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A princesa que transformou a medicinaguerra:
Durante as horas seguintes, ela eequipe realizaram cirurgias e trataram aqueles que podiam ser tratados, enquanto o trem se afastava da frentebatalha. Cerca12 horas depois, o veículo finalmente tomou uma distância segura.
Duas semanas depois,10março1905, a batalha terminou com a derrota do Exército russo.
Voluntária na Cruz Vermelha
Este seria um pontovirada na vidaVera Ignatievna Gedroits - descendente da realeza lituana, cirurgiã talentosa e excêntrica. Conhecida justificadamente como princesa Gedroits, era uma figura extraordinária. Apesar disso, continuagrande parte desconhecida no Ocidente.
Como pioneira da medicina no campobatalha, Gedroits fez contribuições que, segundo especialistas, poderiam ter salvo milharesvidas durante a 1ª Guerra Mundial se tivessem sido mais compreendidas na época.
"Quando ouvihistória pela primeira vez, ainda me lembro do que pensei: 'Por que ainda não fizeram um filme sobre isso?'", diz Melanie Stapleton, professora-assistentemedicina da UniversidadeCalgary, no Canadá.
Mas quem era exatamente Vera Gedroits e por que não é tão lembrada?
Mesmo uma das principais informações sobre Gedroits - o ano do seu nascimento - tem sido motivodúvida. Muitos artigos dizem que ela nasceu1876, mas ela parece ter corrigido issoseus documentos pessoais. Na verdade, Gedroits nasceu seis anos antes,1870,Kiev, atual Ucrânia.
Não há muitos detalhesinglês disponíveis sobreinfância, mas sabe-se que ela vinhauma família rica e estudoucasa antesterminar a escolaSão Petersburgo. Quando tinha 16 anos, foi presa por participaratividades revolucionárias organizadas por uma facçãoesquerda.
Gedroits voltou, então, para casa, mas logo fugiu para Lausanne, na Suíça. Foi lá que estudou medicina. Gedroits teria sido uma das milharesmulheres que estudaram medicina naquele país no final do século 19 e início do século 20. À época, a Suíça era uma exceção à regra: suas universidades aceitavam estudantesmedicina do sexo feminino.
Começo da carreira
Em 1901, Gedroits retornou à Rússia, onde mais tarde passaria pelos examesadmissão e oficialmente ganharia o títulomédica. Sua carreira na área não começou no campobatalha, masuma propriedade industrial. Foi nomeada cirurgiã na fábricacimentosMaltsov, no distritoZhizdrinsky, no oeste da Rússia.
De acordo com um artigorusso sobrecarreira, seu trabalho ali foi transformador. Ela planejou montar uma estrutura hospitalar adequada e,pouco tempo, instalara equipamentosfisioterapia e uma máquinaraios-X - algo absolutamente inovador para a época.
Para se ter uma ideia, os raios-X haviam sido descobertos1895, menosuma década antes. Em seu primeiro ano, 103 pacientescasos cirúrgicos foram tratadosseu hospital; apenas dois morreram.
Os operários recebiam tarefas fisicamente exaustivas. Havia muito trabalho pesado e,uma seção que fazia vidro, a matéria-prima era moldada por meio do sopro. Em seus relatos, Gedroits observou que esse tipotrabalho enfraquecia gradualmente os músculos abdominais. Foi por isso que ela acabou operando tantos pacientes com hérnias, supunha.
Ser uma especialista nessa área do corpo era incomum na época - e isso acabou beneficiando-a no futuromaneiras que ela própria não poderia imaginar. Somente dois anos depois, a guerra russo-japonesa começaria. Gedroits se ofereceu como voluntária para a Cruz Vermelha.
O conflito foi muito sangrento e degradante. É frequentemente descrito como uma espécieprévia da 1ª Guerra Mundial, que começaria cercauma década depois. Ambos tinham trincheiras, muitos impasses e numerosas "vitórias"batalhaque ambos os lados perderam milhareshomens.
Em última análise, cerca100 mil pessoas foram mortas na guerra russo-japonesa ao fim da qual a Rússia foi efetivamente derrotada - uma surpresa considerando que o Japão era um país muito menor e cheioproblemas econômicos.
Dificuldades no front
Existem poucas fontesinglês que detalham as atividadesGedroits durante a guerra. No entanto,1997, o médico militar britânico John Bennett escreveu um artigouma revista científica no qual fez resumo traduzido do próprio registro dela sobre o conflito.
