta cavaloforma gradual, afastando os temas religiosos dos temas do Estado. Mas até hoje ainda temos muitas relações com a religião, por exemplo no Congresso, onde muitas decisões ainda são pautadas pela religião."