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Meu pai, torturador: argentinas revelam segredosbets99pais envolvidosbets99assassinatos na ditadura:bets99
Ele é acusadobets99algumas das piores violaçõesbets99direitos humanos no passado recente do país.
Pelos sete anosbets99que se manteve no poder, o governo militar perseguiu dissidentes, entre comunistas, socialistas, líderes sindicais, estudantes e artistas - qualquer um que fosse percebido como ameaça.
De acordo com organizaçõesbets99defesa dos direitos humanos, cercabets9930 mil pessoas "desapareceram" depoisbets99serem sequestradas e presas ilegalmente por policiais como Kalinec.
Mas Analía não tinha a menor ideia dos segredos bem guardados do pai até 2005, quando tinha 25 anos.
Tudo mudou naquele ano com o telefonema que recebeu da mãe.
Kalinec havia sido detido e, apesar do otimismo inicial da esposa, nunca foi liberado da prisão.
Em 2010, ele foi condenado à prisão perpétua por crimes contra a humanidade.
'Você acha que sou um monstro?'
"Ele me perguntou: 'Você acha que sou um monstro?'", conta Analía.
"O que ele esperava que eu dissesse? Ele era meu pai amado, eu era tão próxima dele. Eu estava chocada."
Outra argentina, que chamamos aquibets99Paula (ela pediu à BBC para não publicar seu sobrenome verdadeiro), também recebeu uma revelação chocante sobre seu pai.
Quando tinha 14 anos, ela e o irmão foram levados pelo pai a uma cafeteria. Lá, ele contou aos dois que tinha sido um policial à paisana. Tempos depois, Paula se deu contabets99que o pai trabalhava como espião, infiltradobets99gruposbets99esquerda e identificando pessoas procuradas pelo regime militar.
"Desde que me toquei que o que eu sabia sobre a ditadura tinha participação do meu pai, eu me sinto envergonhada e culpada como se fosse cúmplice", diz Paula.
Levou anos para que essas jovens compreendessem e aceitassem a históriabets99suas famílias. Recentemente sentiram a necessidadebets99falar abertamente sobre o tema.
Elas são partebets99um grupo que reúne "filhos e parentesbets99perpetradoresbets99genocídio", como chamam a si mesmos.
Elas condenam publicamente seus pais - e são frequentemente isoladas por parentes como consequência.
Um segredobets99família
Analía Kalinec, psicóloga e professora, nasceubets991980,bets99meio à batalha do regime militar contra apoiadores da esquerda. Suas memórias do pai policial remontam a uma época posterior a esse período - ela se lembra dele fazendo churrasco e levando as filhas ao clube e para pescarias.
"(Éramos) uma famíliabets99classe média muito unida, com minhas três irmãs, minha mãe donabets99casa e um pai que era amoroso e o provedor da família."
As quatro irmãs se casaram cedo e não se interessavam por política. "Para nós sempre foi: 'nosso pai, o policial'. Eu nunca perguntei o que ele fazia", diz Analía.
Ela recorda que a família foi visitar o pai na prisão. "Quando falamos com ele, ele só disse: 'Não acreditem no que vão dizerbets99mim. É só um montebets99mentiras'".
Ele disse à família que não tinha motivo para se desculpar, que estava lutando numa "guerra" e que agora estava sendo perseguido pela vontadebets99vingança dos "esquerdinhas".
"Não entendi uma palavra. Não tinha ideia do que ele queria dizer", diz Analía.
Para Analía, a ditadura era uma coisa do passado e, durante os primeiros anosbets99prisão do pai, viveubets99negação.
"Eu apoiava as mães e avós da Praçabets99Maio que estavambets99campanha pelos parentes desaparecidos", diz.
"Eu ainda acreditava que tinha sido um erro. Foi quando o julgamento começou que eu percebi que as coisas não eram bem como meu pai vinha nos contando."
A descoberta da verdade
Analía se viu cara a cara com o passado do pai quando começou a ler documentos do processo. Eram maisbets99800 páginas repletasbets99depoimentosbets99sobreviventes do terror que ele tinha infligido.
"Eu li as descrições dos camposbets99concentração onde os militares mantinham as pessoas que eles sequestravam. Era como um mapa e eu tinha que posicionar meu pai lá. Era insuportável", diz ela.
As vítimas não conheciam Kalinec pelo nome real. Nas prisões clandestinas onde ele trabalhava, ele escondia a identidade e era chamadobets99"Doutor K".
