Cinco elementos do passado da China que explicam seu presente:
Há cerca150 anos, o país asiático tinha pouco controle sobre seu próprio comércio internacional. Foi a épocaque o Reino Unido atacou a China nas chamadas "guerras do ópio", a partir1839. Nas décadas seguintes, os britânicos fundaram uma instituição chamada Serviço Imperial Alfandegário Marítimo, para determinar tarifas a serem impostas nos produtos importados da China. O órgão era parte do governo chinês, porém ficou séculos sob comando britânico.
As memórias desse tempo ainda reverberam.
Tudo era diferente na época da dinastia Ming, no século 15, quando o almirante Zheng levou sete grandes frotas ao Sudeste Asiático, ao Ceilão (hoje Sri Lanka) e até à costa da África Oriental para promover seu comércio e exibir o poderio chinês.
Um dos objetivos das viagensZheng era impressionar os parceiros comerciais chineses e trazer incríveis e exóticos itens "importados" - por exemplo, a primeira girafa a chegar à China veio dessas expedições. Poucos outros impérios eram capazes, à época,enviar enormes frotas pelos oceanos.
E Zheng podia entrarcombates se assim o desejasse - derrotou, por exemplo, um governante do Ceilão. No entanto, suas viagens são um raro exemploum projeto marítimo estatal. Nos séculos seguintes, a maioria do comércio exterior chinês ocorreria por vias não oficiais.
2 - Problemas com os vizinhos
A China sempre demonstrou preocupaçãomanter a paz nos países com os quais faz fronteira. Isso ajuda a explicar por que o país até hoje aceita lidar com o imprevisível regime norte-coreano.
Mas, historicamente, essa não é a única fronteira delicada do gigante asiático.
Pequim já enfrentou vizinhos mais difíceis do que Kim Jong-un (que, por sinal, fez recentemente uma visita surpresa aos líderes chineses, emprimeira viagem internacional oficial).
Em 1127, época da dinastia Song, uma mulher chamada Li Qingzhao fugiusua casa, na cidadeKaifeng. Conhecemoshistória porque ela se tornou uma das melhores poetas chinesas, sendo amplamente lida até os diashoje. Ela saiufuga porquecomunidade estava sob ataque.
Um povo do norte, os Jurchen, havia invadido a China após um longo períodofrágil aliança com o imperador da dinastia Song. Enquanto as cidades eram incendiadas pelos invasores, a elite da China se via forçada a se espalhar pelo país.
A históriaLi Qingzhao etoda a dinastia serviu na China como liçãoque apaziguar vizinhos é uma estratégia com efeito limitado. Por muito tempo, a dinastia Jin comandou o norte da China, e os Song fundaram um novo reino ao sul. Mas, no fim, ambos foram dominados por um novo grupoconquistadores: os mongóis.
A mudançatraçado nos mapas ao longo do tempo mostra como foi mudando a definição da própria China. A cultura do país é comumente associada a algumas ideias, como idioma, história e sistemas éticos, como o confucionismo.
No entanto, outros povos, como os manchus e os mongóis, ocuparam o trono chinêsvários momentos, dominando o país com as mesmas ideias e princípios que os chineses étnicos.
Esses vizinhos nem sempre ficavam "quietos", mas muitas vezes encamparam e exercitaram valores chinesesmodo tão eficiente quanto os próprios.
3 - Fluxoinformação
A China moderna censura informações politicamente sensíveis na internet, e os que ousam dizer nas redes verdades políticas consideradas problemáticas pelas autoridades podem ser detidos ou sofrer punições ainda piores.
A dificuldadefalar a verdade aos poderosos é uma questão sensível há tempos. Historiadores chineses muitas vezes se viram forçados a escrever não o que achavam realmente importante, mas, sim, o que os líderes queriam que fosse escrito.
Mas Sima Qian - comumente descrito como o "grande historiador" da China - escolheu um caminho diferente.
Autoruma das mais importantes obrasrecriação do passado chinês, no século 1 a.C., Sima ousou defender um general que havia perdido uma batalha. Isso foi considerado uma afronta ao imperador, e Sima foi condenado à castração.
Ainda assim, ele deixou um legado que até hoje molda a forma como se escreve a história na China.
