'O momentoque perdi a pessoa que mais amava para o QAnon':
A conspiração surgiu no sitemensagens online 4Chan2017, com postagens atribuídas a alguém que afirmava ser um insider do governo com autorizaçãosegurançanível "Q" ultrassecreto. Usando o pseudônimo "Q", essa pessoa dizia estar vazando informações sigilosas.
Muitos seguidores do QAnon acreditam que a posse do presidente Joe Biden foi falsa e que Trump logo será reintegrado como líder. Na era da covid, alguns seguidores também acreditam que as vacinas estão sendo desenvolvidas pelos ricos para controlar as mentes das massas.
Os seguidores acham que esses segredos um dia serão revelados ao grande público e levarão a um ajustecontas, culminando na prisão e execuçãopessoas importantes, como a ex-candidata presidencial democrata Hillary Clinton.
Para Nicole, o QAnon é completamente estapafúrdio. Mas, paramãe, as teorias eram fatos concretos e, ao se recusar a acreditar nisso,filha estava optando por ficar do ladouma "cabala" do mal. Embora não fossem próximas quando ela era jovem, as duas passaram a ter um relacionamento caloroso nos últimos anos, depois que Nicole virou mãe.
"Ela foi uma avó maravilhosa", disse Nicole. "Ela me apoiou muito. Quando eu entravacolapso mental com o bebê chorando a noite toda, ela dizia, 'venha ficar comigo por algumas semanas', e ela sempre estava lá me ajudando com meus filhos".
Quando Nicole começou a cursar a universidade,mãe se gabava para as amigascomo estava orgulhosa. Era o relacionamento que Nicole sempre sonhara. Então, no ano passado, a mãeNicole assistiu a um filme que acusa a imprensamanipulação generalizada.
"E foi isso. Ela entrou instantaneamente neste mundo QAnon."
Nicole inicialmente tentou aceitar as novas crençassua mãe. Quandomãe mandava um artigo e perguntava o que ela achava, Nicole lia e tentava refutá-lomaneira respeitosa. Embora ela achasse que os artigos que estava recebendo eram "malucos", ela não percebeuimediato no quemãe estava se afundando.
Então, um dia no ano passado,mãe lhe enviou um artigo com uma listamais100 celebridades que se opunham ao então presidente Trump. Essas celebridades, afirmava o artigo, seriam presas e executadas ao vivo na TV.
"Eu falava 'por que você quer isso'? Por que você sequer iria querer ver algo assim?", diz Nicole.
A mãeNicole respondeu que as celebridades listadas, como Beyoncé e Ellen Degeneres, "cultivam" sanguecrianças para manterjuventude e energia."Foi quando eu soube que ela fazia parteuma seita. Uma seita da morte."
Por que as pessoas se perdemconspirações
Embora seja difícilmedir o apoio ao QAnon, umcada cinco americanos disse acreditaralgunsseus princípios,acordo com uma pesquisa recente do instituto Public Religion Research Institute.
Pessoasdiferentes origens podem ser levadas a acreditarteoriasconspiração. Segundo os especialistas, o que elas têmcomum é que muitas vezes procuram preencher um vaziosuas vidas.
"As teorias da conspiração tendem a ser particularmente proeminentestemposcrise", disse a professora Karen Douglas, psicóloga social da UniversidadeKent, que se especializoupsicologia das teorias da conspiração.
"As pessoas estão procurando explicações que as ajudem a lidar com situações difíceis quando há muita incerteza e informações contraditórias. Elas também podem estar procurando por respostas simples que as façam se sentir melhor, e as teorias da conspiração podem parecer oferecer essas respostas simples."
As pessoas recorrem a essas teorias "quando necessidades psicológicas importantes são insatisfeitas ou frustradas". Eles podem precisar se sentir bem informados, ou as teorias podem dar-lhes uma sensaçãosegurança e proteção, disse ela.
Estudos feitos por cientistas políticos também encontraram semelhanças entre como funcionam as comunidades políticas e as teorias da conspiração. Por exemplo, os republicanos nos EUA têm maior probabilidadeacreditarteoriasconspiração sobre o governo quando um democrata é presidente e vice-versa. QAnon é um pouco diferente, pois é uma teoria da conspiraçãodireita que floresceu sob um presidente republicano.
Para parentes, ver isso acontecerfora com entes queridos, pode ser devastador.
