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O mistério da princesaDubai que desapareceu após tentar fugirseu país:
*Esta reportagem foi atualizada3janeiro2019, com informações divulgadas pelo governoDubai sobre a princesa, uma novo fotoLatifa e uma entrevista com Mary Robinson
"Olá, meu nome é Latifa Maktoum, eu nasci5dezembro1985. Eu preciso me lembrarfalar tudo, porque esse pode ser o último vídeo que eu faço (...) E se vocês estão vendo esse vídeo, não é nada bom. Significa que ou eu estou morta ouuma situação muito, muito, muito ruim."
A mensagem acima faz parteum vídeo gravado por Latifa, princesaDubai, poucos dias antestentar fugir da cidade, que faz parte dos Emirados Árabes Unidos (EAU), no Oriente Médio. Ela é uma dos 30 filhos do líderDubai e primeiro-ministro dos EAU, xeique Mohammed bin Rashid Al Maktoum, uma das figuras políticas mais ricas e poderosas do mundo.
"Muitobreve, eu vou fugir para algum lugar. E eu não tenho certeza se isso dará certo, mas estou 99% otimistaque vai funcionar", disse Latifa no vídeo, gravadosegredo com o objetivosomente ser divulgado por seus amigos caso o planofuga não desse certo. O depoimento era como um pedidoajuda para o futuro.
Em fevereiro deste ano, a gravação foi postada no YouTube, sinalizando que algo pode ter ocorrido com a princesa.
A históriaLatifa foi contada por um novo documentário da BBC, Escape from Dubai: The Mystery of the Missing Princess (A fugaDubai: o mistério da princesa desaparecida), transmitido6dezembro. Alguns dias depois, o governoDubai divulgou uma foto supostamente recente da princesa, alegando que ela está recebendo tratamento médico psiquiátricocasa. Mas ativistas se dizem preocupados com seu paradeiro esegurança.
Neste texto, a BBC News Brasil reconta a trajetória da princesa.
"(Dubai) não é como tem sido retratada pela mídia. Aqui não há justiça. Eles não se importam. Especialmente se você é mulher,vida é tão descartável", narrou Latifa no vídeo.
A vida da princesa Latifauma 'jaulaouro'
Como filha do xeique Maktoum, Latifa vivia rodeadamuito luxo. "Ela vivia commãe e duas irmãsuma casa particular, que, vistafora, parecia um palácio. Tinha piscinas, salasmassagem, provavelmente 100 funcionários", conta Tiina Jauhiainen, que foi treinadoracapoeiraLatifa e se tornouamigaconfiança.
"Para mim, parecia que Latifa tinha tudo que uma garota poderia sonharter", contou Tiina à BBC. "Viviaum palácio, tinha muito dinheiro, não faltava nada. Essa era a primeira impressão. Levou um tempo até que eu percebesse a realidade davida."
Os Emirados Árabes Unidos se apresentam como uma das sociedades mais liberais para as mulheres no Oriente Médio, na qual podem desfrutarliberdades e luxos do Ocidente. Mas, assim como a Arábia Saudita, o país também é regido pela sharia, a lei islâmica.
"As mulheres têm que ser obedientes aos seus maridos. Os homens podem bater nas suas mulheres e filhos. Isso está na lei dos EAU. Então, se uma mulher é considerada muito selvagem, não controlada pela família, eles podem decidir confiná-la e puni-la, para que ela não se comporte dessa maneira", afirmou Rhothna Begum, da organizaçãodefesa dos direitos humanos Human Rights Watch.
Em 2002, quando tinha 16 anos, Latifa tentou fugir pela primeira vez. Mas foi capturada na fronteira e levadavolta para Dubai. No vídeo, a princesa diz que foi duramente punida pela fuga.
"Eles me colocaram na prisão e me torturaram. Basicamente, um cara me segurava, enquanto outro me batia. Depois das sessõestortura eu não podia nem andar."
A seguir, narra Latifa, ela foi confinada sozinhaum quarto-escuro, sem saber o que era dia e o que era noite. No total, teria ficado nesse confinamento por 3 anos e 4 meses, e liberada somente aos 19 anos.
Latifa saiu dessa experiência completamente diferente, segundo conta no vídeo. Deixouconfiar nas pessoas e começou a passar mais tempo com animais - alguns desses momentos estão registradosseu perfil no Instagram.