"Eu sabia que eles chamavam meu pai assim porque uma vez ele contou para a minha avó e, quando eu pergunteibets99onde veio esse apelido, ele disse que era porque sempre estava arrumado e parecia um advogado. E aqui nós chamamos os advogadosbets99doutores", disse.
"(Mas) também pode ser porque ele era o "doutor" nas câmarasbets99tortura, que eram chamadasbets99'salasbets99cirurgia'", acrescenta.
Analía finalmente confrontou o pai na prisão.
"Quando eu fiz isso, eu me deparei com um homem raivoso que tentou justificar o injustificável. E ao fazer isso, ele confirmou minhas piores suspeitas. Asbets99que ele tinha pessoalmente participadobets99tudo isso."
O fatobets99amar o pai ebets99ter memórias felizes da infância tornaram as coisas muito difíceis, diz Analía.
"Primeiro, eu precisei dissociar. Eu costumava dizer: 'Bom, um lado dele é ser meu pai. O outro é ele como torturador'. Eu precisava disso, ou minha cabeça teria explodido. Mas aí eu percebi que se tratava da mesma pessoa. Ele sempre foi a mesma pessoa", diz.
"Sem que eu soubesse na época, aquela conversa na cadeia seria a última vez que eu falaria com meu pai."
Dezenasbets99testemunhasbets99julgamentos identificaram Eduardo Kalinec como tendo participadobets99sessõesbets99interrogatórios e torturasbets99três centrosbets99detenção diferentes.
Elas descreveram Kalinec como um jovem - na época ele tinha cercabets9925 anos - com tombets99voz agudo, baixo, moreno, com um pescoço grosso e bigode.
Ele era "temido" dentro dos centrosbets99detenção e tinha um "caráter muito cruel",bets99acordo com os depoimentosbets99sobreviventes.
A maioria dos que passaram por esses campos não sobreviveu. Eles permanecem "desaparecidos" e presume-se que estejam mortos.
Os relatos dos sobreviventes
Ana Maria Careaga tinha 16 anos e estava grávidabets993 meses quando foi levada. Ela se lembra que levou um chute do Doutor K quando ele a viu no banheiro.
Numa ocasião, ele ficou bravo com ela por não ter revelado que estava grávida quando foi sequestrada por integrantes do regime militar.
"Você quer que eu abra as suas pernas e faça você abortar", ele gritou.
Miguel D'Agostino também identifica Kalinec como um dos três homens que o torturaram por cinco dias seguidos com fios elétricos na chamada "salabets99cirurgia" da prisão secreta onde ele ficou detido por quase um ano.
Delia Barrera tinha 22 anos quando foi levada dabets99casa - sequestrada sob a mirabets99uma arma por um grupobets99homens que vasculharambets99vagina por pílulasbets99cianeto. Eles queriam ter certezabets99que ela não guardava consigo remédios para tirar a própria vida.
Os homens a levaram para El Atlético, a prisão secreta onde Kalinec trabalhava na época.
"Eu ouço vozes ao meu redor, eu estou com os olhos vendados", relembra Delia Barrera à BBC.
"Eles me deixam pelada e me amarram a uma camabets99metal com as pernas abertas. Começaram com choques elétricos. Eles me culpavambets99ter plantado uma bomba numa estação policial, o que eu não tinha feito, e queriam nomesbets99colegas militantes."
Barrera se encontrou com Kalinec numa ocasião, quando estava havia 92 dias na prisão e o pano que cobria seus olhos estava frouxo. "Eu fui levada até ele depoisbets99uma surra violenta. Eu pensei: 'Ah, eles o chamambets99Doutor K, ele deve ser um médico'", conta.
"Eu conseguia ver o rosto dele por debaixo do pano que cobria os meus olhos. É um rosto que eu nunca conseguiria esquecer. Quando, durante o julgamento, o juiz me perguntou se eu conseguiria identificar algum dos acusados, eu disse: 'Aquele é o Doutor K'."
'Sem provas'
O julgamento, que durou um ano, terminou com a condenaçãobets99Kalinec à prisão perpétuabets99dezembrobets992010. Ele faz partebets99um processobets99reconhecimento histórico que continua ocorrendo na Argentina, quase quatro décadas depois do fim da ditadura militar.