O artigoBennett parece nunca ter sido publicado, mas um rascunho foi enviado para Yuri Kolker, um ex-produtorfilmes russos no Serviço Mundial da BBC, que gentilmente compartilhou a carta com a reportagem da BBC Future.
Em 26setembro, Gedroits estava montando um hospitalcampanhaum pequeno vilarejo perto da cidadeMukden, hoje conhecida como Shenyang, na China. Este seria um local estratégico para as forças russas nos meses seguintes.
O tremGedroits era o coraçãoseu destacamento no local, mas o próprio hospital não estava confinado aos vagões. Ele havia se expandido pelos arredores do trem,fileirasbarracas. Cabanascamponeses também foram tomadas e convertidasum centro cirúrgico, assim como alguns armazéns.
Para a salaoperações, as paredes do interior eram cobertasargila e depois caiadasbranco. Lençóis esterilizados também foram usados para cobrir o local e torná-lo o mais higiênico possível.
No primeiro mês ali, Gedroits eequipe se viram tratando uma imensa variedadelesões graves. Muitas envolviam ferimentosbalas e fragmentosgranadas. Havia mais700 casostais lesões nos membros, 143 no peito e 61 no abdômen, por exemplo.
Gedroits relatou o casoum homem que foi hospitalizado com fragmentosgranada alojados emcabeça. A lesão causou a perdacontrole do lado esquerdo do seu corpo. Gedroits fez uma incisão na cabeça do paciente, abriu as feridas com uma pinça e retirou três grandes pedaçosestilhaços.
Um punhadooutros pequenos estilhaços também foi removido. Após a operação, o paciente pediu um cigarro. "Aqui - tente com a mão esquerda", disse Gedroits. Para a satisfação dela, ele foi capazsegurá-lo.
Aprendendo com os ferimentos
A médica fez anotações extensas sobre os ferimentos que tratou. Também escreveu sobre os tiposarmas que os causaram. Por exemplo, ela descobriu que fragmentosgranadas e bombas explosivas deixavam uma marca amarela na pele.
Com o passar dos meses, o clima esfriou. Um dos maiores desafios que Gedroits e seus colegas enfrentavamseu trem hospitalar era justamente as baixas temperaturas, que afetavam gravemente os pacientes hospitalizados nas tendas e os soldados feridos que voltavam do front. Alguns chegaram a sofrer queimaduras por frio.
Mas,janeiro daquele ano, um vagão que funcionava como centro cirúrgico foi adicionado ao trem - um importante complemento nas instalações. No mês seguinte, o hospital móvel foi enviado ao longo da estradaferroMukden para as minas pertoFushan, onde se encontravam muitos homens feridos.
Nas primeiras quatro semanas, Gedroits realizou nada menos que 56 operações. Pacientes convalescentes foram colocadosvagões adicionais, aquecidos, onde podiam se recuperar com maior conforto do que as tendas ao ar livre.
Mas foi nessa época que o controle do Exército russo sobre a região começou a se afrouxar. Os japoneses realizaram um ataque inteligente durante a famosa BatalhaMukden. Em 22fevereiro, Gedroits e seu trem foram obrigados a recuar. Foi neste dia que ocorreu a ousada fuga que abre esta reportagem.
Em suas anotações, Gedroits descreveu principalmente a dificuldade apresentada pelas lesões abdominais.
Médicos militares estavam bastante familiarizados com este problema na época, diz o cirurgião aposentado e historiador britânico Michael Crumplin. Em muitos casos, os cirurgiões optavam por não intervir -vez disso, os soldados com ferimentos abdominais seriam simplesmente monitorados na esperançaquecondição melhorasse. Muitas vezes, o paciente morria.
Mas, contrariando o que era praxe na época, Gedroits interveioalguns casos, realizando laparotomias - incisões exploratórias do abdômen - para ver se conseguia interromper o sangramento ou drenar o excessolíquidos, por exemplo.
De acordo com Bennett, Gedroits descreveu as vantagensfazer esse procedimentosuas anotações nos anos seguintes. Neles, destaca a necessidadeque os exames sobre os abdomens feridos deveriam ser concluídos o mais rápido possível.
Crumplin explica que, como os músculos da parede abdominal são muito apertados, a anestesia deve ser usada para relaxá-los durante as operações. É possível conter hemorragias e fezes que vazem do intestino, mas o riscoinfecção continua alto.
