Por que fracassei na caçada ao serial killer mais perigoso do Canadá:
Imediatamente viu que era um suspeitopotencial. No início daquele ano, o criadorporcos49 anos fora acusadoaprisionar e esfaquear uma prostituta, quase a levando à morte.
O informante contou que havia bolsasmulheres, cartõesidentidade e roupas ensanguentadas na fazendaPickton. E que ouvira o homem fazer piadas perturbadoras.
"Pickton tinha um moedorcarne sobre o qual dizia aos amigos: 'se você precisar descartar um corpo...'", conta Shenner.
O investigador pensou que seria simples descobrir se o fazendeiro tinha relação com os desaparecimentos - bastava emitir um mandadobusca e levá-lo para interrogatório.
Mas levou-se quatro anos até que policiais finalmente revistassem a propriedade rural - e para apurar uma acusação não relacionada com os assassinatos.
No período, ao menos outras 14 mulheres foram mortas.
Uma investigação forense na fazendaPickton acabou revelando o DNA33 mulheresvários lugares, congeladores e máquinas.
Como ele mesmo se gabava, o fazendeirofato descartava os corpossuas vítimas no moedorcarne. Outros, usou para alimentar seus porcos.
Ele chegou a confessar a um policial disfarçado que estava próximoatingir a "meta"50 assassinatos.
Mas... por que levou tanto tempo para que fosse desmascarado?
Disfarce
Shenher começoucarreira policial no início dos anos 1990 como Lorraine Shenher - uma jovem atlética e trabalhadora27 anos que conseguiu uma das melhores notas registradas até então no processoseleção do DepartamentoPolíciaVancouver.
Ela então passou pela redesignaçãosexo, e mudou seu nomeLorraine para Lorimer.
Durante umasuas primeiras tarefas, ele trabalhou disfarçadoDowntown Eastside. Com um short curto, esperava na esquina para ser abordado por homensbuscasexo e, quando era o caso, os prendia.
A experiência deu a Shenner uma ideia da brutalidade experienciada rotineiramente pelas prostitutas. Alguns homens eram violentos - um ameaçou matá-lo, outro tentou sequestrá-lo a mão armada.
Também notou que os policiais que deveriam proteger aquelas mulheres geralmente ignoravam suas denúncias.
Lorimer tinha uma opinião sobre o que acontecia ao seu redor.
"Sentia que era um homem observando aquela situação. Mas, vivendo como uma mulher, não tolerava a opressão e o sexismo que elas sentiam", disse. "Tinha muita raiva disso."
Poucos anos depois, os moradoresDowntown Eastside começaram a denunciar que mulheres estavam desaparecendo.
Uma delas, a jovem prostituta e usuáriadrogas SarahVries, chegou a descrever seu medoum diário.
"Serei a próxima", escreveudezembro1995. "Ele está me observando agora? Perseguindo-me como um predador apresa. Esperando, esperando pelo lugar ou momento perfeito ou pelo meu erro idiota. Como alguém escolhe uma vítima? Boa pergunta. Se eu soubesse, nunca seria pega."
Em abril1998, Sarah desapareceu. Ela era a 17ª pessoa da listaShenner quando ele passou a coordenar a UnidadePessoas Desaparecidas.
Serial killeração
Vários agentes do DepartamentoPolíciaVancouver começaram a suspeitar que um serial killer estava agindo.
Um deles foi o inspetor Kim Rossmo, que tinha se debruçado sobre perfis criminais empesquisadoutorado.
"Chequei os registros dos 20 anos anteriores e geralmente não encontrava nenhum, ou apenas um ou dois casospessoas desaparecidasum ano", conta.
"Esse número começou a crescer1996, 1997 e 1998. Pensei que a única explicação para aquilo era que fosse um casoassassinatosérie."
Mas quando Rossmo levou suas conclusões ao agente responsável pela SeçãoCrimes Graves, ouviu que aquelas mulheres tinham vidas transitórias e que simplesmente poderiam ter se mudado.
Isso se mostrou errado. Embora fossem usuáriasdrogas e pobres, elas tinham relações fortes com família, amigos ecomunidade.