"As pessoas costumam entrarcontato comigo para falar sobre parentes seus que foram 'perdidos' para as teorias da conspiração", diz Douglas. "Muitas vezes me perguntam o que podem fazer para 'reencontrar' seu amigo ou ente querido".
'Ele acha que há um rastreador do governo na vacina'
Às vezes, as pessoas também caem nessas teorias por razões sociais, tentando encontrar uma sensaçãocomunidade que se perdeu.
Em meio à pandemiacovid-19, que empurrou bilhõespessoas ao redor do mundo para o isolamento, nasceu uma nova linhateorias da conspiração — aquelas que afirmavam que o vírus era uma farsa e que as vacinas foram desenvolvidas para permitir que os poderosos controlassem as mentes das massas.
Para Lauren*, a obsessãoseus pais por QAnon significa que eles não comparecerão a seu casamento neste ano.
"Eu tive uma criação muito religiosa, meus pais são cristãos evangélicos e eles aderiram muito a isso", disse Lauren à BBC. "Posteriormente, eles se desviaram do aspecto religioso, mas ainda queriam aquele sensocomunidade, e eles acharam issooutro lugar".Em 2016, o paiLauren se interessou pela notícia falsa que ficou conhecida como"Pizzagate", uma teoria da conspiração que afirmava que Hillary Clinton dirigia uma quadrilhapedofilia baseada no porãouma pizzaria específicaWashington DC. A teoria levou um homem a disparar um rifle dentro do restaurantedezembro2016.
Agora, o paiLauren acredita que as vacinas da covid são "rastreadores do governo que vão matar todos nós". O noivoLauren estágruporisco para covid, por isso ela insiste que todos no casamento estejam vacinados. Ela sabia que essa seria uma conversa difícil que ela teria que ter com seus pais.
"Eu conversei com minha mãe sobre isso (...) minha mãe é apenas mais desinformada, e eu acho que ela é mais receptiva." Ela esperava que seus pais estivessem dispostos a fazer concessões e não perdessem aquele que seria um dos dias mais importantes da vidasua filha. Mas suas esperanças foram frustradas.
A mãe disse a ela: "Eu entendo o seu lado, mas não vamos ser vacinados."
A taque ao Capitólio
Na manhã6janeiro, Nicole notou uma postagem enigmáticasua mãe no Facebook. Ela não tinha ideia sobre o que ela estava se referindo, mas algo a deixou perturbada. Ao contrário das postagens longas e confusas habituaissua mãe, esta mensagem continha apenas uma frase: "Espere pelo show", seguida por emojisbomba.
Mais tarde naquele dia, Nicole viu no noticiário que uma multidão pró-Trump estava invadindo o CapitólioWashington, a capital americana. Foi uma das coisas mais chocantes que ela já tinha visto navida.
"Ela sabiaalgo?" Nicole se perguntou. "Pensando retroativamente... ela sabiaalgo por causaseus grupos, que algo estava para acontecer?"
Cerca500 suspeitos foram presos, e uma investigação sobre o que aconteceu naquele dia estácurso.
De acordo com relatórios recentes, uma investigação ampliada vai examinar se a Casa BrancaDonald Trump esteve envolvida no planejamento ou tinha conhecimento prévio sobre a invasão.
'O momentoque soube que meu melhor amigo tinha ido embora'
Quando eram adolescentes crescendoPensacola, na Flórida, Will e Zak eram inseparáveis."Eu consideraria Zak meu melhor amigo", disse Will Phillips, agora na casa dos 30 anos, à BBC. Ele até passou um tempo morando com Zak quando seus próprios pais estavam brigados. "Eu tenho um vínculo quase além das palavras com ele."
Os dois seguiram próximos da idade adulta, mas por volta da época da eleição presidencial2016, Zak começou a enviar mensagens enigmáticasseus grupos — coisas como: "Você deveria tomar uma pílula vermelha — você quer tomar uma pílula vermelha?" — algo que não fazia nenhum sentido para Will.
Politicamente, Will achava que ambos tinham ideias liberais. Mas depois que Trump ganhou a eleição2016, Will percebeu que Zak e outro amigo, Jimmy, ficaram, como ele mesmo disse, "um pouco mais descontrolados".
"Tornou-se uma espéciepiada entre nosso grupoamigos que suas opiniões eram meio extremas — mas não levamos isso tão a sério", disse ele. Mas logo foi difícil ignorar que suas opiniões estavam se tornando cada vez mais não apenas excêntricas, mas sinistras.
"Hojedia eu tenho muito medo deles", disse Will.
