Coronavírus: como o Peru se tornou o país com a maior taxamortalidade por covid-19 no mundo:
Em termos absolutos, até sexta-feira (28/08), o Peru era o nono país com mais mortes no mundo, com um total oficial28.277; e o quinto com mais infecções, com 621.997 casos.
O númeromortes diárias diminuiu ligeiramente na última semana. Na quarta-feira, o Ministério da Saúde registrou 123 mortes, o menor número desde junho.
Mas na quinta-feira esse número subiu novamente para 153.
Vários motivos — problemassaúde pública, econômicos e sociais, limitações estruturais e erroscurto prazo — explicam por que o Peru chegou a esta situação, disse à BBC News Mundo, serviçoespanhol da BBC, Hugo Ñopo, principal pesquisador do grupo Grade.
O Grade é um instituto peruano privadopesquisas sobre desenvolvimento.
Confira abaixo quatro fatores que explicam a alta mortalidade no Peru por covid-19.
1. Deficiências no sistemasaúde
O dr. Eduardo Gotuzzo, professor emérito da Universidade Cayetano Heredia,Lima, e ex-diretor do InstitutoMedicina Tropical daquela instituição, aponta como um dos fatores da crise o fatoo Peru realizar baixos investimentossaúde, com escassezleitos hospitalares eterapia intensiva, funcionários mal pagos e um único laboratório capazprocessar testes moleculares.
Os gastos públicos com saúde, como porcentagem do crescimento econômico, aumentaram ligeiramente nas últimas duas décadas.
Em 2017, eles atingiram 4,9% do PIB, segundo a última estimativa do Banco Mundial.
Mas ainda é "um país com baixo gasto per capita com saúde, pelo seu nível relativodesenvolvimento", diz o economista Elmer Cuba, da consultoria Macroconsult.
No início da pandemia, o Peru tinha 100 leitosterapia intensiva e 3 mil leitoshospital.
No finaljunho, contava com 18 mil leitos hospitalares, segundo o presidente, Martín Vizcarra, e hoje conta com 1.660 leitosterapia intensiva.
"Mas a pandemia está sempre um passo à frente", disse o dr. Gotuzzo à BBC News Mundo.
O dr. Ernesto Gozzer, especialistaSaúde Pública da Universidade Cayetano Heredia, reconhece que "o estado dos serviçossaúde potencializou o efeito sobre a mortalidade a partircovid-19", mas não acredita que as condições do setor sejam o único fator que explica a devastação causada pela pandemia.
"Se fosse assim, os países com condições piores do que as nossas estariamsituação muito pior", disse Gozzer.
2. Cuidados intensivosvezprevenção
Para Gozzer, o fator mais importante é "que havia uma abordagem mais centrada no hospital do que preventiva oudetecção".
"Apesar do sucesso das medidas iniciais (fechamentoescolas, fronteiras, quarentena), o enorme aumento na disponibilidadeleitosinternação e terapia intensiva (UTI) e a dedicação do pessoalsaúde e funcionários encarregadosresponder à pandemia, os resultados não foram os esperados", disse Gozzer.
Ao concentrar esforços no aumento do númeroleitosterapia intensiva, Gozzer acredita que "medidas foram tomadas no ponto final (da doença) que uma pessoa com covid-19 chega, um leitoterapia intensiva, e que pode terminarmorte", disse ele.
"Aquelesnós que trabalham na saúde pública estão procurando conter surtos, para que (os pacientes) não cheguem a precisarcuidados intensivos", disse Gozzer.
Essa abordagem fez com que os pacientescovid-19 fossem atendidos apenashospitais, ao invésterem a possibilidadeir a postossaúde ou centros médicos (atendimento ambulatorial) nos estágios iniciais da doença, explica Gotuzzo.
Gozzer também critica o governo por ter utilizado mais testes sorológicos rápidos para diagnosticar covid-19, quando servem mais para controle epidemiológico,veztestes moleculares.
Os testes rápidos não dizem se alguém está infectado no momento, mas mostram infecções anteriores. Os testes moleculares confirmam os casos atuaiscovid-19.
Até a sexta-feira, o Peru havia diagnosticado 154.197 casos com testes moleculares e 467.800 (praticamente três vezes mais) com testes rápidos.
Mas não só faltavam mais testes moleculares, mas também laboratórios que permitissem que fossem processadosmassa, diz Gotuzzo.
No início da pandemia, o Peru tinha um único laboratório capazprocessar testes moleculares.
Em junho, o país já tinha 12 e10agosto eram 35, entre laboratórios públicos, privados e universitários.
"Muitas pessoas pegam, não têm um diagnóstico precoce e contaminam suas famílias", disse Gotuzzo.
"Ao não identificar os casostempo hábil, não acompanhá-los, não isolá-los e não rastrear os contatos, você não contém a doença. A epidemia foi se espalhando ainda mais e começou a sobrecarregar os serviços, os hospitais", diz Gozzer.
"O tempo todo parecia que eles estavam preocupadosbuscar mais leitosUTI, mais leitosUTI, quando (ter mais leitosUTI) é o resultado que deve ser evitado", diz Gozzer.
"Se tenho 10 casos e eles viram 100, 200, mas estamosolho neles, esses casos se encerram e não precisamos dos leitosUTI. Mas se deixamos porque não fizemos testes moleculares, nem rastreiocontatos, vão logo a mil, 10 mil e não há sistema que resista. É verdade que o sistema é deficiente e precisa ser reformado, mas me parece que o principal a se resolver", diz Gozzer.
3. Escassezoxigênio
Outro problema que afetou a luta contra a pandemia foi a escassezoxigênio.
