'Parece que estamos vivendo novamente sob o comunismo': os novos livrosHistória difundidos pelo governo na Hungria:
"Considero seu país o nosso pequeno grande irmão. Pequeno se levarmosconta as nossas diferenças nas respectivas extensões territoriais e grande pelos valores que nós representamos que podem ser resumidosquatro palavras: Deus, Pátria, Família e Liberdade", afirmou Bolsonaro.
Em 2019, o governo húngaro tomou dos municípios o controle sobre as escolas públicas do país e substituiu os livros até então publicados por diferentes editoras independentes por obras do Instituto Húngaro para Pesquisa e DesenvolvimentoEducação (OFI, na siglahúngaro).
A áreaHistória foi uma das que gerou maior preocupação entre os professores. Na avaliaçãoMiklósi, que dá aulas há maistrês décadas, o conteúdo foi comprometido para que se encaixasse na ideologia nacionalista e na visãomundo do primeiro-ministro eseu grupo.
"Nos tempos do comunismo as escolas só usavam os livros publicados pelo Estado - e estes eram repletosconteúdo ideológico", pontuouentrevista à BBC News Brasil.
"Houve a mudançaregime, passou a existir um mercadolivros didáticos, com diversidade, uma pluralidadepublicações. E agora estamosvolta àquele cenárioque as escolas só podem usar livros publicados pelo Estado, cheiosconteúdo ideológico."
O professor cita alguns exemplos.
Um deles envolve a própria fundação da Hungria. Conforme a teoria mais aceita,895 tribos húngaras nômades chegaram à Bacia do Cárpato "empurradas" pelos ataquesoutras tribos nômades que vinham conquistando novos territórios.
"Mas essa narrativa não é gloriosa o suficiente para os ideólogos do governo", diz o professor,forma irônica. "Então os livros passaram simplesmente a omitir essas informações."
Nos capítulos sobre história medieval, ele acrescenta, uma parte do conteúdo é reservado aos monastérios e às santas, retratadas como exemplo do que as mulheres húngaras deveriam aspirar a ser.
"E há uma ênfase grandehistória militar,oposição à história que retrata as pessoas comuns, como era a vida dessas pessoas. Essa era uma tendência que vinha ganhando protagonismo até a chegada do atual regime e que foi colocadalado para, mais uma vez, dar lugar a uma narrativa oficial", avalia o professor.
A mensagem "patriótica" também interfere na forma como os imigrantes são retratados. Logo após a adoção dos livros didáticos promovidos pelo governo, uma reportagem da CNN chamou atenção para um livrohistória para alunosensino médio que trazia discursos do primeiro-ministro sobre os "perigos da migração" eque afirmava que a Hungria era um país "homogêneo".
O ataque aos imigrantes é recorrente no discursoOrbán, que2015, no auge da crise migratória que levou milhõesrefugiados à Europa, ordenou a construçãouma controversa cercaferro na fronteira entre Hungria e Sérvia para evitar que os migrantes passassem pelo território húngaro.
Os problemas com os livros didáticos vão alémquestões da esfera ideológica, diz a Átlátszó, organização sem fins lucrativos que monitora o setor público no país. Em um relatório publicado no início deste ano, a entidade chama atenção para uma sérieerros "práticos" nos novos livroshistória, como a localizaçãocidades nos mapas.
Em suas manifestações oficiais, o governo justifica o controle sobre o ensino sob o argumentoque faltava estrutura aos municípios e afirma que as mudanças fazem parteuma estratégia para que o setor ganhe eficiência e seja melhor financiado.
O novo currículo escolar e os ataques a professores
Um ano depoismudar os livros didáticos,2020, o governo alterou também o currículo escolar. A ideia era torná-lo mais "patriótico".
Miklósi se manifestou publicamenteforma crítica, especialmenterelação à orientação para que os professoresHistória não falassem sobre as batalhas perdidas pelo país no passado, apenas sobre as vitórias militares.
"Me tornei o inimigo público número um do momento", diz ele, referindo-se aos ataques que passou a sofrer da imprensa favorável ao governo.