Mas como ninguém encontrou corpos, o chefeRossmo achou que não havia crime e que com o tempo as mulheres apareceriam.
Uma das primeiras açõesShenher foi entrarcontato com o agente que prendeu e acusou Pickton1997 por atacar uma prostituta emfazenda.
Apesar da gravidade dos ferimentos, os promotores arquivaram o caso: como ela era viciadaheroína, concluíram que não seria uma testemunha convincente.
Shenher considerou a decisão inexplicável. Sua opinião foi compartilhada pelo agente que prendeu o fazendeiro - integrante da Polícia Montada Real Canadense (RCMP). Ele acabou abrindo seus arquivos para o investigador.
Como a fazendaPickton ficava fora da cidade, o caso ficou na jurisdição da RCMP, e não na do DepartamentoPolíciaVancouver.
Para Shenher, fazia sentido que ambos os órgãos trabalhassem juntos no caso, mas houve resistência à ideia nos níveis mais altosambas as corporações. Por isso, a cooperação demorou anos para começar.
Roupas ensanguentadas
Shenher voltou a focar na ligação que lhe deu a primeira pista.
O informante mencionou festas na fazendaPickton, realizadasum celeiro que ficou conhecido como Palácio do Leitão. Esses encontros, realizados tarde da noite, eram populares entre ganguesmotoqueiros - sexo e drogas eram parte da atração.
Uma amiga do informante tinha participado dessas festas, e relatou ter visto itens pessoais e roupas ensanguentadas que poderiam pertencer às mulheres desaparecidas.
Shenher rapidamente identificou essa mulher, mas ela não quis falar com a polícia. Ele então propôs uma operação para confirmar a história, usando uma agente disfarçada para se tornaramiga.
Mas o plano foi rejeitado. Em vez disso, Pickton foi vigiado por três dias. Mas como não levantou suspeitas, a polícia parousegui-lo.
"Se essas mulheres fossemqualquer outro estrato social, haveria uma revolta, buscafestas, voluntários, bloqueioestradas", avalia Shenher hoje.
"Em um nível bem profundo, um vasto segmento da sociedade e a comunidade policial não sentiam que essas mulheres mereciam o esforço, e muitas pessoas questionaram se elas realmente queriam ser encontradas."
Relato macabro
Em maio1999, o DepartamentoPolíciaVancouver formou uma equiperevisão dos casospessoas desaparecidas. Shenher era o investigador-chefe.
Mas embora isso tenha representado um avançorelação à UnidadePessoas Desaparecidas, ainda faltavam recursos para uma plena investigaçãohomicídio.
Outro informante então contou uma história terrível, que apontava Pickton como responsável por assassinar e descartar os corpos das mulheres desaparecidas.
Essa pessoa disse que tinha visto algemas no quarto dele e que um congeladorseu celeiro era ocupado por uma "carne estranha", que ela acreditou ser humana.
O informante contou que uma amiga, que nomeou como sendo Lynn Ellingsen, foi com Pickton ao distritoDowntown Eastside para ajudá-lo a escolher mulheres.
Segundo essa pessoa, Ellingsen entrou no matadouro da fazenda e viu o que parecia ser o corpouma mulher penduradogancho para carne. Ele estaria ao lado, cortando tirascarne das pernas daquele corpo.
A amiga do informante disse que não sabia que a gordura humana era amarela - um detalhe que deu mais credibilidade à história.
Naquele momento, Shenher acreditava que tinha provas suficientes para trazer Ellingsen e Pickton para serem interrogados, mas como a fazenda estava na jurisdição da RCMP, apenas eles poderiam levar a investigação adiante.
A RCMP interrogou Ellingsen duas vezes, mas ela se recusou a falar. E quanto a Pickton, Shenher soube que um agente da RCMP visitou a fazenda e ouviu do irmão dele que "voltasse na estaçãochuvas", porque eles estavam muito ocupados trabalhando.
Meses depois, os agentes conseguiram interrogar o suspeito, que negou os assassinatos. Ele permitiu que fossem feitas buscas na propriedade - o que, por incrível que pareça, não foi feito.
