‘Abstinênciatelas': Como conter o uso excessivoeletrônicos por crianças na pandemia:

Legenda da foto, Usoeletrônicos ficou tão embrenhado no nosso cotidiano que métricas como tempotela deixaramter o mesmo sentido

Nem todas essas sequelas são necessariamente ruins (veja mais abaixo), mas a dificuldadetirar as criançasdiante dos eletrônicos já tem despertado debates entre pais e especialistas, a respeitocomo estabelecer novos limites saudáveis.

Um desses especialistas, Keith Humphreys, professor da UniversidadeStanford, disse ao jornal The New York Times que "haverá um períodoabstinência épica" para muitas crianças e adolescentes que passaram bastante tempo diantetelas e agora precisarão "manter a atenção sem ganhar uma recompensa (que o uso das telas costuma trazer ao cérebro) a cada poucos segundos".

Não é uma equação simples, uma vez que os eletrônicos se tornaram parte tão importante da nossa vida cotidiana - e das crianças - que métricas como "tempotela" não têm o mesmo sentido que tinham antes.

"Não se trata apenasquanto tempo elas estão usando as telas, mas simo que estão fazendo com esse tempo", diz à BBC News Brasil David Bickham, pesquisador do LaboratórioBem-Estar Digital que conduziu a pesquisa citada no início desta reportagem.

A mesma pesquisa aponta que, para entre 40% e 44% dos pais entrevistados, o usotelas estava interferindo no tempo que seus filhos passavam ao ar livre, no tempoatividades presenciaisfamília e no sono das crianças.

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Legenda da foto, Criar repertóriosbrincadeiras offline pode ajudar na horadesligar os eletrônicos

"Vemos que isso (usoeletrônicos) ficou embrenhadonossos hábitos, o que preocupa. Mas, ao mesmo tempo, é interessante porque os pais que entrevistamos não estão citando tantas consequências negativas quanto se poderia imaginar", agrega Bickham.

O pesquisador se refere ao fatoque, para um número significativo desses pais, o usoeletrônicos estava ajudando seus filhos a manter laçosamizade, a desenvolver habilidades importantes para a vida escolar e - o que pode soar contraintuitivo - a preservarsaúde mental.

"Fala-se muito sobre preocupações com a saúde mental (de crianças pelo usoeletrônicos), mas os pais que entrevistamos não relataram tanto isso. Claro que são respostas subjetivas dos pais, mas essas não parecem ser as preocupações ou impactos principais na visão deles", prossegue Bickham.

"O principal, para os pais, é a questãoas crianças estarem passando muito tempo nas telas, não estarem interagindo o bastante com as pessoas pessoalmente, não estarem dormindo, não saírem para a rua."

Para Bickham, a "abstinência" citada pelo pesquisador Humphreys não será química (como aum vício "típico"), mas sim um grande desconforto se as telas não estiverem sempre ali, disponíveis.

"Se eu não tivesse meu telefone comigo durante o dia, seria estranho, eu ficaria mexendo no meu bolso. As crianças vão sentir esse tipoajuste - vão ficar desconfortáveis e se queixar. Então precisa ajudá-las a criar habilidades para lidar com isso."

É do que falaremos a seguir.

O uso da tela é intencional, ou só por 'inércia'?

Quando as crianças estão usando as telas, Bickham acha importante parar para pensar: esse uso tem alguma intenção ou utilidade concreta - seja uma pesquisa, um contato com um amigo, uma vontadejogar algum jogo específico ou mesmodescansar depoisuma atividade cansativa - ou é apenas um uso inercial, do tipo "estou assistindo a vídeos aleatórios na internet"?

Esse uso inercial, não direcionado a nenhuma intenção específica (e geralmente passivo), é o que Bickham considera mais prejudicial, e que "rouba" o tempoatividades mais enriquecedoras.

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Legenda da foto, Pesquisa nos EUA apontou que crianças aumentaram o usotelas mesmo no período do verão, indicando que eletrônicos estão mais presentessuas vidas

Essa inércia, porvez, não raro ocorre quando as crianças estão entediadas.

Como as telas oferecem uma satisfação fácil e imediata, elas acabam sendo a primeira coisa que vêm à mente nos momentostédio.

Uma primeira sugestão é: deixe a criança conviver com o tédio um pouco mais, antesceder à tela.

"O tédio gera desconforto e se você tem uma saída fácil (como as telas), vai usá-la. Mas se aguentar o tédio e não tiver telas disponíveis, você vai encontrar outras coisas para fazer. Então é superar esse estágio inicial", diz o pesquisador.

Alguns especialistas dizem, ainda, que momentostédio são grandes oportunidadesaprendizado para as crianças.

"Um dos nossos maiores desafios, como adultos, ou mesmo adolescentes, é aprender a gerenciar nosso tempo. Então é essencial que as crianças tenham a experiênciadecidir por si mesmas como usar esses períodostempo não estruturado (ou seja, sem atividade pré-definida)", escreveuartigo recente a psicóloga americana Laura Markham, autoralivros sobre parentalidade.

"Talvez ainda mais importante: tempo não estruturado dá às crianças a oportunidadeexplorar seus mundos interiores e exteriores, e é assim que elas descobrem quem elas são. É o começo da criatividade; como elas aprendem a se engajar com si mesmas e com o mundo, a imaginar, inventar e criar."