"Durante três meses, a cada dois dias saía alguma coisa me criticando, dizendo que eu só queria ensinar aos jovens sobre as batalhas que os húngaros perderam."
Nos 12 anosque Orbán está no poder, a liberdadeimprensa tem sido gradativamente cerceada no país. Hoje, a grande maioria dos meioscomunicação é direta ou indiretamente alinhada ao governo - mais500 fazem parteuma fundação pública criada no fim2018.
Com a exposição no noticiário, Miklósi conta ter recebido uma sérieameaças por e-mail e por telefone.
"Isso tem um peso emocional enorme."
Com medo da repercussão, são muitos os que preferem calar, diz ele, citando o casodois professoresHistória que, depoiscriticarem um vídeo financiado pelo governo exaltando um dos feitos militares do passado húngaro, viraram alvo dos ataques dos meioscomunicação.
"Durante dois dias, foram para cima deles, uma campanhaódio tão intensa que fez com que eles não abrissem mais a boca para dar a opinião profissional sobre nada."
Perdaautonomia das universidades e centropesquisa
O cientista político Zsolt Enyedi, professor da Central European University (CEU), foi diretamente afetado pela "cruzada" na educação.
Em 2018, a universidade tevedeixar quase todas as operaçõesBudapeste, na capital do país, e transferi-las para Viena, capital da vizinha Áustria.
Mais extremo, o caso da CEU foi atípico, explicado pelo fatoa instituição ser financiada pelo bilionário húngaro George Soros, um dos "inimigos" eleitos pelo primeiro-ministro.
Soros é acusadofinanciar entidades supostamente interessadaspromover a imigraçãomassa e destruir o país. A campanhareeleiçãoOrbán2018 chegou a espalhar outdoors com a foto do filantropo e os dizeres "Não vamos deixar George Soros rir por último".
As mudanças na educação começaram justamente após a última eleição, no terceiro mandato consecutivo do primeiro-ministro.
"Orbán não mexeu na educação nos dois primeiros mandatos. Se limitou a tirar bastante dinheiro do orçamento, direcionado para áreas como o esporte. Era como se ele aceitasse que a educação sempre seria gerida por pessoas com certo nívelautonomia, que talvez pensassem diferente dele", relata Enyedi.
"Mas depoisvencer duas eleições e garantir maioria constitucional no Parlamento, ele decidiu interferir na educação também."
Na educação primária, a administração foi transferida para muitas igrejas, algumas cuja cúpula é próxima do primeiro-ministro.
A educação superior e a pesquisa científica também perderam autonomia. Nos últimos anos, o governo promoveu uma espécieprivatização do ensino superior, com a transferência do controleuniversidades públicas para fundações privadas com conselhos compostos por membros indicados pelo governo, muitas vezes ex-ministros ou empresários com ligações com o premiê.
Em julho 2019, milhares foram às ruasBudapeste para protestar contra uma lei recém-aprovada que permitia ao governo controlar mais40 institutos ligados à Academia HúngaraCiências, como noticiou a revista Nature na época.
Em setembro2020, a capital novamente foi tomada por milharesmanifestantes contra a perdaautonomia da UniversidadeTeatro e Cinema, na ocasião a sétima que passaria a ser gerida por uma fundação ligada ao governo.
Em abril deste ano a Hungria passa por novas eleições e, pela primeira vezmaisuma década, Orbán vai enfrentar uma oposição unificada. As pesquisasopinião refletem a polarização da sociedade húngara, com o rival Peter Marki-Zay bem posicionado.
O professor da CEU chama atenção, contudo, para o fatoque, mesmo que Orbán e seu partido, o Fidesz, saiam derrotados nas urnas, parte das mudanças feitas duranteadministração não são facilmente reversíveis. Muitas delas foram transformadaslei e incluídas na Constituição, graças à maioria com a qual o primeiro-ministro tem contado no Legislativo.
No caso das universidades, ele exemplifica, os membros do conselho à priori têm cargos vitalícios.
"Agora que tem controle total sobre a sociedade, Orbán acredita que pode construir um arcabouço institucional para arregimentar as novas gerações paraideologia - tenta construir algo que dure ainda mais que ele."
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