Maisbets99mil militares e policiais condenados por violações aos direitos humanos receberam penas robustas e há 370 processos aindabets99curso no sistema judicial argentino. Mas nem todos os que participaram do sistemabets99repressão do regime militar são levados à Justiça.
Em muitos casos, simplesmente não há provas suficientes para que sejam condenados. É o caso do paibets99Paula.
"Eu sei o que ele fez porque ele contou", diz ela. "Ele nos disse que participou da 'guerra contra a subversão', como ele chama. E ele se sentia orgulhoso disso, se sentia um herói."
Até aquele momento, Paula acreditava que o pai era um advogado. Ela nunca o havia visto num uniforme policial.
"Ele estava na faixa dos 20 na época e, pelas fotos que eu tinhabets99casa, ele não parecia fazer parte da polícia. Ele tinha cabelos longos, usava camisasbets99botão da moda… Ele parecia um jovem qualquer da décadabets9970."
Mas, com o tempo, Paula conectou os pontos e percebeu que ele espionava e denunciava pessoas para serem capturadas e levadas a centrosbets99detenção clandestinos.
Assim como Analía, Paula confrontou o pai.
"Eu disse para ele: 'Não se torturam pessoas. Eu não quero saber se eles fizeram algo ou não. Aplique a lei se fizeram algobets99errado, não torture pessoas!' Eu tive essa mesma conversa várias vezes com ele."
O pai dela respondia que as autoridades estavam lidando com "terroristas" e que "os comunistas estavam chegando".
Paula diz que não sabe quanto sangue o pai teria nas mãos, mas que ele nunca demonstrou arrependimento.
"Ele era uma engrenagem necessária na máquinabets99terror. Ele dizia que os crimes precisavam ser cometidos - e ele nunca chamavabets99crime, chamavabets99'ações'."
Dez anos após a descoberta sobre o pai, Paula cortou todos os laços com ele. "Eu tentei fazer isso antes, várias vezes. Mas sempre acabava voltando a ter contato, principalmente porque minha mãe me pedia. Família é família…"
"Quando minha mãe morreu, acho que me senti mais livre. 'Quer saber? Agora eu não tenho ninguém me dizendo que preciso te ver'. Eu simplesmente nunca mais o vi."
No finalbets992019, ela soube que o pai havia sido levado ao hospital após um derrame grave e se perguntou se deveria visitá-lo.
Não foi. Quando o pai morreu, não foi ao velório.
"Eu achei que comparecer ao velório seria desrespeitoso com as pessoas que realmente o amavam. Mas, além disso, uma partebets99mim já havia vivenciado o luto da ausência do meu pai na minha vida. Então, eu não tinha essa necessidade."
Rebelião coletiva
Alguns anos atrás, Analía e Paula se conheceram - junto a vários outros filhosbets99militares e policiais que também condenam as ações dos seus pais.
Isso não ocorreu por acaso. Foi impulsionado por uma decisão da Suprema Cortebets992017, durante o governobets99centro-direita do então presidente Mauricio Macri, que poderia ter resultado na libertaçãobets99centenasbets99pessoas condenados por violaçõesbets99direitos humanos, entre elas Eduardo Kalinec.
Meio milhãobets99pessoas tomaram as ruasbets99protesto, exigindo que a decisão fosse revista - e ela foi.
"O fato é que a prisão do meu pai demonstra uma qualidade nobre da sociedade argentina. Então, eu senti a necessidadebets99quebrar o silêncio. Eu queria dizer: 'Sejamos claros, não há como voltar atrás nisso'", diz Analía.
"Queremos garantir que nossos pais paguem pelos crimes que cometeram." Analía publicou suas opiniões num manifesto no Facebook. Outros filhos e filhas leram.
"Tudo começou ali. Nós nos comunicamos, nos encontramos. Dissemos: 'Isso é muito difícilbets99enfrentar sozinho'. Nós decidimos nos unir e participar dos protestos. Inicialmente, éramos quatro, todas mulheres, com muita energia e entusiasmo."
Eles se apelidarambets99Histórias Desobedientes, porque estavam rompendo com as regrasbets99silêncio da família. A maioria deixoubets99ver os pais há muito tempo e muitos, como Analía, não falam mais com os irmãos.
"Eu estava tão felizbets99encontrar outras pessoas como eu. Eu sabia que não podia ser a única", diz Paula. "Eles me compreendiambets99maneira que outros não conseguiriam."