Aumentar o repertóriobrincadeiras offline

Como, então, prevenir que esse tédio direcione a criança às telas?

Para alguns especialistas, é possível que as crianças estejam com menos repertóriobrincadeiras offline, justamente porque boa parte do seu entretenimento virou eletrônico ou midiático.

Pais não precisam (nem devem) se ocuparentreter as crianças a cada minuto, mas podem dar uma forcinha a aumentar esse repertóriobrincadeiras.

No casoDavid Bickham, o filho delenove anos criou uma listaatividades que ele mesmo pode fazermomentostédio.

Aqui no Brasil, o portalbrincadeiras Tempo Junto também bolou uma listaideiasbrincadeiras justamente focadastirar as criançasfrente das telas.

O site traz outras listas úteis também, por exemplo ideiasbrincadeiras para distrair as crianças enquanto os pais precisam trabalhar e para estimular as crianças a brincarem sozinhasvezquando.

Limites continuam sendo importantes

Certo, os eletrônicos estão cada vez mais presentes nas nossas atividades. Mas limites continuam sendo importantes, sobretudo às criançasidade escolar, diz Bickham.

"Impor limites é mais difícil com adolescentes e pré-adolescentes, mas se começamos a colocá-los desde cedo, a norma da casa fica internalizada", explica.

"Podemos estabelecer normas (para toda a família) como 'não usamos eletrônicos o tempo todo, não ficamos com a TV ligada o tempo todo, não temos o celular na mão o tempo todo, mas quando precisamos dele, o usamos - tomamos a decisãousá-lo'. Dessa forma, é um uso mais intencional."

Um trunfo para ajudar as crianças a desconectar é aproveitar as transições naturais dos jogos (quando acaba uma fase) e intervalosdesenhos e programas, "porque até mesmo para adultos é muito difícil parar quando se está no meioalgo", diz Bickham.

E se o jogo ou desenho é do tipo infinito, que não acaba nunca, avisos antecipados podem ajudar as crianças a se despedir das telas com menos irritação e menos brigascasa: "'você tem mais 5 minutosjogo, então comece a finalizá-lo'. Esse tipoaviso prévio não os pegasurpresa no meio da atividade", conclui Bickham.

Atenção a sequelas físicas das telas…

Um ponto preocupante da pesquisa conduzida por Bickham nos EUA é que o usotelas está tendo impactos físicos nas crianças.

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Legenda da foto, Impactos dos eletrônicos no sono já são bem conhecidos, mas pais relataram também efeitos colaterais como dor nas costas e no pescoço, fadiga e irritabilidade

Muitos pais relataram que, depoisum dia típicointeração com as telas, seus filhos apresentavam problemas como cansaço nos olhos, dor nas costas e no pescoço, dorcabeça, fadiga e irritabilidade.

"Precisamos (nós cientistas) mergulhar nisso. É algo que demanda mais pesquisas para entendermos melhor essas consequências físicas e se elas deixarão sequelaslongo prazo", explica Bickham.

Quanto aos efeitos da tela sobre o sono das crianças (e adultos), os estudos já são claros: o estímulo e a luz emitidos pelos aparelhos eletrônicos sãofato prejudiciais.

"Isso já sabemos como mitigar: manter eletrônicos fora do quarto é a intervenção mais fácil", afirma o pesquisador.

"E temosajudar as crianças, principalmente as menores, a não usar nenhum tipomídia eletrônica na horair para a cama, porque pode até parecer que vai funcionar (em acalmá-las), mas não é uma abordagem útil. É bom não ter a TV ligada quando elas forem dormir e não ter TV no quarto."

...E atenção a casosque o uso dos eletrônicos saiu do controle

A percepçãoBickham éque, na maioria dos casos, sim, o usotelas aumentou na pandemia e gerou incômodos dentro da família - mas são incômodos que podem ser resolvidos.

É preciso estar atento a sinais, porém,quando esse uso excessivo se torna mais perigoso e requer a ajudaum especialista.

"Um sinal é quando a criança ou adolescente usa eletrônicos a noite inteira ou o tempo todo, por exemplo", diz Bickham. "Passar a noite toda na tela e ficar cansado durante o dia é o tipocomportamento que pode causar problemas. Para crianças com dificuldadesautorregulação, é uma causapreocupação."

Outro sinal é a agressividade ou problemascomportamento relacionados às telas.

"Uma coisa é a criança dizer 'não quero parar (de jogar/ver tela) agora', isso é normal. Outra é atirar o aparelho contra a janela ou ficar agressiva. É bastante preocupante a tela estar desencadeando essa resposta."

Na maioria dos casos observados por ele no LaboratórioBem-Estar Digital, esses exemplos mais graves costumam estar associados a outros problemassaúde mental infantil, "então (o uso excessivotelas) os intensifica ou acaba se tornando um sintoma adicional. Esses casos realmente requerem ajuda especializada".

De modo geral, porém, as pesquisasBickham têm indicado que a maioria das famílias é capazencontrar seus pontosequilíbrio, "embora talvez gostassemuma ajudacomo reduzir o tempotela das crianças".

"Na maioria dos casos, se trataintegrar e desfrutar desse usotela na escola e na vida, sem deixar que ele infiltre e perturbe totalmente o seu mundo", afirma. "Trata-sereconhecer que é possível direcionar o uso para comportamentos que sejam positivos."

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