Coronavírus: por que o exemplo da Espanha mostra que mundo precisaránovas quarentenas:
O objetivo era buscar anticorpos para o coronavírus nas amostrassangue e estimar a partir disso a proporção da população que foi contaminada.
Os cientistas concluíram assim que apenas 5% dos habitantes da Espanha, ou 2,35 milhõespessoas, pegaram o novo coronavírus.
Ainda que seja bastante gentetermos absolutos, é uma proporção pequenarelação ao tamanho do caos vivido pelo país, que viu seu sistemasaúde entrarcolapso e foi obrigado a entrar no meiomarçoum dos lockdowns mais rígidos do mundo para conter a propagação do vírus.
O índice também fica longe do necessário para haver a chamada "imunidadegrupo", ou "efeito rebanho", que seria capazimpedir naturalmente novas ondascontágio.
Isso ocorre quando60% a 70%uma população já tem anticorpos contra um vírus ou bactéria.
Se isso acontece, mesmo quem não tem imunidade contra essa ameaça é beneficiado indiretamente, porque fica protegido ao estar cercado por pessoas que são imunes.
É mais difícil ser contaminadouma situação assim, e essa barreira imunológica impede que um micro-organismo se espalhe e cause um surto.
'Muita gente suscetível'
Mas o exemplo da Espanha, onde o primeiro caso foi identificado31janeiro e, após pouco maistrês meses, apenas 5% da população foi infectada, aponta que a imunidadegrupo dificilmente pode ser obtidaforma natural no curto ou médio prazo.
"Ainda tem muita gente suscetível a pegar o vírus. A partir do momentoque a vida voltar ao normal, a chanceter novas epidemias é grande", afirma a médica sanitarista Ana Freitas Ribeiro, do serviçoepidemiologia do Instituto Emílio Ribas,São Paulo.
A proporçãopessoas com anticorpos na população identificada pelo estudo espanhol não foi uniformetodo o país.
A comunidade autônomaCeuta, na costa do norte da África, teve o índice mais baixo,1,1%. O maior foi identificado na comunidade autônomaMadri, onde 11,3% dos participantes tinham anticorpos.
Mas nem a taxa registrada na região da capital espanhola seria o bastante, diz Fernando Spilki, presidente da Sociedade BrasileiraVirologia.
"Mesmo nas regiões mais atingidas, ainda há muito poucas pessoas com anticorpos. A imunização natural não está ocorrendo como deveria para conseguirmos debelar a pandemia", diz Spilki.
O epidemiologista Antonio Augusto Moura da Silva, professor do departamentoSaúde Pública da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), afirma que, diante destes índices, "todo mundo vai esperar uma segunda onda"contágios.
"Estamos na primeira ainda e não sabemos quando virá a segunda, mas,alguns países que estão saindo do isolamento, a epidemia já começa a se manifestar novamente", diz Silva.
Outra formaconseguir o efeito rebanho seria com uma vacina. No entanto, a maioria dos especialistas afirma que uma só deve estar prontameados do próximo ano, ou seja,12 a 18 meses após o Sars-Cov-2, como é chamado oficialmente o novo coronavírus, ser identificado.
"Enquanto isso não acontecer, vamos ter que fazer períodosisolamento social sempre que nossos sistemassaúde detectarem um aumento do númerocasos", afirma Ribeiro.
O imunologista Renato Astray, pesquisador do Instituto Butantan, também avalia que, assim como a Espanha, o Brasil vai estar sujeito a novas epidemias - e quarentenas.
"Assim que a gente parar com o isolamento, porque os casos estarão diminuindo, vamos ter um índiceinfectados não muito diferente da taxa da Espanha e, mais dias ou menos dias, teremos outro surto. E nós, assim como eles, vamos tertomar medidas isolamento mais vezes, não vai parar por aqui", diz Astray.
Letalidade
A pesquisa espanhola também revelou algumas informações importantes sobre a pandemia do novo coronavírus.
Ao estimar o númeropessoas infectadas na Espanha, o estudo permite identificar uma taxaletalidade do vírus que seja mais próxima do índice real.
Ribeiro aponta que esta taxa era calculada11,9% na Espanha, onde houve até agora 27.459 mortes entre os 230.183 casos confirmados, segundo dados da Universidade Johns Hopkins.
Mas a médica diz que a letalidade passa a ser1,1% quando o númeroóbitos é comparado à estimativaque houve até agora 2,35 milhõesinfecções no país.
É um índice muito mais baixo que o anterior, mas Ribeiro destaca que ainda assim é dez vezes maior do que o do vírus da gripe sazonal,0,1%.
Junto com o fatoo coronavírus ser bastante transmissível - estima-se que cada pessoa infectada contamine outras três -, isso pode gerar uma catástrofe.
"Levandoconsideração grandes populações, como os quase 50 milhõeshabitantes da Espanha ou os 210 milhões do Brasil, sem nenhuma medida para conter o vírus, o númeroinfecções aumenta muito, e ter 1%óbitos significaria a mortemuita gente", diz Ribeiro.
Os especialistas ouvidos pela reportagem afirmam que isso faz cair por terra qualquer pretensãousar o "efeito rebanho" como uma estratégiacombate à pandemia, como chegou a ser cogitado pelo governo do Reino Unido, por exemplo.