Há também grandes vasos sanguíneos suprindo o intestino; qualquer corte mal feito pode ser fatal. E muitos órgãos vitais - como o pâncreas - estão próximos, aumentando os riscosmorte se a operação não der certo.
Além disso, não há certezaque o intestino se recupere uma vez operado.
"Todo o intestino parafuncionar, a barriga se distende, você vomita e morredesidratação", diz Crumplin. "As cirurgias na região abdominal trazem consigo enormes desafios".
Gedroits parecia ter conhecimentotudo isso, mas permaneceu indiferente.
Aprimorando o atendimento
Seu trabalho chegou a ser mencionadoum relatório britânico sobre o serviço médico russo durante a Guerra Russo-Japonesa, mas há poucos detalhes sobre ele. A faltadocumentação sobre as atividades da Gedroits significa, nas palavrasSteven Heys, chefe da escolamedicina da UniversidadeAberdeen, no Reino Unido, que "perdemos uma enorme oportunidade".
Gedroits descobriu que levar o trem-hospital o mais próximo possível do frontbatalha era crucial - como analisar alguns ferimentos dentroprazos específicos. Três horas ou menos para feridas abdominais, por exemplo. Ela fez, inclusive, anotações sobre o melhor tipobandagem para usardeterminado estágio do tratamento.
Se outros tivessem prestado atenção a essas percepções, as baixas durante a 1ª Guerra Mundial poderiam ter sido reduzidas, acrescenta Heys: "Afinal, seus registros se tornaram públicos1905, dez anos antes do início da guerra".
Findo o conflito, a vidaGedroits não ficou menos atribulada. Ela retornou ao posto que tinha na fábrica, expandindo o hospital que administrava ali. Alguns anos depois, passou a trabalhar para a família real russa.
Como cirurgiã no hospital do palácio Tsarskoye Selo, chegou a ensinar até a imperatriz Alexandra e suas filhas Tatiana e Olga as técnicas básicascirurgia. Em uma foto, a própria imperatriz é vista entregando instrumentos a Gedroits enquanto ela realiza uma operação.
Mas Gedroits não era bajuladora real. Conta-se que ela teria empurrado o confidente da imperatriz, Grigori Rasputin, quando ele se recusou a sairseu caminho. Em 1917, a revolução ameaçava a existência da família real russa. Gedroits voltou, então, a trabalhar como cirurgiã no campobatalha na 1ª Guerra Mundial. Acabou ferida e foi morarKiev, na Ucrânia.
Ali, Gedroits foi contratada para ensinar cirurgia pediátrica e, posteriormente, nomeada professora.
Mas a medicina não eraúnica paixão. Ela se tornou poeta, publicando vários livros. Em Kiev,excentricidade era notada pelos moradores locais. Gedroits era conhecida por suas roupas masculinas,voz profunda e seu relacionamento íntimo com mulheres. Muitos dizem que ela era lésbica.
Em 2007, um artigo na revista científica Clinical and Investigative Medicine lamentou o fatoque o mundo parece ter se esquecidoGedroits. Ela é um exemplo clássicocomo o conhecimento e a experiênciabenefício dos outros podem se perder. Em parte por causa das circunstâncias, mas também, talvez, porque a sociedade prefira prestar atenção a certos tipospessoasdetrimentooutras.
"Estamos celebrando muita gente hojedia, mas nos esquecemos dessa mulher incrivelmente bem-sucedida e muito interessante", diz Wilson.
As probabilidades estavam contra ela, acrescenta Stapleton.
"Ela era aliada da família real, mulher, contrariava as normas sociais - publicava (seus livros)russo. Qualquer uma dessas coisas seria usada contra ela", explica ela.
"Tudo isso combinado impediu que ela ganhasse o reconhecimento que deveria".
Vera Gedroits morreu1932 e foi enterradaKiev. Segundo relatos, seu túmulo teria sido cuidado por muitos anos por um arcebispo que ela havia tratado quando jovem. Quando ele morreu, escolheu ser enterrado ao lado dela.
Parece uma pena que a fascinante históriavidaGedroits não seja conhecida mais amplamente. O primeiro pensamentoStapleton, ao descobrir a história extraordináriaGedroits, ainda parece perfeitamente adequado: a vida dela não valeria um filme?
- Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Future.
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