Livre, mas impedidadeixar Dubai, a princesa foi autorizada a contratar tutores privados. Aos 26 anos, concluiu seus estudos. Também passou a fazer treinamentos esportivos. Além das aulascapoeira com Tiina, fez cursosparaquedismo e se juntou à comunidadeparaquedistas locais.
"Ela me dizia que o paraquedismo dava a ela uma sensaçãoliberdade, ela precisavaalgo para se distrair davida", diz Tiina.
Pessoas que conviveram com Latifa disseram para a BBC que a princesa era calada, simples, e nunca falava sobrefamília.
Apesar disso, fotosLatifa pulandoparaquedas acabaram sendo veiculadas na mídia local, passando a imagem que Dubai queria transmitir: a da diversão e da liberdade feminina.
É tudo uma "farsa", disse Latifa no vídeo. "Não posso dirigir, não posso viajar, não saio (de Dubai) desde 2000, não deixam. Pedi para estudar (fora), e me negaram", declarou. "Meu pai tem essa imagemser (um homem) moderno. É mentira. É só marketing."
Xeique Maktoum cultiva imagemhomem moderno
O xeique Rashid al Maktoum cuida daimagem com esmero. Patrick Nixon, embaixador britânico na região, descreveu o xeique como "carismático, dinâmico, com certo encanto, mas muito determinado". "É um personagem muito público, que aparece na imprensa todo o tempo. Sabe o que quer, como obter e quem pode ajudar", destacou Nixon para a BBC.
Sob seu comando, Dubai se transformou radicalmente:uma cidade seca no deserto a uma das metrópoles mais glamorosas do mundo, repletaimponentes arranha-céus e luxuosas ilhas artificiais. É uma "Las Vegas do Oriente Médio", "hedonista", "com um poucotudo", comentou Rhothna Begum, da Human Rights Watch.
Emvida particular, Maktoum é um dos mais importantes criadorescavalos do mundo. Por conta dessa paixão, o xeique viaja frequentemente à Inglaterra, para assistir às famosas corridasAscot, onde tem uma mansão avaliadaUS$ 95 milhões - o xeique é, aliás, o maior proprietário privadoterras no Reino Unido. Em algumas dessas visitas, Maktoum chega a confraternizar com a realeza britânica.
"O xeique é uma marca internacional", assinalou o jornalista inglês Sean O'Driscoll. "Mas,Dubai, o controle é completo. Não se pode escrever nadanegativo sobre Dubai."
A fuga da princesa Shamsa, irmãLatifa
Um exemplo da força repressiva do regimeDubai é o que ocorreu a uma das irmãsLatifa, a princesa Shamsa,2000.
Naquele ano, Maktoum decidiu passar o verão namansão na Inglaterra com parte da família - Shamsa, inclusive, que tinha 18 anos.
A comitiva era acompanhada por diversos seguranças e todos os deslocamentos eram feitosaeronaves particulares. "Shamsa odiava tudo isso. Ela se queixava dajaulaouro", comentou Stuart Millar, jornalista do jornal britânico The Guardian.
Cansadaviver aprisionada no luxo da família, sem ter "as liberdades do mundo civilizado", segundo Latifa, Shamsa fugiu.
Ela conseguiu ficar escondida por várias semanas, mas acabou localizada pelos segurançasseu pai a alguns quilômetrosCambridge. "Ela foi agarrada e colocada dentroum carro, gritando. Depois, (foi levada) a um helicóptero até a França. E da França até Dubai", relatou Millar, que fez a cobertura do caso.
A operação tinha a marcaum sequestro, um delito grave no Reino Unido. A políciaCambridge chegou a iniciar uma investigação, mas não conseguiu seguir adiante. O investigador responsável pelo caso tentou ir para Dubai para falar com Shamsa, mas teve negado seu pedidoingresso nos Emirados Árabes Unidos (EAU)- nunca lhe disseram o porquê.
Os EUA são um aliado estratégico do Reino Unido, o que dificultou a continuidade do caso. "Você tem esse aliado chave e fundamental no Golfo. Além disso, ele (Maktoum) é da realeza, amigo da nossa realeza. É a tempestade perfeita", concluiu Millar.
"Foi uma das histórias mais estranhasque já trabalhei. Em que uma acusaçãosequestro no Reino Unido não foi investigada", disse Millar.
Shamsa foi dopada e feita prisioneiraDubai, acusa Latifa
Não se sabe o que ocorreu a Shamsa depois que ela voltou para Dubai. No vídeo, Latifa contou que a irmã foi dopada e aprisionadaum quartoum palácio.