As coisas realmente mudaram2020, quando o país já fortemente polarizado enfrentou o coronavírus. A pandemiacovid-19 causou a pior desaceleração econômica do mundo desde a Grande Depressão1929, e durante grande parte do ano os EUA foram o epicentro do problema.
Ao mesmo tempo, a campanha para as eleições presidenciais polarizou os EUA ainda mais — e depois que Trump perdeu a eleição para Joe Bidennovembro, ele acusou seu oponente, sem provas,fraudar a eleição.
Houve uma batalha legal, mas Trump foi derrotadotribunaisdiversos Estados.
Pouco depois da eleição, Will e Zak discutiram sobre os resultados.
Zak argumentou que o pleito tinha sido roubadoTrump e inundou Will com mensagens afirmando que Trump seria reinstaurado como o presidente legítimo, citando "evidências"que uma conspiração satânica o estava mantendo fora do cargo. Ele até mencionou o "Pizzagate".
"Zak ainda acredita que há crianças naquele porão (do restauranteWashington)", disse Will.
Ele tentou argumentar com Zak, mas quanto mais resistia, mais intensas as mensagensZak se tornavam. "Ele estava me insultando e me dizendo que eu sou mentiroso, que estou 'ajudando a transformar este paísum regime comunista' — eu nem sei o que isso significa!"
Quando Will disse a Zak que tinha votadoJoe Biden, Zak o chamoutraidor.
"Sinceramente, foi como um soco no estômago — como se minha mãe ou meu pai tivessem me dito isso", disse Will. "Crescemos juntos, vimos nossos pais se divorciarem, vivemos juntos na pobreza ... e agora ele está me dizendo que sou um traidor."
Will e Zak não se falam mais. Will se lembra do último anosua amizade: "Talvez seja por isso que continuei ouvindo o que ele dizia, só para ver se havia uma formarecuperá-lo."
Will também revelou que seu ex-amigo Jimmy foi vistoum vídeo participando da invasão do Capitólio.
Ele denunciou o vídeo ao FBI.
'Eu reúno as vítimas do QAnon'
Jitarth Jadeja,33 anosSydney, Austrália, passou 18 meses mergulhado nas teoriasQAnon. Ele só pensava nelas, até que ficou impossível conversar com qualquer pessoa, mesmo comfamília, sobre qualquer outro assunto que não fosse o QAnon.
Isso até que um dia,junho2019, ele finalmente deu um "reboot" navida.
Na época, ele havia iniciado um cursotratamento para um problemasaúde mental. Aos poucos as coisas estavam ficando mais claras para ele.
"Eu estava sentado na frente do meu computador ... e pensei: 'O que eu faço agora ... eu estou errado. Isso é o principal, eu estou errado.'"
À medida quesaúde mental foi melhorando, e ele foi se acostumando com a vida pós-QAnon, ele refletiu sobre o efeito devastador que os últimos 18 meses haviam tido emfamília. Ele postou sobre suas experiências no Reddit: "meio que derramei todos os meus sentimentos e emoções". Ele esperava ser "dilacerado", mas, disse ele, "aconteceu o exato oposto".
"Foi como se as pessoas lá me dessem permissãonome da sociedade, tipo, 'você errou, mas está tudo bem, você é humano'. Eles me deram permissão para reconquistar um poucodignidade e respeito próprio. Se eles não tivessem feito isso, eu não sei o que teria acontecido, eu não estaria aqui. "
Cercaum mês depois, ele descobriu um novo fórum no Reddit para ajudar a apoiar pessoas cujos entes queridos haviam sido radicalizados pelo QAnon. Ele começou a postar sobre suas experiências lá. De acordo com Jitarth, havia apenas cerca400 usuários quando ele entrou, há dois anos. Agora, há mais180 mil.
Depoisum tempo, por causatoda a ajuda e apoio que Jitarth deu às pessoas no fórum, ele foi nomeado moderador, uma função que ainda mantém. Acimatudo, ele deseja dar às pessoas a esperançaque seus entes queridos, como ele, voltem a ser normais.
Nicole, no entanto, tem poucas esperanças.
"Eu nunca conheci meu próprio pai, então a única pessoa que estava realmente presente na minha vida não está mais. Estou passando pelo processolutoperder minha mãe sem que ela tenha morrido. E eu simplesmente não vejo como tê-laminha vida mais", lamenta.
*Alguns nomes foram alterados
ImagensAngelica Casas.
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