Em vários momentos da crise, a imprensa divulgou imagensgente formando longas filas para conseguir oxigênio, demanda que levou muitos fornecedores a elevarem preçosinsumos, com aberturapostos clandestinosvendaoxigênio.
Em junho o governo declarou o oxigênio um "produtointeresse nacional" e encomendou comprascercaUS$ 25 milhões do produto para satisfazer a demanda.
"A faltaoxigênio influiu na mortalidade, porque as pessoas que precisavamoxigênio e que poderiam ter ser curado, provavelmente viram a doença se agravar e com isso precisaram ser internadasUTI, ou nem mesmo chegaram à UTI", diz Gozzer.
4. Reação do governo
No início da pandemia no Peru,meadosmarço, o governo reagiu rapidamente e decretou umas das quarentenas mais restritivas da região.
Ao mesmo tempo, destinou algo como 9% a 12% do PIB para ajudar as pessoas que haviam perdido empregos (ou eram autônomas) e as empresas que tiveram problemasreceita e caixa.
Mas Hugo Ñopo acredita que faltou "uma reviravolta" nestas medidas para adaptá-las à realidade peruana.
Cerca71% da população economicamente ativa no Peru vive da economia informal ou desempenha atividades que fornecem renda diária. Essas pessoas não podiam ficarcasa sem trabalhar nas ruas.
Além disso, as pessoas precisaram ir a lugares com grandes aglomerações para se abastecer, como mercados. Em maio, o presidente Vizcarra disse que esses locais são "os principais focoscontágio".
O anúncio do auxílio emergencial também formou aglomeraçõesbancos, pois apenas 38,1% dos peruanos possuem contas bancárias. O resto precisava sacarespécie o auxílio.
Para Gotuzzo, "as boas medidas sociais acabaram se revelando medidassaúde pública negativas".
"Os planos iniciais eram,um jeito, cópias das estratégias da Europa. Nos faltou ver que algumas dessas estratégias não seriam necessariamente bem-sucedidas aqui, com tanta informalidade. Nos faltou pensaruma solução distinta para nós", diz Ñopo.
"Ninguém espera que o governo não cometa erros, ninguém conhecia a pandemia. Mas se íamos cometer erros, deveríamos deixá-los transparentes e corrigir o curso", diz.
Assim que o governo identificou alguns desses problemas, tomou medidas como intervir e reorganizar os mercadosalimentos e estender o horáriofuncionamento dos bancos.
Também ordenou a abertura automáticauma conta poupança no Bancola Nación para todos os peruanos maiores18 anos.
A economista Janice Seinfeld, diretora executiva da consultoria Videnza, também destacou que quando a quarentena foi decretada e os serviçostransporte foram suspensos, muitas pessoas voltaram para suas cidadesorigem.
"Um fechamento um pouco mais sutil teria sido muito mais positivo, deveria ter sido um pouco mais ajustadoacordo com a realidade nacional", disse Seinfeld à BBC News Mundo.
5. Cumprimento das restrições
Nos últimos dias, muitas pessoas culparam os peruanos que não cumprem as restrições criadas para prevenir infecções.
A tendência surgiu depois que no último fimsemana 13 pessoas morreram e outras seis ficaram feridasuma debandada ocorrida devido à intervenção da políciauma festa clandestina realizadaLima.
Cerca120 pessoas compareceram a um evento na casa noturna Thomas Restobar, apesaraglomerações serem proibidas no Peru como formaprevenção da disseminação da covid-19.
"Nos perguntamos se isso foi um caso isolado e a resposta é que absolutamente não. Acontecetodos os bairros. Infelizmente isso está nos custando", diz Ñopo.
A polícia disse na quinta-feira ao jornal El Comercio que desde o início da pandemia havia interrompido 321 festa clandestinas sóLima.
"A tragédia representa —forma resumida e acelerada — muitos dos erros que agravaram o avanço da covid-19 no país", disse o El Comercioeditorial publicado recentemente.
Mas "colocar a maior parte da culpacima das próprias vítimas é obtuso, cruel e torna invisíveis as falências estruturais que tornam possíveis que situações como essa se repitam", diz o editorial.
Outros especialistas e comentaristas também rejeitam culpar os participantesreuniões clandestinas pela situação da pandemia no Peru e,vez disso, apontam para problemas estruturais pré-existentes.
Pablo Lavado, professoreconomia da Universidade do Pacífico, disse à BBC News Mundo que "as festas clandestinas sem dúvida contribuíram para o índicemortalidade, mas não acho que sejam a causa principal".
"São hipóteses verossímeis, mas não há dados. Além disso, não é preciso considerar apenas as festas clandestinos. As pessoas continuaram saindo para trabalhar, continuaram se movimentando, tem havido interação nos mercados, nos bancos. Tudo isso foi se somando", diz Lavado.
"Sem dúvida (as festas) contribuíram, mas ainda tenho a dúvida do quanto contribuíram. Todas as aglomerações contribuíram, mas não saberia dizer mais qual", diz.
O que o governo diz sobre a alta taxamortalidade?
O presidente do ConselhoMinistros, Walter Martos, reconheceuentrevista à rede peruana RPP que o Peru tem a maior taxamortalidade desde covid-19, mas que o recorde se deve à transparência do governo na divulgação do númeromortos.
"Não conheço outro país, além do Peru, que durante a pandemia esteja sendo transparente com o númeromortes durante a pandemia [...] Há númerossuspeitoscovid-19 que passaram (para a contagem oficial) e isso aumenta o número mundial", disse Martos na quinta-feira.
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