"Ela foi colocada nessa construção, Zabell Palace, e ficou presa por oito anos. E então me permitiram que eu a visitasse. Ela estavaum estado muito, muito, muito, ruim. Ela não abria os olhos. E as pessoas precisavam dar a mão (a Shamsa) para que ela caminhasse. Davam-lhe comida e um montecomprimidos. Esses comprimidos faziam com que ela ficasse como um zumbi", narrou Latifa.
"Estava constantemente rodeada por enfermeiras, que dormiam com ela e anotavam tudo o que fazia ou dizia", continuou.
Foi após a fuga da irmã que Latifa decidiu escapar. Mas foi pega e, segundo seus relatos, presa e torturada. É impossível verificar se isso realmente ocorreu. Mas, Sima Watling, da Anistia Internacional, afirma que alguns aspectos da descrição do que ocorreu com ela soam "familiar e plausível".
Organizaçõesdireitos humanos já conseguiram documentar diversos casostortura por espancamentoprisões do EAU e confinamento solitário.
Latifa planejou outra fuga para fevereiro2018
Depoisdez anos da primeira tentativafuga, Latifa planejou escapar outra vez. No vídeo, a princesa conta que ia até um café com internet, onde entravacontato com Hervé Jaubert, um ex-espião francês. Eles teriam trocado mais200 e-mails.
Jaubert era um ex-agenteinteligência naval, que havia trabalhadoDubai, mas teve problemas com os Emirados e teve que escapar pelo mar, nadando por uma grande parte do trajeto. "Já que eu havia escapadoDubai, ela (Latifa) queria fazer o mesmo", contou Jaubert para a BBC.
"Fiquei comovido, era uma solicitação pessoal e eu queria dar uma chance a ela."
A instrutora físicaLatifa, Tiina, baseada na Finlândia, passou a ser a intermediária. Viajou quatro vezes para as Filipinas, onde estava Jaubert. Lá, elaboraram o plano que Tiina precisava transmitir a Latifa,Dubai.
Primeiro, eles viajariam por terra até Mascate, capitalOmã. Ao chegar à costa, pegariam um bote inflável até atingir um iate, onde Jaubert estaria esperando. Como os Emirados Árabes Unidos controlam as águas do mar Arábico, a estratégiaJaubert era navegar até a Índia - como havia feito quando ele próprio fugiu. A etapa final seria voar até a Flórida, nos Estados Unidos, onde Latifa pediria asilo político.
O dia escolhido foi 24fevereiro2018. Tiina contou para a BBC que Latifa estava muito nervosa. "Nos encontramosum café, como já havíamos feito no passado. Latifa retirou o abaya (o manto inslâmico) e mudou seu visual um pouco."
Elas então entraram no carro - era a primeira vez que Latifa se sentava no banco da frente. "Ela queria fazer selfies o tempo todo", recordou Tiina.
Ao chegarem na costaOmã,um fimtarde, pegaram o bote e percorreram quase 40 quilômetros até alcançar o iateJaubert. Nele, navegariam 2,5 mil quilômetros até a Índia.
"Não sei como vou me sentir por poder fazer o que eu quiser. Será incrível", declarou Latifa, entusiasmada, no vídeo que gravou antessua partida.
Mas Latifa ainda não estava foraperigo. Todos sabiam que estavam enfrentando um dos Estados policialescos mais sofisticados do mundo e que seria difícil se esquivar dele. "A situação era tensa. Basicamente, (você) estáguerra,uma área hostil. Se te encontram, está morto", ressaltou Jaubert para a BBC.
Perseguição nos mares indianos
Especialistas internacionais assinalam que os Emirados Árabes Unidos investiram milhõesdólaressistemasvigilância israelenses, capazesconverter um celularum aparatoespionagem. Podem rastrear as pessoas online, interferindoseus telefones, e localizá-las. Para isso, não é preciso nem que os telefones estejam ligados.
Latifa tinha um mau presságioir para a Índia, um país com quem os EAU têm pactos estratégicos. Ela sabia que seu pai iria atrás dela - e a Índia não titubeariaajudá-lo, pensava Latifa.
Para tentar se preveniruma perseguição, a princesaDubai entroucontato com diversos jornalistas. "Mas ninguém acreditava nela, era muito triste", lembrou Tiina.