Ela diz que não havia conseguido falar com ninguém sobre o pai, com exceção do seu terapeuta, e que adquirir a habilidadebets99se impor e falar publicamente sobre o caso, depoisbets9923 anosbets99silêncio, era libertador.
A luta para que rompam o silêncio
O grupo agora é integrado por 80 pessoas - a maioria mulheres. Os integrantes se reúnem semanalmente. Eles comem juntos e discutem sobre sentimentos e política, alémbets99planejar participaçãobets99eventos públicos.
Uma das campanhas do grupo foca na recusabets99seus paisbets99confessar os crimes e tem como objetivo ajudar os promotores a condenar outros culpadosbets99violaçõesbets99direitos humanos.
"Eu ainda espero que ele fale. Eu sei que o meu pai tem informações sobre suas vítimas", diz Analía.
"Diferentementebets99outros oficiais, que estão muito velhos ou senis, meu pai está lúcido e têm uma memória prodigiosa. E saber que ele prefere não falar e que esse silêncio cúmplice está causando dor é algo que me machuca muito."
Como seus pais não querem falar, os membros do Histórias Desobedientes querem que o Código Penal da Argentina seja reformado para permitir que os filhos testemunhem nos tribunais contra os pais,bets99casosbets99crimes contra a humanidade.
Muitas vezes os casos envolvendo esses homens são um quebra-cabeça que os filhos podem ajudar a montar com as informações que possuem. Por exemplo, Analía sabia que o pai era conhecido no trabalho como Doutor K.
"Socialmente, se pronunciar contra o seu pai é fortemente condenado numa sociedade patriarcal. Seu pai, seu sangue. Bem, mas e se o seu pai é um torturador, um estuprador, um ladrão? Você não pode dizer nada?", questiona.
"As pessoas sequer fazem esse questionamento. Bom, talvez esteja na horabets99fazer."
Aos olhos do público
Em 2019, o Histórias Desobedientes tomou as ruas no Dia Nacional da Memória,bets9924bets99março, aniversário do golpe militar. O cartaz colorido que eles levavam dizia: "Somos parentesbets99perpetradoresbets99genocídio".
Analía dizia que as pessoas olhavam para eles confusas. Algumas choraram, enquanto muitas aplaudiram. "Foi a primeira vez que um grupobets99parentesbets99perpetradores se manifestava tão publicamente."
No entanto, nem todos estão preparados para o ativismo deles. O grupo é uma presença desconfortável para alguns familiaresbets99vítimas e sobreviventes.
"Esses 'desobedientes' filhos e filhas tiveram várias oportunidadesbets99se manifestar e não fizeram isso antes. Por quê?", questionou a sobrevivente Delia Barrera, quando entrevistada pela BBCbets992019.
Ela disse que não confiava neles, particularmente nos que diziam que ainda amavam os pais depoisbets99tudo o que eles fizeram.
"Você não pode amar um perpetradorbets99genocídio", critica.
Para os filhosbets99criminosos condenados, a questão é mais complicada. "Eu me pergunto isso o tempo todo e a gente discute isso no grupo: é possível simplesmente pararbets99amar o homem?", diz Analía.
"Como você apaga a afeição? Como você deleta as boas memórias? Eu me recuso a desistir desse pai que eu amei um dia. Tem uma partebets99mim que quer se apegar a isso. Então, eu vivo com essas contradições."
Mas algumas foram além, passando a se chamar "ex-filhas" ou pedindo formalmente a trocabets99seus sobrenomes.
"Eu acho que é uma decisão muito pessoal. Mas para mim isso não mudaria nada. Eu não vou dar ao meu pai o direitobets99ser o dono do sobrenome. Também é meu sobrenome, minha família, minha história", diz Analía.
Paula concorda. "Você tirou muitas coisasbets99muitas pessoas", ela disse ao pai, quando ele estava vivo. "Você não vai tirar o meu nome. Você o manchou, mas eu vou limpá-lo."
Desde a morte dele, Paula se afastou um pouco do grupo, mas diz que "seu posicionamento éticobets99relação à ditadura e ao papel do pai nela continuam o mesmo."
"Eu ainda sinto a responsabilidadebets99falar e talvezbets99acordar outras pessoas tanto na Argentina quantobets99outras partes do mundo, independentemente do relacionamento que elas tenham com o perpetrador. Então, essa luta nunca vai terminar."
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