Legado da Copa: ex-elefante branco tem hoje mais35 mil na 3ª divisão alemã:

Leipzig sempre foi uma cidadetradição esportiva na Alemanha. Em 1900, foi o lugar escolhido para sediar a recém-fundada Federação AlemãFutebol. Durante os anos da Guerra Fria, quando o país esteve dividido, Leipzig foi um celeirocampeões olímpicos da Alemanha Oriental.

Mas2006, quando sediou cinco jogos da Copa do Mundo, Leipzig estava praticamente falidatermos esportivos. Seus dois times - os tradicionais Lokomotive e Chemie - estavam quebrados e jogando apenas a quarta divisão do campeonato alemão.

Na década anterior, após a unificação, os ricos clubes da ex-Alemanha Ocidental - como BayernMunique e Borussia Dortmund - haviam comprado todos os melhores jogadores dos clubes locais, deixando um vácuotalentos. O mesmo aconteceudiversos setores da economia -universidades a empresas.

Leipzig foi a única cidade da antiga Alemanha Oriental a sediar jogos da Copa. A opção pela cidade foi política, já que o público pagantejogosfutebol raramente ultrapassava 4 mil nessa época.

Estádio vazio. Foto: BBC
Legenda da foto, EstádioLeipzig foi único da antiga Alemanha Oriental na Copa e esteve vazio por 3 anos

"Era preciso mostrar ao mundo um país unificado e não podíamos ter a Copa do Mundo apenascidades da Alemanha Ocidental", disse à BBC Brasil o próprio prefeito da cidade, Burqhard Jung.

O belíssimo Zentralstadion foi renovado antes da Copa com ajuda do poder público. Um estádio moderno foi construído praticamente dentro da antiga estrutura comunista dos anos 1950,uma parte bucólica da cidade. Durante a Copa, os jogos foram um sucesso, com o estádio sempre lotado.

Thomas Kunze. Foto: BBC
Legenda da foto, Jornalista Thomas Kunze conta que times antigos da cidade atraíam torcedores radicais

Mas os políticos sabiam que depois do Mundial, esse moderno estádio seria uma dorcabeça. E por três anos, ele foi o único elefante branco da Copa da Alemanha. As poucas ocasiõesque esteve lotado foram nos poucos amistosos da seleção alemã.

Plano ambicioso

Naqueles anos, nem Lokomotiv ou o Chemie empolgavam. O Chemie chegou a ocupar o Zentralstadion até 2007. Masum estádio com 45 mil lugares,médiapúblico4 mil pessoas era insuficiente para sequer pagar contas do cotidiano, como água, luz e funcionários.

De 2007 a 2009, o estádio esteve nas mãosum administrador privado, que só conseguiu amealhar grandes públicos para shows esporádicosatrações internacionais, como AC/DC, Genesis e Bon Jovi.

Três anos depois da Copa, uma multinacional viu na cidade uma oportunidade para alavancar seus negócios.

A empresa austríacabebidas energéticas Red Bull tinha um ambicioso plano: montar um time para um dia jogar a Primeira Divisão da Bundesliga, o campeonato alemão.

Estádio lotado. Foto: BBC
Legenda da foto, Jogo do RB Leipzig que praticamente selou promoção à 2ª divisão teve mais35 mil pessoas

A estratégiamarketing da Red Bull é promovermarcacompetições não apenas com patrocínios a eventos e publicidade direta, mas sim montando equipes que levam o seu nome. Na Fórmula 1, a Red Bull possui dois times - o principal deles foi campeãoconstrutores e pilotos nos últimos quatro anos. No futebol, a multinacional possui times com seu nomeNova York, Salzburgo (Áustria) e Campinas (o Red Bull Brasil, que disputará no ano que vem seu primeiro Paulistão).

Para o prefeito da cidade, o fator decisivo na chegada do Red Bull à cidade não foi só a existênciaum estádioCopa do Mundo, mas sim um conjuntofatores: a densa população da cidade (1,5 milhãopessoas vivemLeipzig e arredores) e a longa tradição esportiva.