O númeromulheres desaparecidas já tinha subido para 30. Shenher começava a apresentar sintomas do desgaste da investigação: tinha pesadelos, sentia dores misteriosas pelo corpo, enfrentava problemas para comer e desenvolveu alergias.
"Eu me perguntei muitas vezes se não podia simplesmente ter ido à fazenda e executado um mandadobusca", questionou. "A resposta sempre foi 'não'. Não era minha jurisdição."
"Precisava que alguém do alto escalão da minha corporação conversasse com alguém do mesmo nível na RCMP. Mas não funcionava assim. Não tivemos apoio", acrescenta.
Ao final2000, ele estava exausto e desmoralizado. E como começava a sofrertranstornoestresse pós-traumático, pediu para ser transferido para outra unidade.
Por acaso
Em janeiro2001, quase três anos depoisShenher terprimeira pista sobre Pickton, a RCMP e o DepartamentoPolíciaVancouver finalmente começaram uma operação conjunta para reexaminar os casos das prostitutas desaparecidas e assassinadas na provínciaBritish Columbia.
Algo que o investigador deveria comemorar. Mas ele estava deprimido.
"O que eles fizeram foi listar os criminosos sexuais da província e chegar a uma listacem homens. Não colocaram aquilo como prioridade", conta. "Apesartodas as informações sobre Pickton, eles não o puseram como o principal suspeito."
O fazendeiro foi finalmente presofevereiro2002, quando um agente novato da RCMP foi à fazendabuscauma arma sem licença e viu um inaladorasma com o nomeuma mulher desaparecida.
A partir daí, foi questãohoras para que a propriedadePickton se tornasse a maior cenacrime da história canadense.
Quando Shenher soube desse desfecho, sentiu uma onda contraditóriaemoções.
"Choque, exaltação, medo, excitação, tristeza, dor, enjoo - estava tudo lá, tudo misturado", conta hoje. "Foi uma vitória vazia, tudo o que eu conseguia fazer era chorar."
Em 2007, o tribunal condenou Pickton por seis homicídios dolosos - com intençãomatar. Havia provas suficientesoutros 20 assassinatos, mas os promotores decidiram não levar os casos adiante porque a penaprisão perpétua já tinha sido atingida.
A críticaShenher às investigações da polícia foi compartilhada pelas famílias e amigos das vítimas.
Em 2010,resposta à pressão popular, o governoBritish Columbia lançou a ComissãoInquéritoMulheres Desaparecidas para investigar a conduta dos policiais.
O inquérito mostrou que houve faltaliderança nas investigações, que foram descritas como um "fracasso vergonhoso" e marcadas por forte preconceito contra as vítimas, pobres e usuáriasdrogas. Também reconheceu o esforçoagentes como Shenher.
Mas o que podia ter sido uma oportunidade para apontar falhas ao sistemapolícia e justiça acabou sendo desperdiçada, diz o agente.
Ele acusa o inquéritoomitir informações que poderiam ter dado pistas dos motivos pelos quais a fazendaPickton não foi revistada antes.
"Minha sensação foi que havia um esforço do governo provincial para restringir a quantidade e o tipoinformação que veio a público", diz Shenher, embora admita que não tenha provas da suspeita.
Ele espera que o Inquérito NacionalMulheres e Crianças Indígenas Desaparecidas e Assassinadas, anunciado ano passado pelo governoJustin Trudeau, represente avanços na investigação desses casos.
"Quando o desaparecimentouma mulher é visto como inevitável, a investigação não é feita a contento e mulheres continuam morrendo, então precisamos fazer melhor", disse à BBC a ministraassuntos indígenas do Canadá, Carolyn Bennett.
Racismo e sexismo ainda são problemas nas forças policiais do país, acrescentou ela.
Shenher estálicença médica da polícia. Em 2015, publicou um livro com detalhessuas frustrações com a investigação sobre Pickton, chamado That Lonely Section of Hell ("Aquela Solitária Seção do Inferno",tradução livre).
"As pessoas pensam que há responsabilização da polícia no Canadá", diz.
"Mas não há muitos mecanismos para o governo supervisionar seu trabalho. Sem isso, acho que um assassino como Pickton poderia escaparnovo."
Esta reportagem recebeu o apoio do Pulitzer Center on Crisis Reporting