Como os EUA perderam a 'guerra ao ópio' no Afeganistão:
É novembro2017. A câmeravisão noturna mostra um conjuntoruasuma cidade da provínciaHelmand, polocultivopapoula no Afeganistão.
A câmera tenta centrar no alvo antesos mísseis serem disparados.
São nove disparos no total, cada um deles alvejando uma edificação,uma sérieexplosões quase simultâneas.
É um exemplo marcantebombardeiosprecisão, que usam algumas das mais caras e avançadas tecnologias militares já produzidas, incluindo um bombardeiro estratégico B-52, um caça F-22 Raptor e um disparadorfoguetes M142.
O vídeo desse ataque, no qual oito civis afegãos foram mortos, foi parteuma série postada online naquele ano pelos militares americanos (aqui,inglês) como evidência do avanço da campanhabombardeios chamada"TempestadeFerro".
O objetivo era destruir laboratóriosheroína no âmago do comércioópio promovido pelo grupo extremista Talebã - que agora retomou o controle do país - e que já lhe rendia, na época, cercaUS$ 200 milhões por ano. Os bombardeios americanos atingiriam cerca200 alvos semelhantes.
No entanto,acordo com um relatório publicadoabril2019 pela unidadepolíticas sobre drogas da universidade britânica London School of Economics, a Operação TempestadeFerro não teve exatamente o impacto desejado.
O estudo identificou que, apesarcontar com excelentes informaçõesinteligência, a campanha multimilionáriabombardeios vinha tendo um efeito mínimo sobre o Talebã e sobre as redestráfico dentro do Afeganistão.
Dados mais recentes apontam para o crescimento do cultivopapoula, a matéria-prima do ópio e, por consequência, da heroína, que é uma das principais fontesrenda do Talebã.
Em maio2021, uma investigação da Agência da ONU contra Crimes e Drogas (Unodc) junto à Agência NacionalEstatísticas do Afeganistão estimou que a áreacultivo da papoula para ópio cresceu 37%2020relação ao ano anterior - com 224 mil hectares, essa áreacultivo é uma das maiores já registradas no país e tinha potencialproduzir 6,3 mil toneladasópio e gerar lucros ilícitosUS$ 350 milhões.
Reportagem da agência Reuters publicada na segunda-feira (16/8) calcula que os EUA tenham gastado maisUS$ 8 bilhões ao longo15 anos tentando impedir, por meiobombardeios e destruiçãolavouras, que o comércioópio continuasse sendo uma fonterenda ao Talebã. Mas a estratégia não deu certo: o Afeganistão continua sendo o maior fornecedorópio ilícito do mundo, status que deve ser reforçado com a retomada do poder central pelo grupo fundamentalista, aponta a Reuters.
Os bombardeios
O que, então, os americanos estavam atacando naquele bombardeio2017?
O pesquisador David Mansfield, especialista no tema, fez essa pergunta a si mesmo enquanto assistia ao vídeo do ataque.
"Foi bizarro", ele disse à BBC News2019. "Eu estava sentado (na minha casa) no Reino Unido, a milharesquilômetrosdistância, assistindo àqueles ataques inacreditáveis. A tecnologia usada pelos americanos era surpreendente. Esses bombardeios pareciam ter uma ótima precisão, mas eu pensava: qual é o alvo?"
Mansfield estuda a indústria afegã do ópio há maisduas décadas. Ele explicou que a produção da heroína deixa certos rastros, e ele não estava vendo nenhum deles.
No entanto, os americanos afirmaram que aquele ataque foi um sucesso.
Foram necessários mesestrabalhodetetive usando análises geoespaciaisimagenssatélite e investigaçãocampo até Mansfield ter a sensaçãoter entendido o desenrolar dos fatos.
E a conclusão dele causou surpresa. Apesar da grande injeçãorecursos por parte dos EUA, Mansfield eequipe se convenceram,2019,que a Força Aérea americana estava usando tecnologias caras eúltima geração para bombardear meras choupanasbarro.
O avanço da indústria da heroína
O ópio está profundamente intrincado na históriaconflitos do Afeganistão, palco da maior guerra da história americana.
Os lucros do comércio da heroína são usados para financiar tanto o Talebã quanto grupos considerados terroristas, como o Estado Islâmico e a Al-Qaeda.
A heroína também movimenta a corrupção tão corrosiva à sociedade civil no Afeganistão.
Em 2016, a BBC viu uma amostraquão institucionalizado o cultivopapoula era no país, ao visitar uma fazenda dentrouma área que, ao menosteoria, era controlada pelo (agora erradicado) governo afegão.
Os agricultores do local não viam qualquer necessidadeesconder que ali era cultivada papoulaum espaço a meia horadistância do aeroporto Mazar-e-Shafir, ao lado da rodovia principal da região.
Um agricultor, Taza Meer, parecia tranquilo sob a proteçãoum homem que carregava um AK47seus ombros.
"Não se preocupe com ele", disse Meer à reportagem. "Ele é um policial local".