"Foi isso que atraiu eles: tínhamos infraestrutura, tínhamos torcedores, tínhamos tradição, e por isso eles decidiram vir para cá", diz Jung.

Chegada tumultuada

A empresa austríaca, porém, não foi bem-recebida emchegada na Alemanha.

Para já começar jogandodivisões superiores, a Red Bull decidiu comprar a licençaesportesum time local (necessária para disputar torneios). Caso criasse um clube da estaca zero, a equipe teria que passar anos disputando divisões inferiores até subir.

Inicialmente, o grupo tentou comprar o quebrado Chemie, mas os próprios torcedores da equipe protestaramforma violenta e a Red Bull desistiu. Os torcedores não queriam ver a tradição local sendo "comprada" e colocada à serviço do marketinguma multinacional. Anos depois, sem recursos, o Chemie decretou falência e fechou.

A saída para a Red Bull foi comprar a licençaum pequeno clube das imediações, o SSV Markranstädt, que disputava a quinta divisão. Como os estatutos alemães não permitem o usomarcas comerciais no nometimes, a Red Bull rebatizou o clube como RasenBall Leipzig ("BolaGramado Leipzig"). Assim, a marca da empresa fica implícita no nome abreviado do clube: RB Leipzig.

Já no primeiro ano, o grupo formado subiu da quinta para a quarta divisão. No ano seguinte, a multinacional fez um contrato30 anos para ocupar o Zentralstadion, que foi rebatizadoRed Bull Arena.

A virada

PrefeitoLeipzig. Foto: BBC
Legenda da foto, PrefeitoLeipzig diz que cidade teve sorteatrair multinacional

Ainda assim, a equipe jogava para públicos pequenos e com dificuldades. O ônibus do time era sempre alvoprotestos por onde o clube passava, já que muitos não gostavamver uma marca comercial competindoum universo dominado pela tradição.

"Eles vieram2009, com muito dinheiro e muitos planos. Mas a maior parte das pessoasLeipzig não os recebeubraços abertos. Eles pensavam que se tratava apenasuma empresa querendo ganhar dinheiro vendendo bebidas energéticas", lembra Kunze.

Mas ao longo dos anos, a Red Bull conquistou seu espaçoLeipzig.

Para Thomas Kunze, dois fatores explicam o apelo do Red Bull junto à população local.

O primeiro, ironicamente, para o jornalista, foram as constantes derrotas do RB Leipzig nos primeiros anos. O time ficou três anos patinando na quarta divisão sem conseguir subir. Foi ali, segundo o jornalista, que os torcedores perceberam que o time não era uma "máquina" formada com dinheiro, mas sim, com jogadores "humanos", que erravam e acertavam.

Outro fator foi a faltaum time "para as famílias" da cidade. Os clubes tradicionais da cidade eram associados a pensamentos extremistas: o Lokomotiv tem apoiofacções neonazistas; o Chemie contava com radicaisesquerda nabase.

"Era raro você ter um clássico na cidade sem a presença enormepoliciais e violência", lembra o jornalista esportivo. O marketing do Red Bull é voltado para famílias, que não se sentiam à vontade torcendo para os outros clubes.

Ao vencer a quarta divisão, a cidade abraçou o time, e o estádio começou a encher. Neste ano, o RB Leipzig tevemédia 20 mil pessoasseus jogos. Na partida decisiva contra o Darmstadt 98, no feriadoPáscoa, que praticamente selou a ascensão para a Segunda Divisão, 35 mil torcedores compareceram.

Na mesma hora, o tradicional Lokomotive Leipzig jogavaoutro estádio na mesma cidade, a poucos quilômetros dali, só que para um públicoapenas 2 mil pessoas.

Torcedor do Leipzig. Foto: BBC
Legenda da foto, Plano do RB Leipzig é um dia conseguir disputar a primeira divisão da Bundesliga

* Imagens: Albert Steinberger