O custo socialuma infecçãomassa seria enorme, avalia Astray. "Quando as pessoas falamtodo mundo se infectar logo e se livra dissouma vez, é preciso ver o que a Espanha já sofreu com 5%. Imagina se chegasse a 10% ou 20%? Seria uma situaçãoguerra", diz o imunologista.
Antonio Augusto Moura da Silva calcula que, com uma taxaletalidade no mesmo patamar da Espanha, atingir a imunidadegrupo custaria1,4 milhão a 1,6 milhãovidas. "Seria o equivalente a morrer uma Curitiba ou Recife inteiras", diz o epidemiologista.
Assintomáticos
Silva destaca outro dado bastante importante apontado pelo estudo: cercaum terço dos participantes que tinham anticorpos contra o novo coronavírus disseram não ter apresentado nenhum sintoma.
"Estávamos atrás desse númeroassintomáticos", diz o epidemiologista.
Junto com as pessoas que testaram positivo e apresentaram apenas dois sintomas, o grupo passa a representar 50% do totalinfectados.
Isso dá uma noção melhor do tamanho do desafio que é identificar e isolar quem foi infectado para quebrar a cadeiatransmissão do vírus e controlar a pandemia.
"Metade das pessoas que têm covid-19 não sabem disso porque não têm sintoma ou tem um sintoma muito leve, como dorcabeça e coriza, por exemplo, e isso não é necessariamente associado a essa doença. Essas pessoas continuam circulando e transmitindo o vírus", afirma Silva.
O epidemiologista Lúcio Botelho, professor do DepartamentoSaúde Pública da Universidade FederalSanta Catarina (UFSC), considera esse índice "assustador".
Especialmente porque apenas 2,55% dos participantes da pesquisa afirmaram ter sido testadas para covid-19 com exames moleculares, que são os que permitem diagnosticar a doença.
"Sem conseguir fazer testesmassa, a gente não tem como saber quem está transmitindo o vírus ou não. Isso significa que o isolamento é fundamental, porque é a única forma que temos hojeimpedir que isso aconteça", afirma Botelho.
Perguntasaberto
Por fim, o estudo espanhol aponta que, entre as pessoas que haviam feito um teste molecular para covid-19, 87% tinham anticorpos contra o Sars-cov-2.
Isso é um bom sinal, porque aponta que nosso corpo desenvolve alguma formaproteção contra esse novo vírus.
Na pesquisa, foram analisados apenas os anticorpos conhecidos com Igg, que são aqueles criados para que o organismo seja capaz no futurocombater uma mesma ameaçaforma mais eficiente.
O imunologista Renato Astray avalia que o índice13% que não desenvolveram anticorpos pode ter sido causado por um errodiagnóstico, porque os testes rápidos usados nesta fase do estudo dão resultados com um índiceprecisãoapenas 79%.
Astray diz que só será possível confirmar ou refutar essa hipótese nas próximas etapas da pesquisa, quando será feito um tipotesteanticorpos laboratorial que tem uma precisão maior,torno95%
Também será necessário fazer mais pesquisas para compreender se essa resposta imunológica é realmente eficiente.
"Ter anticorpos não necessariamente significa estar protegido, porque esse anticorpo precisa ser do tipo neutralizante para impedir o vírusinfectar a célula", afirma o imunologista.
O virologista Aguinaldo Pinto, professor do DepartamentoMicrobiologia, Imunologia e Parasitologia da UFSC, explica que isso não ocorre, por exemplo, com o vírus HIV.
"Uma pessoa que tem HIV tem uma quantidade enormeanticorpos Igg, mas eles nunca são neutralizantes, e o paciente desenvolve a Aids se não fizer o tratamento", afirma Pinto.
Outro aspecto importante é verificar se essa imunidade écurto ou longo prazo. O virologista afirma que, mesmo quando desenvolvemos um anticorpo, ele não se mantém necessariamente para sempre no organismo.
"Isso acontece com a caxumba, por exemplo, que gera uma memória imunológicalongo prazo, mas não com o rotavírus, que causa diarreiauma criança. O anticorpo contra ele dura por um tempo e depois desaparece. Só vamos descobrirqual caso o coronavírus se encaixa com o passar do tempo", afirma Pinto.
Também será preciso fazer mais pesquisas para compreender um aspecto intrigante dos dados apresentados até agora pelo estudo espanhol.
A taxaparticipantes com anticorpos são bem diferentes entre as faixas etárias. Os índicescrianças0 e 9 anos variam entre 1,1% e 3% e são sensivelmente menores do que entre os idosos, que apresentam taxas entre 5,1% e 6,9%.
"O esperado seria que a maioria dos grupos tivessem a mesma produçãoanticorpos", diz Pinto.
Uma explicação possível é que o sistema imunológicocrianças muito jovens ainda estáformação, o que levaria a uma menor produçãoanticorpos.
Mas isso também deveria ser vistoidosos, porque nosso sistema imunológico começa a se deteriorar a partir dos 60 anos, o que prejudica seu funcionamento, diz Astray.
"Os níveis diferentes são porque as crianças tiveram uma exposição menor ao vírus ou porque não desenvolveram anticorpos? Essa é uma interrogação que fica."
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