Seus registros mesclavam diferentes tiposfontes, criticavam figuras do passado histórico e usavam técnicas da história oral para ser mais preciso nos relatos. Tudo isso configurava, à época, uma forma totalmente novafazer história e abriu precedente para futuros escritores: se você estivesse disposto a sacrificarsegurança, conseguiria escrever os fatosvezse autocensurar.
4- Liberdadereligião
A China moderna é muito mais tolerante a práticas religiosas do que na época da Revolução CulturalMao, mas movimentoscunho religioso que possam desafiar o governo ainda são vistos com desconfiança.
Em geral, a abertura religiosa foi durante muito tempo parte da história chinesa.
No auge da dinastia Tang, no século 7, a imperadora Wu Zetian abraçou o budismo como uma formacombater o que ela provavelmente via como as sufocantes normas das tradições confucionistas.
Na dinastia Ming, o jesuíta Matteo Ricci foi tratado pela corte chinesa como um interlocutorrespeito, ainda que provavelmente houvesse mais interesse nos conhecimentos dele sobre a ciência ocidental do quesuas tentativasconversões religiosas.
Mas a fé sempre foi um assunto perigoso.
Ao fim do século 19, a China foi convulsionada por uma rebelião iniciada por Hong Xiuquan, homem que clamava ser o irmão mais jovemJesus; A rebelião Taiping prometia trazer um reinopaz celestial à China, mas acabou levando a uma das mais sangrentas guerras civis da história, com a morteaté 20 milhõespessoas, segundo algumas estimativas.
Algumas décadas mais tarde, o cristianismo estaria ao centroum novo levante. Em 1900, camponeses rebeldes passaram a perseguir missionários cristãos e seus convertidos, a quem chamavamtraidores da China.
A princípio, a corte imperial os apoiou, o que levou à mortemuitos cristãos chineses, antes que a rebelião fosse eventualmente contida.
Ao longoboa parte do século seguinte, e com efeitos até os diashoje, a Estado chinês oscila entre tolerância religiosa e o temorque a religião abale o país.
5 - Tecnologia
A China atual almeja se tornar um hub globalnovas tecnologias e já é líderaspectos como inteligência artificial, reconhecimentovoz e big data.
Vale lembrar que, um século atrás, o país passou por uma primeira revolução industrial - e as mulheres tiveram papel tão central na época quanto têm hoje.
Muitas das fábricas que hoje produzem chipscelular para o mundo inteiro têm como mãoobra jovens mulheres muitas vezes submetidas a terríveis condiçõestrabalho, mas que pela primeira vez também estão buscando seu lugar na economia industrial.
Elas herdaram a experiência das jovens100 anos atrás que foram empregadas nas fábricastecidosXangai e do delta do rio Yangtze. O trábalho era árduo, comumente levava a ferimentos físicos e câncerpulmão, e as condições dos dormitórios dos empregados costumavam ser espartanas.
Ainda assim, esas mulheres relatavam o prazerganhar seus próprios (baixos) salários eocasionalmente sair para passear.
Algumas gostavamadmirar as vitrines (provavelmente sem poder comprar nada) das lojasdepartamento então recém-inauguradas no centroXangai.
Até hoje, na mesma cidade, ainda é possível ver a nova classe trabalhadora chinesa consumindo bens e serviços como parte da nova economia chinesa, movida pela tecnologia.
O que dirão futuros historiadores?
Estamos vivendo uma nova significativa eratransformação na China. Futuros historiadores notarão um país que, se1978 era empobrecido e voltado a si mesmo, um quartoséculo depois começaria a se tornar a segunda maior economia do mundo.
Eles também observarão que a China foi o mais importante país a rejeitar o que parecia ser uma onda inevitáveldemocratização.
Talvez outros fatores, como a (já extinta) política do filho único e o usointeligência artificial na vigilância da população também chamem a atençãofuturos escritores. Ou mesmo questões relacionadas ao meio ambiente, à exploração espacial ou ao crescimento econômico que ainda não estão tão claramente definidas para nós.
Mas uma coisa é quase certa: daqui a um século, a China ainda será um local fascinante para os que vivem ali e os que convivem com ela, erica história continuará a informar seu presente edireção futura.
*Rana Mitter é professorHistória e Política da China Moderna na UniversidadeOxford e diretor do centroestudos chineses da instituição