'Nomadland': como é a vidamilharespessoas que vivem e viajamtrailers nos EUA:
McDormand interpreta com delicadeza e sobriedade uma mulher que, após ficar viúva e enfrentar a destruição econômica e socialsua cidade, se muda para um trailer com o qual embarcauma jornada sem destino definido.
O filme é uma adaptaçãoNomadland: Surviving America in the Twenty-First Century (Nomadland: Sobrevivendo aos EUA no século 21), um livro2017 da jornalista americana Jessica Bruder sobre o fenômeno das pessoas mais velhas que, no contexto da Grande Recessão2008, adotaram um estilovida nômadebuscaempregos sazonaistodo o país.
Junto com McDormand e o ator David Strathaim aparecem no filme - interpretando a si mesmos - Linda May, Charlene Swankie e Bob Wells, os três nômades que protagonizam o livro.
Em entrevista à BBC News Mundo, o serviçonotíciasespanhol da BBC, Wells diz não estar surpreso com o sucesso do filme.
"A históriaque se baseia é muito boa, McDormand é sensacional e eu estava muito confiante", diz este homem65 anos ebarba branca. Aos risos, ele brinca que "tolera" a repentina atenção da mídia.
"Tenho estado muito ocupado, mas sou grato pelo que estão fazendo. O filme é maravilhoso e acho que é bom para a minha comunidade."
Uma vida sobre rodas
A comunidade"nômades" dos EUA é composta por pelo menos 1 milhãopessoas que vivemcasas sobre quatro rodastempo integral, segundo dados da Associação da IndústriaVeículos Recreativos (conhecidos como RV na siglainglês etodos os tiposformas e tamanhos).
"Cerca25 anos atrás, decidi me mudar para um trailer porque me divorciei e não podia mais sustentar meu estilovida", diz Bob Wells, uma figura central na vida nômade moderna nos Estados Unidos e presidente da Homes On Wheels Alliance (Aliança das Casas Sobre Rodas).
"Um dos motivos pelos quais tentei tanto divulgar o conhecimento da vida nômade é que meu filho se suicidou e eu precisavaum motivo para viver, para acordar todas as manhãs".
"Sempre foi meu objetivo fazer com que as pessoas soubessem que elas têm opções, que existe uma outra maneiraviver, e me entreguei a esse propósito após a morte do meu filho", conta.
Como Wellsseus primeiros dias, muitas pessoas que entram nesta vida o fazem por necessidade.
Mas existe outro grupo, cada vez mais numeroso, que decide lançar-se nessa empreitada por apostar emprópria liberdade.
Apostando na liberdade
É o casoAmber Baldwin, uma americana49 anos que, há quatro, vendeucasa e quase todos os seus pertencesSeattle para morarum trailer com o qual viajou grande parte do país.
"Já fazia algum tempo que vinha pensandoviajartrailer, mas me envolvi com o trabalho e com o estilovida da 'América corporativa'", explica ela, falando da idílica Key West, no extremo sul da Flórida.
"De repente vi que não podia mais, estavaum emprego muito estressante, tinha problemassaúde e disse a mim mesma que não poderia continuar".
"Sempre tive paixão por viagens na estrada e achei que seria bom levar minha casa comigo, acompanhada do meu cachorro. Comecei a procurar nos canais do YouTube e finalmente me decidi, comprei um trailer, vendi a casa e comecei a viajar, trabalhando remotamente".
"Seis meses depois decidi que queria mais liberdade. Saí da empresa onde trabalhava e abri minha própria empresa online, um canal no YouTube,que, alémcompartilhar minhas viagens, ofereço conselhos práticos sobre a vida nômade e até sobre finanças pessoais."
Baldwin relatajornada e publica uma variedadecursos gratuitosstorychasing.com.
Desafio: Estacionar
Nos Estados Unidos, há uma grande quantidadeterrenos públicos nas quais os nômades podem estacionar seus RVs gratuitamente.
Eles são administrados por quatro órgãos: o EscritórioGestãoTerras, o Serviço NacionalParques, o Serviço FederalPesca e Vida Silvestre e o Serviço Florestal dos EUA.
"Você pode morar com seu traileruma cidade, mas sempre corre o riscoalguém bater àporta e dizer que você tem que sair", explica Bob Wells.
"Ou você pode viverterrenos públicos. Existem terrenos nos Estados Unidos onde você pode vivergraça, você só precisa se mudar a cada duas semanas. E isso não é ruim. Mudar a cada duas semanas não é um fardo."
A maioria dessas propriedades fica no centro e oeste do país, portanto, na Flórida eoutras áreas da costa leste, você deve estar disposto a pagar para passar a noiteum acampamento ou recorrer à criatividade.
"Existem estabelecimentos como (a rederestaurantes) Cracker Barrel ou lojas do Walmart que permitem que você use o estacionamento", diz Amber Baldwin.
"Existem aplicativos como o campendium e o ioverlander que fornecem informações sobre os tiposterreno, sejam públicos ou não. Se não consigo encontrar o que procuro, abro a visualizaçãosatélite do Google Maps e busco esses locais".
"Às vezes, estacionoáreas residenciais, mas gosto menos porque posso assustar os vizinhos. Não paro na frenteuma casa e saio muito cedo."
Nômades modernos
Não existe um único termo para definir esse estilovida.
Eles são "usuáriosRVtempo integral", "nômades digitais" (um conceito cada vez mais usado pelo surgimento do trabalho remoto que a pandemia trouxe) ou workampers (trocadilho entre trabalho e campistas).