Radha Sterling, fundadora da ONG britânica DetidosDubai, também foi procurada por Latifa. As duas trocaram dezenasmensagens, mas quando Sterling solicitou uma fotoLatifa, para comprovaridentidade, a princesa se recusou a enviá-la, com medoque fosse interceptada.
De toda forma, o aparatosegurançaMaktoum já estava seguindo as pistasLatifa. "Fomos seguidos por barcos. Então, apareceu um aviãovigilância indiano. Fiquei preocupado, porque sabia que tinham nos identificado."
A apenas 50 quilômetros da Índia, o iate foi interceptado e abordado por pessoas armadas. "Colocaram uma arma no meu rosto. 'Fecha os olhos ou te mato', gritaram para mim. Alguém me algemou e,seguida, me deu um golpe violento. Acabeiuma poçasangue. Eram indianos", disse Jaubert.
Tiina e Latifa se esconderamum banheiro. De lá, a princesa começou a enviar mensagens para Radha Sterling, informando que seu barco estava sob ataque. "Me ajude", pediu pelo telefone. Do outro lado, Sterling escutou sons que lhe pareceram serdisparos.
Tiina e Latifa foram encontradas e, sob a mirauma arma, levadas para o convés. "Escutei árabe e me dei conta que alguém dos Emirados havia nos abordado", recordou a treinadora Tiina.
Latifa então gritou e pediu asilo. Disse que preferia morrer ali mesmo. "Foi a última vez que a escutei falar. Estava paralisada", contou Tiina. "Eu estava preparada para enfrentar piratas, mas nunca um conluio entre Índia e Emirados Árabes", falou Jaubert.
Sete dias depois, foi postado no YouTube o vídeo que Latifa havia gravado antes da tentativafuga e enviado para amigos divulgarem se algo ocorresse a ela.
Dúvidas sobre o paradeiroLatifa
Tiina,amiga finlandesa, e o ex-espião francês Jaubert foram levados a Dubai. Ela foi acusadamanipular a princesa e ele,sequestrá-la. Os dois dizem que as autoridadesDubai tentaram forçá-los a desmentirem as denúncias da princesa rebelde, mas eles não o fizeram.
Duas semanas depois, acabaram liberados.
"Me sinto muito mal, porque eu deveria tê-la levado a um lugar seguro. Talvez ela nem esteja com vida", lamentou Jaubert.
Mohammed bin Rashid Al Maktoum e o governoDubai negaram os relatosfuga, dizendo que Latifa estácasa. "Latifa e Shamsa são adoradas e valorizadas porfamília e Latifa está agora seguraDubai", disseramcomunicado.
Também divulgaram, no finaldezembro, uma foto da princesa ao ladoMary Robinson, ex-chefe do Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos e ex-presidente da Irlanda, supostamente tirada15dezembroDubai.
Em entrevista à BBC Radio 4, Robinson afirmou que havia sido convidada a Dubai pela princesa Haya, mulher do xeique, para "ajudar com um dilema da família" real.
"O dilema era que Latifa está vulnerável, com problemas. Ela fez um vídeo (em referência ao vídeo postadofevereiro) do qual se arrepende e planejou uma fuga, ou parteuma fuga", afirmou a irlandesa. "Almocei com ela. Ela é uma jovem muito agradável, mas claramente perturbada e precisa da ajuda médica que está recebendo."
Robinson afirmou também que a princesa está sendo atendida por um psiquiatra, mas não deu mais detalhes. Disse que Latifa e a família não querem que ela "sofra com ainda mais publicidade".
Já Radha Stirling, do grupo DetidosDubai, criticou a entrevistaRobinson e disse que ela não esclarece se a princesa estásegurança.
"Qualquer pessoa familiar com a história da princesa Latifa que escutou a entrevistaRobinson ficará assombrada pela forma como Robinson parece estar recitando quase literalmente do roteiro escrito por Dubai", declarou. "O encontro (retratado na foto)forma alguma me asseguraque Latifa está livre do abuso que sofreu por anos."
Tiina tem a esperançaqueamiga "siga viva, que tenha força e não se dê por vencida". E recorda as últimas palavrasLatifa no final do seu vídeo revelador. "Se eu não sair desta, espero que ao menos surja algo bom."
*Esta reportagem foi atualizada3janeiro2019, com informações divulgadas pelo governoDubai sobre a princesa, uma novo fotoLatifa e uma entrevista com Mary Robinson
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