A produçãoópio era,teoria, um crime grave no Afeganistão, punido com a penamorte sob o governo apoiado pelo Ocidente. Mesmo assim, aquele policial assistiu à visita da BBC a uma plantaçãopapoula no auge da colheita.
Quando os EUA e o Reino Unido invadiram o Afeganistão,outubro2001, havia cerca74 mil hectares afegãos dedicados à papoula. Hoje, é três vezes maior, segundo o mais recente relatório da ONU.
E houve outra mudança adicional: no passado, o látex feitoópio era secado e traficado para fora do Afeganistão como uma pasta grudenta, que seria refinadaoutras partes do mundo. Nos últimos anos, porém, autoridades afegãs e ocidentais estimam que ao menos a metade do ópio afegão já saía do país processado na formamorfina ou heroína.
Isso torna seu tráfico muito mais fácil, alémaumentar consideravelmente os lucros dos traficantes e do Talebã - que recolhia, segundo estimativas2019, um "imposto"20% sobre esses lucros.
Nas ruas dos EUA
Esse pico na produçãoheroína ocorreu simultaneamente a uma epidemiaopioides nos EUA.
A Casa Branca declarou o problema como emergênciasaúde públicaoutubro2017, ante a estimativaque mais2 milhõesamericanos eram viciadosopioides - eum momentoque overdoses haviam se tornado a principal causamortes nos EUA, superando acidentescarro e violência armada.
Essa epidemiaopioides começou com a prescrição indiscriminadaanalgésicos, mas, à medida que o controle sobre esses remédios aumentou, pessoas viciadas passaram a recorrer à heroína ou a opioides sintéticos, como Fentanyl.
E, é claro, o Afeganistão é,longe, o maior produtorópio do mundo - as estimativas do Unodc sãoque o país seja a origemmais80% do ópio e da heroína globais (nos EUA, curiosamente, a maior parte do suprimentoheroína não vem do Afeganistão, e sim do México e da América do Sul, segundo dados2019 da AgênciaCombate às Drogas americana).
Mas, assim comoqualquer commodity, quando aumenta a oferta, os preços caem.
Diante da expectativaque a produção aumente sob o mando do Talebã, "mais produção faz com que as drogas fiquem mais baratas e acessíveis", disse à agência Reuters, nesta semana, Cesar Gudes, chefe do escritórioCabul da Unodc. "Estes são os melhores momentosque grupos ilícitos tendem a se posicionar (para expandir seus negócios)".
Ação militar
A lógica da operação TempestadeFerro era simples.
"Vamos atingir o Talebã onde dói, que é nas suas finanças", disse o comandante general John Nicholson,uma coletivaimprensa no dia seguinte à primeira ondabombardeios.
Cerca60% dos lucros do Talebã vêm do comércionarcóticos, então atacar essa fonte reduziria o financiamento do grupo e a ofertaheroína pelo mundo, concluíram os estrategistas americanos.
A inspiração veio da Síria, onde bombardeios aéreos americanos contra a indústria petroleira ilegal do Estado Islâmico destruiu plataformas, caminhões-tanque e outros equipamentos. A campanha foi considerada um sucesso, reduzindo dramaticamente as receitas do autoproclamado califado e dificultando a cooptaçãocombatentes.
Mas, como não é incomum na longa históriaconflitos no Afeganistão, não foi tão simples adaptar a ideia.
Processo improvisado
A produçãoheroína no Afeganistão não é um processo industrial, explicou David Mansfield à BBC. E os espaços improvisados onde os afegãos refinam o ópio sequer podem ser chamadoslaboratórios, segundo ele.
Não há jalecos brancos, locais esterilizados ou equipamentos adequados. A heroína costuma ser feitahabitações comuns afegãs - uma paredeargila com cercaseis choupanas construídas ali dentro.
E, como o processo expele gases nocivos, ele geralmente ocorrelugares mais abertos.
Ele é difícilser escondido, afirmou Mansfield, porque deixa vestígios bem específicosrestosfogueira, geralmentefileiras.
Um espaço ativorefinamento também terá pilhastamborescombustível, prensasextraçãomorfina, recipientesgás, carvão ou madeira (para o fogo) e barris químicos, alémmovimentopessoas.
Quando o Exército dos EUA divulgou 23 vídeos mostrando ataquessupostos laboratóriosheroína, Mansfield afirmou que apenas olhando para as imagens já conseguiu perceber que na maioria daqueles locais não havia nenhuma produção significativaheroína, porque "não havia os rastros dessa atividade".
Busca por evidências
Mas Mansfield sabia que, para explicar seu ponto, precisariamais provas.
Ele acionou a Alcis, uma start-up britânica especializadaanálise geoespacialfatos ocorridoslocais remotos.
Embora as coordenadas tivessem sido apagadas dos vídeos divulgados pelos EUA, foi possível identificar os locais dos ataques por meioimagenssatélites do Afeganistão e, assim, identificar o que havia acontecido naqueles locais antes dos disparosmísseis.