Muitos deles têm mais60 anos, embora a pandemia tenha aumentado as vendastrailers ou casas sobre rodas a adultos entre os 20 e os 35 anos.
Emjornada contínua, esses nômades modernos intercalam o tempolazer com empregos temporários, seja limpando acampamentos, ajudando na colheita, substituindo funcionários ou como equipe adicional nas campanhasNatalgigantes como Amazon ou JC Penney.
No caso da Amazon, cujo exemplo é retratadoNomadland, a empresa organiza o programa CamperForcesetembro a dezembro, voltado especificamente para pessoas que moramcasas móveis. Como recompensa por seu trabalho, elas têm as despesas pagas no acampamento por três meses.
Camaradagem e solidariedade
Sem cair na idealização romântica das circunstâncias que levam seus protagonistas a uma vida sem endereço fixo, o filme dirigido pela cineasta Chloé Zhao oferece um retrato muito humano das relações que se formam nos acampamentos onde os nômades se encontram.
"Tendemos a ser introvertidos, gostamosaposentadoria ou isolamento, mas também precisamoscompanhia, comunidade, precisamospessoas para nos conectarmos", diz Bob Wells, esclarecendo que também existem nômades extrovertidos.
"Nesse estilovida, fazemos conexões mais profundas e rápidas. Tendemos a não ter amigos ou conexões superficiais. E acho que é predominantemente assim porque, quando nos encontramos, estamos nos mudando para outro lugar. Se eu te conheço, gostovocê e temos essa vidacomum, mas só vou te ver por alguns dias ou uma semana e depois vou embora... não temos tempo a perder. Nos conectamos um nível mais profundo por causa disso", explica.
Para Amber Baldwin, essa camaradagem foi uma agradável surpresa.
"Foi inesperado para mim ver o númeropessoas que você conhece e quão rápido você se torna amigo, especialmente se são nômadestempo integral", diz ela.
"Existe uma espécieconhecimento mútuo. Quem faz isso busca a liberdade, você constrói essa camaradagem porque tem esse denominador comum. Somos iguaismuitos aspectos".
"Vivemosum lugar para o outro e às vezes precisamosajuda. São pessoas que estão muito dispostas a dar uma mão e não pedem nadatroca. É uma das melhores comunidades para se viver, nunca me senti assim protegido", enfatiza.
Os efeitos das crises
A crise financeira global2008 teveorigem no colapso da bolha imobiliária nos Estados Unidos.
Agora, com a crisesaúde, econômica e social provocada pela pandemia covid-19, teme-se mais pessoas acabem por perder suas casas.
Wells compartilha desse temor, embora ressalte que com o dinheiro que o governo Joe Biden injetou na economia e com a moratória dos despejos, o verdadeiro impacto ainda não está sendo sentido.
"A ajuda do governo mantém as pessoas à tona, mas os alicerces são ruins, há rachaduras", diz ele.
"Em 2008, quando ocorreu a recessão global, os alicerces foram quebrados e desde então os ricos ficaram ricos e os pobres ficaram mais pobres e isso vai piorar agora".
"Em 5 ou 10 anos, a menos que mudemos nosso jeitoser ou nosso curso, as coisas vão ficar muito ruins. Os ricos serão incompreensivelmente ricos e os pobres serão incrivelmente pobres", lamenta.
Os comentáriosWells,parte refletidosNomadland, tornaram-se uma fonteinspiração para aqueles que desejam abraçar o estilovida nômade.
"Não há dúvidaque você pode viver sem tanta dependência do sistema", diz ele.
"Há muito trabalho lá fora, embora eles não paguem bem. O segredo é que, se você reduzir suas despesas ao mínimo absoluto, poderá sobreviver com uma renda mínima. Esse é o nosso objetivo."
Não se trata apenaspalavras ao vento. Wells luta para colocarprática o que pensa e defende. A organização que preside, da qual Suanne Carlson é diretora, representa um importante suporte para a comunidade nômade.
"Temos dois focos: encorajar e construir uma comunidade que aceite os novos nômades e, por outro lado, ajudar aqueles que não têm condiçõesmorar na estrada a ter acesso a uma casa móvel", explica Carlson à BBC News Mundo.
A "tirania" do sistema
No filme, a protagonista encontra nômades que expõem suas situações pessoais, algumas dramáticas, outras circunstanciais. A maioria, marcada pela rejeiçãoum sistema que lhes deu um pontapé.
"Existem dois tipostirania: a tirania do dólar e a tirania política. Por alguma razão, no mundo moderno temos medo da tirania política, mas somos escravos do dólar", denuncia Wells.
"A principal dificuldade é quebrar a tirania do dólar e você faz isso morandoum veículo e sem ter que pagar aluguel. Depoistirar o locador da equação, você pode viver muito melhor".
"Imagine onde você estaria agora se não precisasse pagar aluguel ou no primeiro diacada mês não precisasse pagar uma hipoteca, como seriavida. Substancialmente melhor, eu diria."
Para Amber Baldwin, a precariedade financeira não foi a motivação que a fez se tornar uma nômade, mas ela entende a mensagemWells.
"Nunca me senti assim, como um hamster na rodinha. O 'sonho americano' é comprar uma casa, ter um bom emprego e ter filhos. Significa também contrair dívidas. Não acredito nesse sonho. Digo que o meu é o 'sonho americano 2.0'. E, para mim, ele significa liberdade".
"Sinto, e não sou a única, que cada dia é uma bênção, gosto tanto que não consigo imaginar fazendo outra coisa."
Esse texto foi inicialmente publicado05/04/2021 e atualizado26/04/2021.
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