A Alcis conseguiu identificar 31 edifícios. De todos os locais examinados, apenas um deles estava, com certeza, produzindo ópio quando foi atingido pelo míssil americano - era uma edificação contendo cerca200 barris (e imagens termais mostravam esses barris com a cor branca, indicando que eles estavam quentes e ativamente envolvidos no processorefinamentoheroína).
Pesquisacampo
Em seguida, Mansfield reuniu uma equipepesquisadores afegãos para entrevistar as pessoas nas comunidades afetadas pelos mísseis americanos. Eles conversaram com donoslaboratórios, operadores e trabalhadores, e também com 450 agricultoresHelmand e outras áreas produtorasópio.
As entrevistas indicaram que a inteligência obtida pela Força Aérea americana era,fato, boa. A maioria dos locais examinados pelos pesquisadores havia sido usado como laboratórioheroína no passado mas - e este é o ponto-chave -, emgrande maioria, já não estavam mais ativos no momento dos ataquesmísseis.
Os entrevistados disseram que os laboratórios operavammodo intermitente e que todo o material usado na produçãoheroína era removido quando o local ficava fechado. Além disso, era possível montar um novo laboratório com facilidade,questãodias.
Ou seja, na ausênciasignificativos estoquesheroína, químicos e equipamentos dentro das edificações, seu valor prático, como alvo, era mínimo: Mansfield eequipe estimam esse valor entre US$ 10 mil a US$ 20 mil por edificação, no máximo.
"Qual é a perda, para uma organização narcotraficante, quando você essencialmente derruba um local, uma edificaçãobarro?", questionou.
Então, por que se dar ao trabalhoatacá-los?
"É uma pergunta difícil", afirmou Mansfield2019 à BBC. "Acho que os comandantes recebiam ordensseus chefesWashington dizendo que era preciso agir, e acho que eles estavam sendo cautelosos, tentando evitar mortescivis".
Mudançacomando
Mansfield não foi o único a questionar o valor estratégico dessa operação americana: também houve questionamentos por partealgumas autoridadesalto escalão.
A então secretáriaForça Aérea, Heather Wilson, demonstrou preocupação com os custos:entrevista coletivafevereiro2018, afirmou que "nós (EUA) não deveríamos estar usando um F-22 para destruir fábricasnarcóticos no Afeganistão".
O F-22 é o caça mais avançado do mundo. Cada aeronave custa US$ 140 milhões, e a horavoo custa ao menos US$ 35 mil.
Em agosto2018, o general Jeffrey Harrigian, então chefe do Comando Central da Força Aérea americanaDoha, afirmou que a estratégiaatacar fontesrenda escusas no Afeganistão "não estava funcionando tão bem quanto na Síria".
Até que,2setembro2018, o general John Nicholson foi substituído no comando das forças da Otan (aliança militar ocidental) e dos EUA no Afeganistão pelo general Austin "Scott" Millar.
Isso, na prática, selou o fim da campanha TempestadeFerro, havendo depois disso houve apenas dois disparosmísseis contra supostos laboratóriosheroína.
Millar passou na época a focaruma estratégia mais agressiva,alvejar o Talebã diretamente, com ataques aéreos e incursões.
Em 2019, quando a BBC questionou as tropas americanas a respeito das descobertasMansfield, a resposta foi: "todos os nossos esforços buscam criar as condições para um acordo político e resguardo dos interesses nacionais", disse uma porta-voz. "A grande maiorianossos disparos são letais contra o Talebã ou o Estado Islâmico."
A porta-voz não quis comentar, na época, a respeitose a Força Aérea estava deliberadamente atingindo alvos inativosforma a evitar mortescivis.
Que efeito, então, a operação TempestadeFerro teve na produçãonarcóticos? A resposta é: muito pouco.
Quando a iniciativa acabou, o Exército americano reportou que "a produçãonarcóticos no Afeganistão continuavaníveis elevados".
Relatórionovembro2020 do grupo Lessons for Peace, que contou com a colaboraçãoDavid Mansfield, diz que "acredita-se que o ópio seja o produto mais lucrativo traficado pelas fronteiras afegãs,termosrenda bruta. A ONU estima (com basedados2019) que a receita do comércioópio afegão tenha variadoanos recentes, entre US$ 1,2 bilhão e US$ 6,6 bilhões anuais,uma indústria que emprega centenasmilharespessoas".
"Detenções e interdições continuam tendo um impacto mínimo no cultivopapoula do país", apontou outro relatório, esse entregue oficialmente ao Congresso americano,julho deste ano, pelo Inspetor General da Reconstrução Afegã (Sigar, na siglainglês). "É um fracasso total", afirmou a jornalistas,29julho, John Sopko, chefe do Sigar, a respeito da política antidrogas no Afeganistão.
"Os EUA e seus parceiros internacionais continuamente deixaramlidar com a questão do cultivo da papoula", disse nos últimos dias à agência Reuters uma fonte do Exército americano, sob condiçãoanonimato. "O que vamos descobrir é que isso (o cultivo) explodiu."
Com reportagemJustin Rowlatt, da BBC News
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"To put it bluntly", he says, "these numbers spell failure."